"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Carlos II, o enfeitiçado

Retrato do rei Carlos II da Espanha com armadura, Juan Carreño de Miranda


▬╡ஐ 1699, Madrid ╞▬

Embora não tenha sido anunciada pelo heraldo trombeteiro, pelas ruas de Madrid voa a notícia. Os inquisidores descobriram o culpado do feitiço do rei Carlos. A feiticeira Isabel será queimada viva na praça Maior.

Toda a Espanha rezava pelo rei Carlos II. Ao despertar, o monarca bebia sua poção de pó de víbora, infalível para dar forças, mas em vão: o pênis seguia abobado, incapaz de fazer filhos, e pela boca do rei continuavam saindo babas e hálito imundo e nem uma palavra que valesse a pena.

O malefício não vinha de certa xícara de chocolate com pó de testículos de enforcado, como tinham dito as bruxas de Cangas, nem do próprio talismã que o rei usava pendurado no pescoço, como acreditou o exorcista frei Mauro. Houve quem dissesse que o monarca tinha sido enfeitiçado pela própria mãe, com tabaco da América ou pastilhas de benjuy, e inclusive se rumoreou que o mordomo-mor, o duque de Castellforit, tinha servido à mesa um presunto misturado com unhas de mulher moura ou judia queimada pela Inquisição.

Os inquisidores tinham encontrado, finalmente, o redemoinho de agulhas, grampos, caroços de cereja e louros cabelos de Sua Majestade, que a feiticeira Isabel tinha escondido pertinho da alcova real.

Balança o nariz, balança o lábio, balança o queixo; mas agora que o rei foi desembruxado, parece que os olhos dele se acenderam um pouquinho. Um anão ergue o círio, para que o Rei contemple seu retrato, que há anos pintou Carreño.

Enquanto isso, fora do palácio faltam pão e carne, peixe e vinho, como se Madrid fosse uma cidade sitiada.

▬╡ஐ 1700, Madrid ╞▬

Nunca pôde vestir-se sozinho, nem ler correntemente, nem ficar em pé por conta própria. Aos quarenta anos, é um velhinho sem herdeiros, que agoniza rodeado de confessores, exorcistas, cortesãos e embaixadores que disputam o trono.

Os médicos, vencidos, tiraram de cima dele as pombas recém-mortas e as entranhas de cordeiro. As sanguessugas já não cobrem seu corpo. Não lhe dão de beber aguardente nem a água da vida trazida de Málaga, porque só resta esperar a convulsão que o arrancará deste mundo. À luz das tochas, um Cristo ensanguentado assiste, da cabeceira da cama, à cerimônia final. O cardeal salpica água benta com o aspersório. A alcova fede a cera, incenso, sujeira. O vento golpeia os pórticos do palácio, mal amarrados com barbantes.

O levarão à morgue de El Escorial, onde o espera, há anos, a urna de mármore que leva seu nome. Essa era a sua viagem preferida, mas há tempos que não visita a própria tumba nem mostra o nariz nas ruas. Está Madrid cheia de buracos e lixo e vagabundos armados; e os soldados, que mal e mal vivem da sopa boba dos conventos, não se preocupam em defender o rei. Nas últimas vezes em que se atreveu a sair, as lavadeiras do rio Manzanares e os rapazes da rua perseguiram a carruagem e cobriram ele de insultos e pedradas.

Carlos II, com os vermelhos olhos arregalados, treme e delira. Ele é um pedacinho de carne amarela, que foge entre os lençóis, enquanto foge também o século e acaba, assim, a dinastia que fez a conquista da América.

GALEANO, Eduardo. Memória do fogo: Os nascimentos. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 269-270 e 273.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O surgimento da classe operária brasileira

Os primeiros operários brasileiros surgiram ainda em plena sociedade escravista. Muitas de nossas primeiras empresas industriais caracterizavam-se pelo trabalho conjunto de operários livres e escravos. Somente com a abolição tal quadro mudaria. Até lá, porém, essa coexistência atrapalharia muito a afirmação do operariado como classe entre nós.

Esses primeiros operários originavam-se das camadas mais pobres da população urbana, sendo muitos deles menores, retirados de asilos ou casas de caridade, diretamente para o regime das fábricas. As condições de trabalho e de vida desses aprendizes não eram melhores do que as de muitos escravos, formando um contingente significativo de trabalhadores não-especializados. Adultos e crianças chegavam a trabalhar até dezesseis horas por dia, sem folga semanal ou qualquer outro direito.


Operários diante da fábrica, São Paulo, pousando para a fotografia coletiva, fins do século XIX

Já os operários qualificados, necessários ao desenvolvimento industrial, eram contratados quase sempre na Inglaterra e sofriam muitas dificuldades de adaptação ao clima do país, além de saírem bem mais caro para os primeiros industriais, que eram obrigados a pagar-lhes salários maiores do que os que estavam acostumados a pagar.

A entrada em massa de imigrantes no Brasil, a partir de 1870/1880, começou a alterar a composição do operariado brasileiro. Os estrangeiros - italianos, portugueses, espanhóis - aos poucos tornaram-se maioria nas fábricas do Rio e de São Paulo, situação que se manteve mesmo após a abolição. Somente nos centros industriais menos dinâmicos, como aqueles situados na Bahia, Pernambuco ou Pará, predominou o emprego da mão-de-obra nacional na indústria.

O crescimento da grande indústria, verificado na virada do século XIX para o XX, pouco contribuiu para melhorar as condições de vida dos operários. A superexploração do trabalho industrial não só se manteria, como seria agravada, em função de um novo fato: a incorporação maciça de mulheres e crianças ao trabalho fabril. É bom lembrar que esses últimos recebiam salários ainda menores do que os trabalhadores adultos.


Saudades de Nápoles, Bertha Worms
[A obra retrata um menino italiano engraxate, figura bastante comum nas ruas de São Paulo na época]

Outro fator que favorecia a superexploração era a ameaça do desemprego ou da diminuição temporária de frentes de trabalho. Com a chegada de novos imigrantes às cidades, a oferta de mão-de-obra aumentava, provocando demissões e desvalorização dos salários.

MENDONÇA, Sônia. A industrialização brasileira. São Paulo: Moderna, 1996. p. 20-22. (Coleção Polêmica)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O poder monárquico e o ódio do povo

Retrato de um sans-culotte, Louis-Léopold Boilly

Para o imaginário popular da Idade Moderna, apesar do avanço do poder monárquico, os reis não eram percebidos como exploradores e opressores. Ao contrário, as pessoas comuns pareciam acreditar que aqueles que os subjugavam faziam-no à revelia do rei.

Segundo o historiador inglês Peter Burke, o ódio popular deslocava-se para os grupos da classe média: advogados, funcionários (do rei), comerciantes e médicos. A atuação desses profissionais era percebida como contrária ao povo. Afinal, representavam problemas com a justiça, a cobrança de taxas, o custo de vida, a saúde e a morte. Nem sempre ficava claro que esses profissionais agiam em nome do rei ou em função do que estabeleciam as instituições oficiais.

Os funcionários - conselheiros ou executantes das deliberações governamentais - eram odiados, principalmente o coletor de impostos. Da França, onde essa coleta era arrendada, proveio a expressão engabeladores (cobradores da gabela, imposto sobre o sal), que indica os que enganam e expoliam o povo. Palavras como tiranos, canibais, sugadores de sangue eram utilizadas para designar os coletores, muitas vezes atacados ao executar as cobranças.

Também eram alvo do ódio popular os comerciantes, sobretudo os que emprestavam dinheiro a juro ou os que açambarcavam cereais ou detinham monopólios, e os médicos, que aparecem nos contos e peças populares como ignorantes, pedantes, dissimulados e gananciosos.

No entanto, houve também heróis da classe média. Santo Ivo foi um advogado honesto, considerado mediador entre ricos e pobres.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 266.

sábado, 24 de outubro de 2015

Teseu Θησεύς

Θησεύς

Teseu mata o Minotauro. Casa de Gavius Rufus, Pompeia.

[...]


Androgeu, filho de Minos, de Creta, tendo ido a Atenas para assistir às Panatenéias [jogos de caráter sagrado], tomou parte nos combates, e com tanta galhardia se houve que arrebatou todos os prêmios. Os moços de Atenas, ressentidos, mataram-no.

[...]

Por esse assassinato, Minos armou poderosa expedição, sitiou Atenas e Mégara, apoderou-se das duas cidades e impôs--lhes um tributo pagável cada nove anos, constituído de sete moços e sete moças, que seriam lançados ao monstro Minotauro. O tributo já fora pago três vezes quando Teseu, ao se aproximar o prazo para a nova entrega de jovens, se ofereceu para seguir como um deles.

[...]

Egeu [pai de Teseu e rei de Atenas, embora o mito fale que o verdadeiro pai de Teseu é Posidon, deus dos mares] dera-lhe dois jogos de velas, um preto e outro branco, recomendando-lhe que se voltasse vitorioso, mandasse hastear as velas brancas; se o navio voltasse com velas negras, era sinal de que os jovens enviados tinham morrido. Chegados a Creta, Teseu e seus companheiros foram encerrados no Labirinto, morada do Minotauro, complicada edificação construída por Dédalo, com tantas voltas e corredores, e retorcidos caminhos que quem ali entrasse não atinaria com a saída. No entanto, quando chegaram, Ariadne, uma das filhas de Minos, enamorou-se perdidamente do belo Teseu. Para que encontrasse o caminho de volta, deu-lhe um novelo de fio, que ele deveria amarrar, na entrada, e ir desenrolando. Ariadne pôs uma condição para o seu auxílio. Que ele a desposasse e que a levasse consigo para Atenas. Teseu empenhou-se em luta com o Minotauro, matando-o a punhaladas, e saiu do Labirinto levando os companheiros.

[...]

Com todas as peripécias da viagem, Teseu esqueceu de mandar trocar por velas brancas as pesadas velas negras do navio. Egeu, que, de longe, sobre um promontório, avistara a embarcação de velas escuras, acreditando morto o filho bem-amado, atirou-se ao mar, que desde então passou a se chamar Egeu.

[...]

Teseu, pela morte do pai, subiu ao trono. Seu priemiro ato foi realizar o sinecismo, isto é, reunir numa cidade única os cidadãos disseminados pela região. Atenas foi a capital do Estado constituído. [...] adotou [Teseu] o uso da moeda, dividiu a sociedade em três classes: a dos nobres, a dos artesãos e a dos agricultores. [...]

GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 289-294.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O legado do Egito faraônico

Lago sagrado de Karnak, Carl Wuttke

As valiosas contribuições que o Egito faraônico legou à humanidade podem ser verificadas em diversos campos, como a história, a economia, a ciência, a arte e a filosofia. [...]

De fato, essa herança - ou pelo menos os seus testemunhos, tão importantes para a história da humanidade - transmitiu-se, em grande parte, através da Antiguidade Clássica [...] antes de chegar aos árabes.

Um dos mais antigos e notáveis avanços da civilização egípcia verificou-se no campo da economia. Ao final do Neolítico [...] os antigos egípcios transformaram gradualmente o Vale do Nilo, permitindo que seus habitantes passassem de uma economia de coleta a uma economia de produção de alimentos; [...] O desenvolvimento da agricultura possibilitou aos antigos egípcios adotarem uma forma de vida aldeã, estável e integrada, o que, por sua vez, afetou seu desenvolvimento social e moral, não apenas no período pré-histórico, mas também durante o período dinástico.

Decorre daí um outro desenvolvimento fundamental: a introdução de um novo sistema social no interior da comunidade, ou seja, a especialização do trabalho. Trabalhadores especializados surgem na agricultura, na irrigação, nas indústrias agrícolas, na cerâmica e em diversas outras atividades afins. [...]

A civilização faraônica distinguiu-se pela continuidade do seu desenvolvimento. Toda aquisição é transmitida - e aperfeiçoada - do começo ao fim da história do antigo Egito. Assim, as técnicas do Neolítico foram enriquecidas no período pré-dinástico (-3500 a -3000), mantendo-se ainda em pleno período histórico. É o que testemunha, por si só, a arte de trabalhar a pedra.

Já por volta de -3500, os egípcios, herdeiros do Neolítico do vale, utilizaram-se dos depósitos de sílex ali localizados para esculpir instrumentos de qualidade incomparável, dos quais a faca de Djebel el-Arak é um exemplo entre centenas de outros. A mesma perícia está presente na confecção de vasos de pedra. As técnicas de talhar a pedra foram transmitidas posteriormente ao mundo mediterrânico. Tudo leva a crer que as técnicas de confecção dos vasos de pedra cretenses tenham sido aprendidas se não no próprio Egito, pelo menos num meio inteiramente impregnado da cultura egípcia, como o corredor sírio-palestino. [...]

A habilidade dos canteiros que trabalhavam com pedra dura transmitiu-se aos escultores, o que se pode constatar pelas grandes esculturas egípcias nesse material. A técnica passou, então, para os escultores do período ptolomaico e posteriormente encontrou expressão na estatuária do Império romano.

[...] O legado material compreende o artesanato e as ciências (geometria, astronomia, química), a matemática aplicada, a medicina, a cirurgia e as produções artísticas; o cultural abrange a religião, a literatura e as teorias filosóficas.

A contribuição do antigo Egito à produção artesanal aparece nos trabalhos em pedra, mas também no artesanato em metal, madeira, vidro, marfim, osso e muitos outros materiais.

Já nos primórdios do período dinástico (cerca de -3000), os egípcios conheciam e empregavam todas as técnicas básicas da metalurgia. Além dos utensílios, foram encontradas grandes estátuas egípcias de cobre, datadas de -2300, e cenas de mastabas de um período ainda mais remoto mostram as oficinas onde o ouro e o electro são transformados em joias. [...]

A cultura precoce do linho fez com que muito cedo os egípcios adquirissem grande habilidade na fiação manual e na tecelagem. [...] Para os faraós, os tecidos constituíam um produto de troca particularmente apreciado no exterior. O mais fino, o bisso, era tecido nos templos e gozava de fama especial. A administração central dos Ptolomeus organizava as vendas ao estrangeiro que trouxeram ao rei grandes lucros. Temos aqui um exemplo de uma das maneiras pelas quais se transmitiu o legado egípcio.

As indústrias da madeira, do couro e do metal aperfeiçoaram-se, e os seus produtos conservaram-se em boas condições até nossos dias. Os antigos egípcios tinham um talento especial para tecer junco selvagem, confeccionando esteiras, e a fibra da palmeira possibilitou a produção de redes e cordas resistentes.

A manufatura da cerâmica teve início na Pré-História, com formas bastante rudimentares, evoluindo em seguida para uma cerâmica mais fina, vermelha e de bordas negras, mais tarde polida e gravada. A crença em determinados valores e, em particular, na vida eterna, por exigir a manufatura de uma grande quantidade de objetos para os mortos, levou a uma grande produção, de alto grau de perfeição.

Deve-se ao Egito, se não a invenção, pelo menos a difusão das técnicas de fabricação do vidro a toda a civilização mundial. [...] A partir de -700 aproximadamente, os vasos egípcios de vidro conhecidos como "alabastro" difundiram-se por toda a região do Mediterrâneo. Os fenícios os copiaram, e sua manufatura transformou-se em indústria.

Uma das indústrias mais importantes do antigo Egito foi a do papiro, de invenção autóctone. Nenhuma outra planta teve, no Egito, papel tão significativo. As fibras do papiro eram usadas na fabricação ou calafetagem de embarcações e na confecção de pavios de candeeiros a óleo, esteiras, cestos, cordas e cabos. Vinte folhas de papiro, unidas enquanto ainda úmidas, formavam um rolo de 3 a 6 m de comprimento. Vários rolos podiam ser unidos de modo a formar uma unidade de 30 ou 40 m de comprimento; tais rolos constituíam os "livros" egípcios. Eram segurados com a mão esquerda e desenrolados à medida que se fazia a leitura. O herdeiro direto desse rolo é o "volume" da Antiguidade Clássica.

De todos os materiais empregados como suporte para a escrita na Antiguidade, o papiro certamente foi o mais prático, por ser flexível e leve. A fragilidade, porém, era o seu único inconveniente. Utilizado no Egito desde a I dinastia (cerca de -3000) até o fim do período faraônico, o papiro foi, mais tarde, adotado pelos gregos, romanos, coptas, bizantinos, arameus e árabes. Os rolos desse material constituíam um dos principais produtos de exportação do Egito. O papiro foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores legados do Egito faraônico à civilização.

[...]

A tradição e a perícia na construção em pedra não foram uma contribuição técnica menor dos egípcios ao mundo. Não era nada fácil transformar os imensos blocos brutos de granito, calcário, basalto e diorito em blocos bem talhados e polidos, destinados a diferentes projetos arquitetônicos. Além disso, a busca de pedras para a construção dos monumentos, assim como a prospecção de minérios metálicos e a procura de fibras, de pedras semipreciosas e de pigmentos coloridos contribuiu para a difusão das técnicas egípcias na África e na Ásia.

A perícia dos egípcios no trabalho da madeira manifesta-se brilhantemente na construção naval. [...]

O Egito faraônico nos deixou valiosa herança nos campos da física, química, zoologia, geologia, medicina, farmacologia, geometria e matemática aplicada. De fato, legou à humanidade uma grande reserva de experiências em cada um desses domínios, alguns dos quais foram combinados de modo a possibilitar a realização de objetivos específicos.

Um dos melhores exemplos da engenhosidade dos antigos egípcios é a mumificação, que ilustra o conhecimento profundo que tinham de inúmeras ciências [...]. Foram sem dúvida os conhecimentos adquiridos com a prática da mumificação que permitiram aos egípcios o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas desde os primeiros tempos de sua história. A cirurgia egípcia é bastante conhecida graças ao Papiro Smith, cópia de um original escrito durante o Antigo Império, entre -2600 e -2400, um verdadeiro tratado sobre cirurgia dos ossos e patologia externa. Ainda hoje são aplicados vários tratamentos indicados nele.

Por sua abordagem metódica, o Papiro Smith serve como testemunho da habilidade dos cirurgiões do antigo Egito, habilidade que, supõe-se, foi transmitida pouco a pouco à África, à Ásia e à Antiguidade Clássica pelos médicos que acompanhavam as expedições egípcias aos países estrangeiros. Além disso, sabe-se que [...] Hipócrates tinha acesso à biblioteca do templo de Imhotep em Mênfis. Posteriormente, outros médicos gregos seguiram-lhe o exemplo.

Pode-se considerar o conhecimento da medicina como uma das mais importantes contribuições científicas do antigo Egito à história da humanidade. Documentos mostram detalhadamente os títulos dos médicos egípcios e seus diferentes campos de especialização. [...] A influência egípcia sobre o mundo grego, tanto na medicina como na farmacologia, é facilmente reconhecível nos remédios e nas prescrições.

A farmacopeia egípcia abrangia grande variedade de ervas medicinais, cujos nomes, lamentavelmente, são intraduzidas. As técnicas medicinais e os medicamentos egípcios gozavam de grande prestígio na Antiguidade, conforme revela Heródoto. Para a execução de seu trabalho, os médicos dispunham de uma grande variedade de instrumentos.

Outro importante domínio da ciência a que os antigos egípcios se dedicaram foi a matemática. As medições acuradas dos seus enormes monumentos arquitetônicos e escultóricos constituem uma excelente prova e sua preocupação com a precisão. [...]

Do Médio Império (-2000 a -1750) chegaram-nos dois importantes papiros matemáticos: o de Moscou e o Rhind. O método egípcio de numeração, baseado no sistema decimal, consistia em repetir os símbolos dos números (unidades, dezenas, centenas, milhares) tantas vezes quanto fosse necessário para obter o número desejado. Não existia o zero. Na matemática egípcia podem-se distinguir três partes: a aritmética, a álgebra e a geometria.

O conhecimento da geometria encontrou considerável aplicação prática na agrimensura, que desempenhou um papel significativo no Egito.

[...]

O calendário civil egípcio constava de um ano de 365 dias, o mais exato conhecido na Antiguidade. Ao lado desse calendário civil, os egípcios também utilizavam um calendário religioso, lunar, estando aptos a prever com razoável precisão as fases da Lua.

[...]

Para determinar as horas do dia, que também variavam conforme as estações, os egípcios utilizavam um gnomon, isto é, uma simples vara plantada verticalmente numa prancha graduada, munida de um fio de prumo. O instrumento servia para a medição do tempo gasto na irrigação dos campos, uma vez que a água tinha de ser distribuída imparcialmente. Assim como o gnomon, os egípcios tinham relógios de água colocados no interior dos templos. Esses relógios foram tomados de empréstimo e aperfeiçoados pelos gregos: são as clepsidras da Antiguidade. Eram feitos no Egito já em -1580.

Os antigos egípcios aplicaram seus conhecimentos de matemática à extração, transporte e assentamento dos enormes blocos de pedra utilizados em seus projetos arquitetônicos. O Egito desenvolveu uma grande variedade de formas arquitetônicas, das quais a pirâmide, sem dúvida, é a mais característica. [...]

Até a conquista romana, a arquitetura civil continuou a empregar o tijolo cru, mesmo nas construções de palácios reais. Outra contribuição no campo da arquitetura é a criação da coluna, que, a princípio, era embutida na parede e mais tarde tornou-se isolada.

A paisagística e o urbanismo são outros aspectos da arquitetura egípcia. Esse gosto egípcio por jardins-parque transmitiu-se aos romanos.

[...]

Um fato, ao menos, parece confirmado: as tradições arquitetônicas dos faraós penetraram na África através de Méroe e, depois, de Napata, que transmitiram formas - pirâmides e pilonos, entre outras - e técnicas - construção com pedras talhadas pequenas e bem modeladas.

A contribuição cultural, esse aspecto abstrato do legado egípcio faraônico, abrange as contribuições nos domínios da escrita, da literatura, da arte e da religião.

Os egípcios desenvolveram um sistema de escrita hieroglífica em que muitos dos símbolos derivaram do seu meio ambiente africano. Pode-se afirmar, portanto, que não se trata de um empréstimo, mas de uma criação original.

Os contatos culturais com a escrita semítica ocorridos no Sinai devem ter contribuído para a invenção de um verdadeiro alfabeto. Este foi tomado de empréstimo pelos gregos, e sua influência estendeu-se à Europa. Os antigos egípcios inventaram igualmente os instrumentos de escrita. A descoberta do papiro, transmitido à Antiguidade Clássica, certamente contribuiu para a difusão de ideias e conhecimentos. A extensa literatura da época faraônica cobre todos os aspectos da vida dos egípcios, desde as teorias religiosas até os textos literários, como narrativas, peças de teatro, poesia, diálogos e crítica. [...]

Bom exemplo dos sentimentos expressos na literatura egípcia é o texto inscrito em quatro urnas funerárias de madeira encontradas em el-Bersheh, no médio Egito. Pode-se admitir, finalmente, que determinados elementos da literatura egípcia tenham sobrevivido até nossos dias graças às maravilhosas narrativas da literatura árabe. Esta, com efeito, parece ter suas fontes na tradição oral egípcia.

[...] Os antigos egípcios aliavam às suas atividades terrenas a esperança de uma vida após a morte; assim, a arte egípcia é particularmente expressiva por representar crenças profundamente arraigadas.

[...]

Pode-se considerar a religião como uma das contribuições filosóficas do Egito. Os antigos egípcios desenvolveram inúmeras teorias sobre a criação da vida, o papel das forças naturais e a reação da comunidade humana frente a elas, assim como sobre o mundo dos deuses e sua influência no pensamento humano, os aspectos divinos da realeza, o papel dos sacerdotes no interior da comunidade e a crença na eternidade e na vida além-túmulo.

Essa profunda experiência do pensamento abstrato influenciou a comunidade egípcia de tal modo que terminou por produzir um efeito duradouro sobre o mundo exterior. Para o historiador, é visível a influência religiosa egípcia sobre certos aspectos da religião greco-romana, como se pode constatar pela popularidade da deusa Ísis e do seu culto na Antiguidade Clássica.

A Fenícia desempenhou um papel especialmente importante na transmissão do legado faraônico ao resto do mundo. A influência do Egito sobre a Fenícia pode ser atribuída aos contatos econômicos e culturais entre as duas regiões. [...] Os contatos com a Fenícia eram indispensáveis para a importação de matérias-primas vitais, como a madeira. Os comerciantes egípcios estabeleceram um santuário em Biblos, cidade com que mantinham estreitos contatos comerciais. A cultura e as ideias egípcias difundiram-se por toda a Bacia do Mediterrâneo por intermédio dos fenícios.

A influência da cultura egípcia sobre a sabedoria bíblica, entre outras, é notável. As relações comerciais e culturais com o Levante estabeleceram-se ao longo do II e do I milênio antes da Era Cristã, período que compreende o Médio e o Novo Império, bem como as últimas dinastias. Os contatos desenvolveram-se naturalmente, acompanhando a expansão política e militar egípcia; traços da arte egípcia aparecem em vários sítios sírios e palestinos.

[...]

Vestígios da escrita hieroglífica egípcia foram encontrados nos textos semíticos do Levante. [...]

Esse vasto legado faraônico, disseminado pelas civilizações antigas do Oriente Próximo, foi por sua vez transmitido à Europa moderna por intermédio do mundo clássico. Os contatos econômicos e políticos entre o Egito e o mundo mediterrânico oriental, no período histórico, resultaram na disseminação de objetos da civilização faraônica por regiões como a Anatólia e o mundo egeu pré-helênico.


Os fragmentos retratam cenas da famosa expedição promovida pela rainha Hatshepsut para o reino de Punt. Relevo em pedra calcária, XVIIIª dinastia (c. 1473-1458 a.C.). A cena mostra o governante de Punt e sua esposa. O príncipe, com cabelos curtos e barba longa, usa um saiote com uma adaga na cintura e um bastão na mão esquerda. A esposa  é retratada como uma figura obesa. Os nativos de Punt carregam produtos para a delegação egípcia.

Ao lado das relações entre o Egito faraônico e o mundo mediterrânico, é importante sublinhar a presença de laços culturais a unir o Egito ao interior africano. Tais vínculos existiram tanto na pré-história quanto na época histórica. A civilização egípcia impregnou as culturas africanas vizinhas. Estudos comparativos comprovaram a existência de elementos culturais comuns à África negra e ao Egito, como, por exemplo, a relação entre a realeza e as forças naturais. [...]

SILVÉRIO, Valter Roberto (coord.). Síntese da coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013. p. 172-5, 177-181.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Documento: Combate à vagabundagem na Idade Média

Os mendigos (Os aleijados), Pieter Bruegel, o Velho

"O ano dessa ordenação do rei da França, 1351, está muito próximo do ano em que se iniciou a Peste Negra, a qual teria dizimado cerca de um terço da população europeia. O século XIV foi marcado por uma profunda crise, com a desvalorização da moeda e grandes falências de mercadores e banqueiros. O início da crise é anterior à Peste Negra, mas ela veio agravar a situação já calamitosa. Os motins, as revoltas, o banditismo e a mendicância atormentavam as elites e preocupavam as autoridades.

As medidas do rei João estão ligadas a essa situação de crise. É comum os grupos dominantes tentarem conter os efeitos das crises reprimindo as principais vítimas delas". (PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 66.)

João, pela graça de Deus, Rei da França...


1. Porque várias pessoas, tanto homens quanto mulheres, mantêm-se em ociosidade pela cidade de Paris e por outras cidades [...] e não querem expor os seus corpos a fazer qualquer trabalho, antes vagabundeiam uns, e outros permanecem nas tabernas e bordéis; é ordenado que toda feitura de tal gente ociosa ou jogadores de dados ou cantores de rua ou vagabundos ou mendicantes, de qualquer estado ou condição que sejam, tendo ou não ofício, homens ou mulheres que sejam sãos de corpos e membros, se prontifiquem a fazer alguma tarefa de labor, com que possam a vida ganhar, ou evacuem a cidade de Paris e outras cidades [...] dentro de três dias a contar deste pregão. E, se após os ditos três dias aí forem encontrados ociosos, ou jogando dados, ou mendigando, serão presos e levados à prisão a pão, e assim mantidos pelo espaço de quatro dias; e quando tiverem sido libertados da dita prisão, caso sejam encontrados ociosos ou sem bens com que possam manter a vida, ou sem aval de pessoa idônea, sem fraude, para quem façam trabalhos ou prestem serviços, serão postos no pelourinho; e a terça vez serão assinalados na testa com ferro em brasa, e banidos dos ditos lugares.

2. Item, far-se-á empenho junto ao bispo, ou provisor de Paris, e junto aos religiosos jacobinos, franciscanos, agostinianos, carmelitas e outros, para que digam aos frades de suas ordens que, quando pregarem nas paróquias e noutras partes, e também os curas nas suas próprias pessoas, digam seus sermões que quem quiser dar esmolas não o façam a nenhuma pessoa sã de corpo e de membros, nem a pessoa que trabalho possa fazer, com que possa ganhar a vida; mas as dêem a gente cega, aleijadas e outras miseráveis pessoas.

3. Item, que se diga a quem guarda e governa os hospitais ou casas de misericórdia que não se dêem albergue a tais vagabundos, ou tais pessoas ociosas, se não forem aleijados ou doentes passantes pobres, sequer por uma noite.

4. Item, os prelados, barões, cavaleiros, burgueses e outros digam aos seus esmoleres que nenhuma esmola dêem a tais vagabundos, sãos de corpo e de membros.

Ordenação de João, o Bom, promulgada em fevereiro de 1351. Ordenances dos reis de France. Citado por DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 115-8.

domingo, 18 de outubro de 2015

O Guarani, um cavaleiro romântico nas florestas brasileiras

Cabeça de índio, Henrique Bernardelli

"Guerreiro branco, Peri, primeiro de sua tribo, filho de Ararê, da nação goitacá, forte na guerra, te oferece o seu arco, tu és amigo."

O índio terminou aqui a sua narração.

Enquanto falava, um assomo do orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, filho das florestas, era um rei, tinha a realeza da força.

Apenas concluiu , a altivez do guerreiro desapareceu, ficou tímido e modesto, já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas, cuja superioridade de educação o seu instinto reconhecia.

D. Antônio o ouvia sorrindo-se do seu estilo ora figurado, ora tão singelo como as primeiras frases que balbucia a criança aos peitos maternos. [...]

[...]

- Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.

Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.

Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no ar, ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se aos seus pés submissa, vencida, escrava!

[...]

- Peri!... exclamou Álvaro.
- Não te zangues, disse o índio com doçura; Peri te ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira d'água, fica verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri é o vento que passa docemente para não abafar o murmúrio da corrente; é o vento que curva as folhas até tocarem n'água.

Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?

A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que reproduzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu.

[...]

Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta?

Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.

[...]

Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável:

- Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.

Era essa a ideia que ele há pouco acariciava no seu espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.

[...]

Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?

[...]

Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar.

Depois Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã; queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono celeste do Criador.

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: FTD, 1999. p. 147, 158, 176, 177, 421-423.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Os índios botocudos na visão dos cientistas alemães Spix & Martius

Família de índios botocudos atravessando um rio, Maximilian zu Wied-Neuwied

Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich von Martius foram dois cientistas alemães, o primeiro, zoólogo, e o segundo, botânico, que empreenderam uma longa viagem pelo Brasil entre 1817 e 1820. Suas minuciosas observações se transformaram em uma obra de três volumes, que hoje constituem uma importante fonte para os historiadores que estudam a época.

O fragmento reproduzido abaixo é extremamente revelador da visão que os europeus tinham das culturas indígenas. Não conseguiam ver nas maneiras de viver dos indígenas alternativas válidas de sociedade. O culturalmente diferente era considerado um sinal de selvageria, bestialidade, atraso.

Os botocudos mereceriam ser tratados como criminosos por "serem ciosos da sua liberdade". Ou perdiam a liberdade e eram integrados à "civilização" como trabalhadores úteis aos colonos e fornecedores de bens, ou seriam tratados como verdadeiras feras selvagens. (PEDRO, Antonio. LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 38.)

Família de botocudos em marcha, Jean-Baptiste Debret

Quando, no dia seguinte, cavalgamos pelo cerrado [...] fomos subitamente surpreendidos por um bando de índios nus, homens e mulheres, que vinham em completo silêncio pela estrada.

[...]

[...] era de horror a nossa impressão, à vista destes homens, que, na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade. Indolência, embotamento e rudeza animal estampam-se-lhes nos rostos quadrangulares, achatados, nos pequenos olhos esquivos; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios inchados, na barriga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de passos curtos.

[...]

Como depois soubemos, esses botocudos meio mansos do Rio Doce eram transferidos para as colônias do Rio Grande [atual Minas Novas] ou Belmonte [atual Jequitinhonha], a fim de se tornarem menos perigosos nas suas primitivas tabas e para que, depois de terem observado de perto o modo de vida dos colonos e suas instalações, teriam influência favorável sobre os companheiros da tribo, quando regressassem; estavam eles justamente em caminho, de volta para as suas matas preferidas.

[...]

Com presentes e trato bondoso e avisado, o comandante deste distrito [São Miguel, margem direita do Rio Grande] tem conseguido, até aqui, estabelecer relações entre esses selvagens, ainda hoje broncos e até aqui sempre hostis, e os portugueses. Foram fundadas diversas aldeias desses antropófagos, ao longo do rio, e já os botocudos começam a ocupar-se com a lavoura; eles trazem aos colonos, de tempos a tempos, ipecacuanha, papagaios domesticados, peles de onça etc. para permutar com utensílios europeus, e prestam serviços, como remadores, na navegação para a Vila de Belmonte. De fato, ciosos de sua liberdade, ainda não se submeteram aos portugueses [...] contudo, vê o filantropo, com prazer, o contínuo progresso desses filhos das selvas, que, ainda no começo deste século, eram, por decreto real, declarados fora da lei e inimigos do Estado, perseguidos pelas patrulhas e entradas, como feras, e capturados e condenados a dez anos de servidão, ou trucidados com crueldade sem precedentes.

[...]

[...] importa pacificar os botocudos, empregá-los como remadores nesses cursos d' água [...] e assim, pelo mais pacífico de todos os meios , o tráfego comercial, promover a sua civilização gradual.

SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil - 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 55-6. v. 2.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Iconografia: Praça das três culturas

Praça das Três Culturas, Cidade do México

A foto retrata uma paisagem da Cidade do México. Nela podemos observar uma combinação ilustrativa das trocas culturais que ocorreram entre os colonizadores espanhóis e a civilização asteca. Em primeiro plano vemos as ruínas de um templo asteca, mantidos como objetivos culturais e turísticos. Mais ao fundo, a igreja barroca de Santiago Tlatelolco, a qual atesta a religiosidade católica do passado e do presente. Essa religiosidade é marcada por fortes influências das crenças tradicionais dos povos indígenas, resultando no sincretismo religioso que caracteriza o catolicismo latino-americano. Ao fundo e à esquerda vemos prédios modernos, de muitos andares, símbolos da modernidade capitalista, que abala não só os estilos de vida tradicionais, mas também a religiosidade de raízes coloniais.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 63.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Bayle, um historiador imparcial

Retrato do escritor e filósofo francês Pierre Bayle, Louis Ferdinand Elle, o Jovem

Todos os que conhecem as leis da História estarão de acordo em que um historiador, se quiser cumprir fielmente as suas funções, deve despojar-se do espírito de adulação e do espírito de maledicência e colocar-se o mais possível na posição de um estóico, a quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar atento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o ressentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até mesmo o amor à pátria. Deve esquecer que está num certo país, que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor de gratidão a este ou àquele, que tais e tais são seus progenitores ou seus amigos. Um historiador, no exercício de sua função, é como Melquisedeque, sem pai, sem mãe e sem genealogia. Se lhe perguntarem donde veio, deverá responder: não sou francês, nem inglês ou espanhol; sou habitante do mundo, não estou a serviço do imperador, nem do rei da França, mas somente a serviço da verdade; essa é a minha única rainha, só a ela prestei juramento de obediência.

BAYLE, Pierre. "Projeto de um dicionário crítico". In: CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. p. 281.

sábado, 10 de outubro de 2015

Aspectos da vida feudal

Ilustração do manuscrito das Cantigas de Santa Maria, escritos em galego-português durante o reinado de Alfonso X, o sábio (1221-1284). Artista desconhecido.

Texto 1. Em suas propriedades os nobres dedicavam grande parte de seu tempo a divertimentos ao ar livre; organizavam torneios, combates violentos entre numerosos cavaleiros armados, destinados a mantê-los em forma para as frequentes expedições guerreiras; justas, concursos de habilidade e destreza entre poucos concorrentes e caçadas, uma das suas distrações preferidas. Modalidade de caça muito em voga na Idade Média foi a caça auxiliada por cães ou por falcões adestrados para a captura de aves. Nos jardins ou no interior do castelo realizavam-se leituras, danças, banquetes, jogos, espetáculos proporcionados por artistas ambulantes, saltimbancos e menestréis, que divertiam a corte com proezas e agilidades, músicas e cantos celebrando façanhas heróicas ou aventuras cavalheirescas em busca de amor e de glórias. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. [Org.]. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 135-6.

Texto 2. Os grandes senhores feudais eram [...] os homens mais ricos e poderosos de sua região e, com isso, cresceu o desejo de manifestar essa posição mediante o esplendor de suas cortes. [...] Na concorrência entre os governantes de territórios, elas se tornaram os locais para exibir o poder e a riqueza de seus senhores. Estes, por isso mesmo, reuniam escribas não só para finalidades administrativas mas também para redigir a crônica de suas façanhas e destino. [...] No contexto da sociedade secular, no caso daqueles que se haviam especializado na escrita [...] e tinham de viver disso, fossem ou não amanuenses, o patrocínio da corte constituía o único meio de sustento.

Artistas viajavam de um castelo para outro. Se alguns eram cantores, a maioria trabalhava simplesmente como palhaços ou bufões [...]. Nessa qualidade, eram encontrados também nos castelos dos cavaleiros mais simples e menos importantes. Mas só os visitavam de passagem, pois não havia alojamento, nem interesse, e, não raro, tampouco meios de alimentá-los e remunerá-los por um longo período. Tais condições só as poucas cortes maiores podiam fornecer. [...] Os senhores mais importantes, mais ricos - o que vale dizer, os de graduação mais alta -, podiam atrair os melhores artistas para suas cortes. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. v. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 72-73.

Texto 3.  [...] uns rezavam, outros combatiam e a maioria trabalhava.

Era uma sociedade bem agradável para a minoria [...], onde cavaleiros e damas viviam em castelos, distraindo-se em festas e refeições, em que os criados serviam comidas saborosas e constantemente enchiam os grandes copos de vinho de seus poderosos senhores. Por vezes, músicos e artistas tornavam o ambiente mais alegre e agradável.

Estes senhores possuíam extensas propriedades, frequentemente reunindo-se em torneios. Então, em meio à fanfarra dos tambores e aos toques dos clarins, os turbulentos cavaleiros enfrentavam-se em combates singulares, exibindo suas qualidades guerreiras para uma platéia, onde todos trajavam ricas vestimentas. Ainda que alguns caíssem feridos, com frequência mortalmente, era visível a alegria geral.

Por vezes, muitos saíam em loucas cavalgadas, acompanhados por suas matilhas de cães e dezenas de servidores, para caçar raposas e outros animais. Em meio à algazarra geral, não hesitavam em atropelar, com seus cavalos, quem cruzasse seu caminho, ou, por simples distração, conduzir seus corcéis pelos campos cultivados...

E o duro e estafante trabalho diário dos camponeses, que sustentavam a ociosidade divertida e alegre da minoria, acabava sendo parcialmente perdido.

E os campos cultivados, por aqueles que trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol, viviam em pobres cabanas e se vestiam de roupas grosseiras, ainda estavam sujeitos a ser pilhados e incendiados quando ocorriam guerras entre os senhores feudais. AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]; Fazendo a História: da Pré-História ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 150.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Independências na América hispânica: liberdade para quê?

O libertador Simón Bolívar em traje de campanha, Arturo Michelena

Os homens que, descontentes com o sistema colonial, lideraram o processo de independência política estavam imbuídos das ideias liberais burguesas "descobertas" nos estudos realizados na Europa ou em livros dos "franceses" entrados clandestinamente no continente. Julgavam-se absolutamente bem preparados para alcançar seus objetivos e acreditavam esperançosamente no futuro. As ideias de liberdade, de igualdade jurídica, da legitimidade da propriedade privada, da educação como remédio para os grandes males, da necessidade do império da lei, do progresso e da felicidade geral do povo estavam todas presentes nos projetos desses líderes liberais.

Na América espanhola, homens como Bolívar, San Martín, Mariano Moreno, Bernardo de Monteagudo, José Cecílio del Valle e frei Tereza Servando de Miler apontavam oposições bastante claras. O mundo novo que surgia era para eles o lugar da liberdade, que se opunha à Espanha, reino do despotismo, da opressão e do arbítrio. A América era o espaço do novo, da esperança, do futuro.


Batalha de Rancagua em 1814, Giulio Nanetti

Entre os anos de 1810 e 1820 os objetivos fundamentais da luta desses grupos eram os mesmos e o inimigo comum era a Espanha. Todos os esforços concentravam-se para acabar com o domínio da Espanha e a tônica dos discursos era a liberdade.

Liberdade, entretanto, não é um conceito entendido de forma única; tem significados diversos, apropriados também de formas particulares pelos diversos segmentos da sociedade. Para Simón Bolívar, um representante das classes proprietárias venezuelanas, liberdade era sinônimo de rompimento com a Espanha, para a criação de fulgurantes nações livres, que seriam exemplos para o resto do universo. Mas principalmente nações livres para comerciar com todos os países, livres para produzir - única possibilidade, segundo sua visão, do desabrochar do Novo Mundo.


Encontro de San Martín e Belgrano em Posta de Yatasto, Augusto Ballerini

Já para Dessalines, um dos líderes da revolução escrava do Haiti, que alcançou a independência da França em 1804, liberdade queria dizer antes de tudo o fim da escravidão; mas carregava também um conteúdo radical de ódio aos opressores franceses. Seu discurso manifestava esses sentimentos. Dizia Dessalines ao povo do Haiti:


Generais intrépidos, que insensíveis às próprias desgraças haveis restaurado a liberdade prodigando-lhes todo vosso sangue, saibam que nada haveis feito se não derdes às nações um exemplo terrível, mas justo, da vingança que deve exercer um povo orgulhoso de ter recobrado sua liberdade e zeloso de mantê-la; amedrontemos os que tentam nos arrebatá-la: comecemos pelos franceses [...] Que tremam ao abordar nossas costas, se não pela lembrança das crueldades que eles exerceram, ao menos pela nossa terrível resolução de condenar à morte todo francês que ouse pisar com seus pés sacrílegos o território da liberdade.


Dessalines, Artista desconhecido

Para outros dominados e oprimidos, como os índios mexicanos, a liberdade passava distante da Espanha e muito próxima da questão da terra. Na década de 1810, Hidalgo e Morelos, os líderes da rebelião camponesa mexicana, curas pobres de pequenos povoados, clamavam por terra para os deserdados. Seus exércitos, que levavam à frente os estandartes da Virgem de Guadalupe e do rei espanhol Fernando VII, lutavam para que a terra, inclusive a da Igreja, fosse dividida entre os pobres. Morelos afirmava que os inimigos da nação eram os ricos, os nobres, os altos funcionários. Determinou que, quando se ocupasse uma povoação grande ou pequena, devia-se informar sobre os ricos, os nobres e os funcionários que nela houvesse "para despojá-los no momento de todo o dinheiro e bens raízes ou móveis que tenham, para repartir a metade de seu produto entre os vizinhos pobres do mesmo povoado [...] reservando a outra metade para a caixa militar". Hidalgo, em dezembro de 1810, decretava, nas terras livres do jugo espanhol, a abolição da escravidão e do tributo indígena e determinava que essa disposição fosse cumprida em dez dias, sob pena de morte para os infratores.


Hidalgo, Antonio Fabres

Mas no oceano das propostas político-ideológicas patrocinadas pelos diversos setores das classes proprietárias, poucas são as manifestações concretas que nos chegam por parte dos dominados. No México, o Acordo de Iguala, estabelecido entre Itúrbide, general repressor dos exércitos camponeses recém-convertido à causa da independência, e Guerrero, líder remanescente dos grupos guerrilheiros e populares, marcava a submissão do segundo ao primeiro: independência política agora, reformas sociais depois.


Proclamação e juramento da Independência do Chile em 1818, Pedro Subercaseaux

A independência se fez em nome das ideias liberais, justificando os interesses dos setores dominantes criollos que mantiveram a direção política do processo na América espanhola. Caíam os monopólios reais, abriam-se as linhas de comércio, a economia devia se reger sem a intervenção da antiga metrópole. Algumas concessões aos dominados também foram aceitas, mesmo no período de luta: Bolívar, por exemplo, acedeu em oferecer alforria aos escravos que se ligassem aos exércitos patrióticos.

O Estado, que começava a se organizar depois de atingida a independência, assumiu como tarefa destruir a velha ordem colonial. Em primeiro lugar, tendo em vista os interesses criollos dominantes e também as pressões dos comerciantes ingleses, havia de derrubar todo o regime de monopólios, privilégios e restrições ao comércio e outros ramos da produção em geral. Essa foi uma iniciativa realizada com êxito, ainda que isso não tenha significado, como esperavam os criollos, um grande crescimento econômico imediato.


Francisco de Miranda, Martin Tovar y Tovar

Outro objetivo do Estado que surgia era a destruição dos foros especiais do Exército e da Igreja. Essa luta desenvolveu-se com muitas particularidades nacionais, sendo a mais encarniçada aquela desencadeada contra a Igreja e que em alguns países cindiu a sociedade entre defensores e acusadores da instituição toda-poderosa. Essa luta terminou, em geral, já no fim do século - em alguns países no século XX -, com a separação total entre o Estado e a Igreja e com a subordinação desta ao poder maior do Estado laico.

Os privilégios dos espanhóis foram, na verdade, rapidamente suplantados nessa batalha, já que terminaram por perder seus favores políticos e econômicos, chegando mesmo a ser expulsos de alguns países.

Esse Estado esteve sempre preocupado com a manutenção da ordem social; os setores mesmo divergentes das classes dirigentes sempre se aliaram, sustentando o Estado, em momentos em que a ordem instituída foi ameaçada pelos de abajo. As constantes revoltas de índios, de camponeses e de escravos contribuíram para o fechamento autoritário do Estado. Entretanto, algumas concessões foram feitas. Aboliu-se o tributo indígena e acabaram-se, ou melhor, aplainaram-se as distinções de castas. A escravidão negra foi abolida, mais cedo ou mais tarde, nos países independentes, tendo permanecido apenas (além do Brasil) nas ilhas de Cuba e Porto Rico, ainda sob o domínio espanhol.

PRADO, Maria Ligia. A formação das nações latino-americanas. São Paulo: Atual, 2008. p. 13-8. (Discutindo a história)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Os mitos dos povos primitivos

Pajé, E. Goodall

Os mitos, a religião, foram, em princípio, a forma que o homem encontrou para tentar explicar a origem da terra, sua própria origem. É através das crenças e mitos que o homem primitivo passa a sua cultura para seus descendentes, além de utilizá-los como uma forma de manter o grupo unido, fiel a suas tradições. [...] na medida em que todos os membros de uma sociedade se sentiam fiéis ao mesmo ancestral, entendiam que todos tinham uma origem comum, aumentava seu sentimento de unidade.

Além disso, o respeito às tradições deixadas pelos antepassados permitem que a tribo organize o comportamento do grupo, fazendo com que todos respeitem as regras básicas, para que a tribo possa sobreviver. Por exemplo: para o homem Tonga (tribo africana do sul de Moçambique), alguma coisa de ruim pode lhe acontecer, caso não tenha cumprido devidamente os ritos determinados pela tradição com relação aos seus antepassados. Se procurar um feiticeiro para aconselhá-lo, este certamente dirá: "Teu antepassado reclama o rito que não foi cumprido". Para este homem, a importância do seu antepassado é tão grande, é tão presente em sua mente, que muito provavelmente o rito cumprido solucionará o seu problema. Ele se sentirá melhor, pois seu antepassado o perdoou. Ele agora está integrado ao seu grupo novamente.

Os mitos dos povos primitivos estão cheios de sabedoria.

Alguns deles nos dão hoje a explicação correta sobre o tipo de plantas que podem ser usadas para a alimentação, quais podem ser usadas na medicina, além de nos relatar a origem de vários grupos, suas tradições e sua história.

Durante muito tempo, os homens modernos desprezaram os mitos e as religiões do povo primitivo. Achavam que todo homem que não vivesse dentro de uma sociedade moderna não devia ser levado "a sério".

Entendiam sua religião, seus ritos, apenas como uma maneira primitiva de "botar para fora" as suas angústias e medos diante de uma natureza desconhecida e, por isso, ameaçadora.

Demorou muito para que os historiadores e outros pesquisadores de nossa época percebessem que o homem primitivo, associando os seus conhecimentos práticos, culto aos antepassados e magia, exprimiam um conhecimento sobre a sua realidade, os homens e a natureza.

Foi muito difícil para o homem moderno entender que podia aprender muito com as crenças e mitos do homem primitivo. Foi difícil perceber que, para entender como viviam, era preciso entender a fundo sua religião. Esta tarefa foi muito dificultada pelos países que exploravam os povos que viviam em uma organização social igualitária, seja na América, seja na África. Estes justificavam sua dominação, dizendo que todas as manifestações destes grupos eram selvagens, primitivos, ignorantes, incapazes de construírem por si só o seu caminho. Por outro lado, os pesquisadores e outros cientistas, que não aceitavam a dominação e exploração exercida contra estes grupos, na tentativa de denunciar os "civilizados" e mostrar que estes não passavam de exploradores, e que seu único interesse em relação a estas comunidades era utilizá-las para se enriquecer cada vez mais, acabavam por cair em outro extremo: analisavam a vida social e política destes grupos como sendo um verdadeiro paraíso! Sem problemas, conflitos ou injustiças, e que tudo de errado, que quebrava a harmonia perfeita dos povos primitivos, tinha sido trazido pelo invasor.

Ora, jamais existiu uma sociedade assim, sem conflitos!

É importante lembrar que se, por um lado, as crenças representavam conhecimentos sobre a realidade que permitiam ao homem relacionar-se com a natureza e entre, por outro lado, algumas crenças e ritos, por estarem ligados a contradições sociais profundas, ou a alguns fenômenos naturais que atemorizavam aos homens, ao invés de permitir que o homem cada vez mais ultrapassasse os desafios que surgiam, o impediam, colocando regras respeitadas muitas vezes pelo medo, que o homem aceitava sem jamais questioná-las.

Os mitos e crenças de que falamos, são formas que o homem primitivo encontrou para explicar, regular e manter o seu mundo. O mundo do homem primitivo. Neste tipo de sociedade, onde não há a exploração do homem pelo homem, e a divisão do trabalho está pouco desenvolvida, as explicações que os homens fazem do seu mundo estão ligadas à sua vida. Não há separação entre o trabalho e a cultura, o trabalho e o prazer etc. Mas todos os homens procuram explicar o mundo em que vivem. E a maneira pela qual constroem esta explicação vai variar de época para época. As ideias que os homens produzem, as explicações do mundo que elaboram, estão ligadas à sua atividade material, à sua maneira pela qual o homem se organiza para sobreviver na sua relação com outros homens.

Com o surgimento da sociedade de classes, e a divisão entre os que produzem e os que não produzem, a unidade entre o pensar/saber e fazer vai aos poucos desaparecendo.

"A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real".

"As ideias da classe dominante são ideias dominantes em cada época; em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe com isso, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual".

A classe dominante tem de "representar" os seus interesses como os interesses de todos os membros da sociedade - tem de dar às suas ideias a forma de universalidade e representá-las como as únicas racionais e válidas.

Às ideias, à moral, à religião, aos costumes etc chamamos de ideologia.

A ideologia faz com que as ideias expliquem as relações sociais e políticas, tornando impossível perceber que tais ideias só são explicáveis pela própria forma de sociedade e da política.

BARBOSA, Leila Maria Alvarenga; MANGABEIRA, Wilma Colonia. A incrível história dos homens e suas relações sociais. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 52-5.

domingo, 4 de outubro de 2015

O mundo bárbaro: os costumes

Breviário de Alarico, compilação de leis romanas do reino de Tolosa sob Alarico II (487-507 d.C.). Manuscrito latino, 803-814. Artista desconhecido

Em sua longa existência, o Estado Romano entrou em contato com os mais diversos povos. Muitos desses povos foram vencidos e passaram a fazer parte do Mundo Romano. Outros, no entanto, continuaram fora das fronteiras do Império Romano. Partindo da ideia de que Roma era sinônimo de Civilização, os romanos consideravam bárbaros todos os povos que deles viviam distantemente e falavam outras línguas que não o latim.

Dentre os povos julgados bárbaros pelos romanos sobressaíram os germanos, que, ao penetrarem em massa no Império Romano, contribuíram decisivamente para a formação da sociedade europeia. [...]

[...] Começavam novos tempos, porque a sociedade, resultante da interpenetração de romanos e germanos, evoluiu lentamente ao sentido do feudalismo. E essa transição do escravismo ao feudalismo processou-se do século V ao século X,

A origem dos germanos é discutida. No século III, viviam em terras situadas entre o Rio Reno, os Mares do Norte e Báltico, os Rios Danúbio e Vístula e os Montes Cárpatos: a chamada Germânia.

Seus costumes eram simples. Viviam em aldeias, sendo a caça importante atividade econômica. [...] Praticavam a agricultura, a criação de gado e a pilhagem, como atividade econômica complementar. Desconheciam a escrita, e o comércio era feito à base de trocas, embora muitos germanos, localizados próximos às fronteiras do Império Romano começassem a utilizar moedas. Seu artesanato era rudimentar.

A união de várias aldeias formava uma tribo. As tribos agrupavam-se em povos, como os visigodos, os ostrogodos, os alanos, os vândalos, os alamanos, os suevos, os saxões, os anglos, os jutos, os francos etc.

Em épocas recuadas, sua principal instituição política era a Assembleia dos Guerreiros, que, uma vez por ano, decidia da necessidade, ou não, de empreender uma expedição de guerra. Geralmente, elegia um chefe guerreiro, o chamado Koenig, que os romanos chamaram Rei. A continuidade das guerras permitiu que se consolidasse a autoridade dos Chefes Guerreiros ou Reis.

Sua religião era politeísta: adoravam inúmeros deuses, os quais se identificavam com as forças da Natureza. Odin ou Wotan era o senhor do Céu e deus da guerra e do fogo; Thor, o deus do trovão; Mon, a deusa Lua; Sunna, a deusa do Sol; Fréia, a deusa da primavera e do amor.

"Nas modernas línguas germânicas, o alemão e o inglês, os nomes de alguns dias originam-se dos nomes daquelas antigas divindades. Assim, domingo, em alemão, é Sunntag, e Sunday, em inglês, palavras que significam dia do Sol (Sunna); segunda-feira é Montag, em alemão, e Monday, em inglês, dia da Lua (Mon); sexta-feira é Freitag, em alemão, e Friday, em inglês, dia de Fréia."

Acreditavam os germanos que os deuses moravam no Valhala, para onde iriam os guerreiros valentes, mortos em combate. Para lá seriam conduzidos pelas Valquírias, deusas guerreiras que montavam cavalos alados.

A propósito, veja o depoimento de Amiano Marcelino (320-390), historiador romano, a respeito dos alanos:

"Os alanos são geralmente belos e garbosos. Seus cabelos puxam para louro; o olhar é antes marcial que selvagem. Na rapidez do ataque, nada ficavam devendo aos hunos [...] O gozo que os espíritos mansos e pacíficos encontram em um lazer espiritual, eles colocam nos perigos e na guerra. A seus olhos, o supremo bem é perder a vida em um campo de batalha. Morrer de velhice ou por um acidente é um opróbrio [vergonha], que eles cobrem de horríveis ultrajes. Matar um homem é um heroísmo para o qual não medem os elogios. O mais glorioso troféu é a cabeleira do inimigo escalpado. Serve de enfeite para o cavalo de guerra. Não se vê junto a eles nem templos nem santuário nem mesmo nicho coberto de palha. Uma espada nua, fincada na terra, segundo o rito bárbaro, torna-se o emblema de Marte. Honram-na devotadamente como a soberana das regiões que percorrem."

Não lhe parece que aquele autor romano se mostra claramente impressionado pelo culto da força e pelo caráter guerreiro dos alanos?

Também as palavras do historiador Tácito (54-130), no seu livro Costumes dos Germanos, revelam como o espírito guerreiro dos germanos impressionava a sociedade romana. Veja, a seguir, como a descrição dos vândalos apresenta este povo como verdadeiros cavaleiros da Morte:

"[...] São selvagens e aumentam sua selvageria natural, emprestando os socorros da arte e do momento. Seus escudos são negros, seus corpos, cobertos de pintura. Para combater, escolhem noites escuras. Só pelo horror e a sombra, que encobrem este exército fúnebre, levam o terror ao inimigo. Ninguém poderia suportar a visita estranha e como que infernal. Pois, em toda a batalha, os olhos são os primeiros vencidos."

Alguns desses povos se haviam convertido ao Arianismo, heresia do Cristianismo [...]. Seria mais um ponto de atrito com as populações que viviam dentro das fronteiras do Império Romano, que desmoronou diante das invasões dos séculos IV e V.

AQUINO, Rubim Santos Leão de. [et alli]. Fazendo a História: da Pré-História ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 110-11.