"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 23 de julho de 2011

Museu do Ipiranga


Tomemos o nosso caso concreto, transportando-nos ao Museu do Ipiranga, na cidade de São Paulo, num domingo à tarde. [...] Em seu próprio território, reproduzindo em seus monumentos os padrões 'obrigatórios' do modelo europeu, os setores enriquecidos e mais influentes da sociedade local reconstroem simbolicamente o seu passado, buscando legitimar-se, no presente, como protagonistas, representantes e porta-vozes da história de todos nós. Com efeito, são levados constantemente a visitas gratuitas e obrigatórias ao Museu os nossos estudantes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio que, a título de aprenderem história, devem lá prestar a sua homenagem aos 'grandes Homens da Pátria'.

Entretanto, não obstante o esforço dos educadores, parece ser pequeno o interesse da maior parte dos que efetivamente frequentam o Museu nos fins de semana pelos objetos e fragmentos que ele abriga.

Preferindo a sombra fresca das árvores e o aconchego dos arbustos, o 'povão' transforma o jardim (que ali foi construído, certamente como moldura nobre para enfatizar a monumentalidade do edifício central do Museu) em agradável e descontraído parque de esportes e diversões. [...]

Este exemplo, embora apresentado de modo esquemático, ilustra bem algumas questões que se colocam quando procuramos compreender a heterogeneidade cultural na sociedade de classes.

A discrepância flagrante entre as concepções dos idealizadores e as dos usuários do Museu e do jardim que o circunda sugere, inicialmente, que sistemas simbólicos diversos estão presentes nessa situação. [...]

Não é, evidentemente, o caso de se pensar em desinformação, deseducação ou selvageria do 'povão', diante de um espaço consagrado ao culto de relíquias dos 'ancestrais ilustres' dos dominantes.

Ocupando a seu modo esse monumento, os usuários o transformam simbolicamente, redefinindo as funções dos equipamentos existentes segundo as suas próprias necessidades e concepções.

E, ao fazerem isso, eles se apropriam, momentaneamente, de um espaço que é sagrado para os dirigentes e que, a rigor, lhes pertence, recriando nele as suas próprias formas de sociabilidade. Revela-se nesse exemplo a força transformadora do uso efetivo sobre as imposições restritivas dos regulamentos.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 47-50.

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