"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A "pax romana"

Coreógrafos e atores. Mosaico romano. Casa do poeta trágico, Pompéia. 

A brilhante habilidade política de Augusto deu início à maior era romana. Nos duzentos anos seguintes o mundo mediterrâneo desfrutou as bênçãos da pax romana. O mundo antigo nunca vivera um período tão prolongado de paz, ordem, administração eficiente e prosperidade. Embora a Augusto se tivessem seguido governantes tanto eficientes quanto ineptos, as características essenciais da pax romana persistiram.

[...]

Os romanos chamaram a pax romana de "era da felicidade". Esse foi o período em que Roma cumpriu sua missão - a criação de um Estado mundial que proporcionou paz, segurança, civilização ordenada e o governo da lei. As legiões romanas defenderam as fronteiras dos rios Reno e Danúbio das incursões das tribos germânicas, contiveram os partos do Oriente e sufocaram os raros levantes que ocorreram. O sistema de adoção para a escolha de imperadores propiciou a Roma estabilidade interna e uma série de imperadores de excepcional capacidade. Esses imperadores não usaram a força militar desnecessariamente e lutaram por objetivos políticos sensatos. Os generais não combatiam de maneira imprudente, preferindo conter as baixas, evitar riscos e desencorajar os conflitos mediante a exibição de força.

O domínio construtivo. Foi construtivo o domínio de Roma. Eles construíram estradas, melhoraram portos, desbravaram florestas, drenaram pântanos, irrigaram desertos e cultivaram terras ociosas. Os aquedutos que fizeram levavam água fresca para grandes parcelas da população, e o sistema de esgoto eficaz melhorou a qualidade de vida. As mercadorias eram transportadas por estradas que os soldados romanos tornavam seguras e pelo mar Mediterrâneo, então livre de piratas. Circulava pelo Império uma grande variedade de mercadorias. Contribuía para o bem-estar do mundo mediterrâneo a moeda estável, não sujeita a depreciação.

Fundaram-se muitas cidades novas e as antigas tornaram-se maiores e mais ricas. Embora essas municipalidades houvessem perdido o poder de mover guerras e tivessem de se curvar à vontade dos imperadores, conservaram considerável liberdade de ação nos negócios locais. As tropas imperiais impediam as guerras civis tanto dentro das cidades como entre elas - dois pontos tradicionais dentro da vida urbana no mundo antigo. As municipalidades eram centros da civilização greco-romana, que se estendeu até os mais longínquos recantos do Mediterrâneo, dando continuidade a um processo iniciado na idade helenística. A cidadania, generosamente conferida, foi finalmente estendida a quase todos os homens livres, através de um decreto em 212 d.C.

Melhorias das condições dos escravos e das mulheres. Melhoraram também as condições daqueles que se encontravam na base da sociedade, os escravos. Na época de Augusto, podia-se estimar a quantidade de escravos em um quarto da população italiana. No entanto, esse número declinava à medida que Roma movia menos guerras de conquista. Além disso, durante o Império tornou-se comum a libertação de escravos. Os libertos tornavam-se cidadãos, com quase todos os direitos e privilégios dos demais: seus filhos não sofriam quaisquer discriminações jurídicas. Durante a República, os escravos haviam sido terrivelmente mal-tratados, muitas vezes eram mutilados, atirados às feras, crucificados ou queimados vivos. Vários imperadores promulgaram decretos protegendo-os contra senhores cruéis.

A posição da mulher melhorou pouco a pouco durante a República. A princípio, viviam sob a autoridade absoluta do marido. No tempo do Império, elas podiam ter bens e, se divorciadas, conservar o dote. Os pais já não podiam forçar as filhas a casarem contra a vontade. As mulheres podiam realizar negócios e dispor em testamento sem o consentimento dos maridos. Ao contrário das gregas, as romanas não ficavam reclusas em casa, mas podiam ir e vir à vontade. As mais ricas tinham mais oportunidade de educação que as mulheres da elite grega. A história do Império, na verdade toda a história romana, está cheia de mulheres talentosas e influentes: Cornélia, mãe de Tibério e Caio Graco, influenciou a política romana através de seus filhos. Lívia, a dinâmica mulher de Augusto, muitas vezes era consultada sobre importantes assuntos do governo; e, no século III, houve ocasiões em que mulheres controlaram o trono.

A comunidade mundial. Desde a Britânia até o deserto da Arábia, desde o Danúbio até as areias do Saara, quase 70 milhões de pessoas com diferentes línguas, costumes e histórias estavam ligadas pelo governo de Roma numa comunidade mundial. Ao contrário da República, quando eram notórias a corrupção e a exploração das províncias, os representantes do Império tinham um alto senso de respeitabilidade na preservação da paz, na instituição da justiça e na difusão da civilização romana.

Ao criar uma comunidade política estável e bem-organizada, com uma concepção ampla de cidadania, Roma resolveu os problemas causados pelas limitações da cidade-estado grega: guerras civis, guerras entre cidades e uma atitude provinciana que dividia os homens em gregos e não-gregos. Roma também fez frutificar um ideal da cidade-estado grega: a promoção e a proteção da vida civilizada. Ao construir uma comunidade mundial que rompeu as barreiras entre as nações, ao preservar e difundir a civilização greco-romana e desenvolver um sistema racional de direito que se ampliava a toda a humanidade, Roma concretizou a tendência ao universalismo e cosmopolitismo que surgira na idade helenística.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 104, 107-108.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Corpo a corpo com as mulheres

Jovens mulheres tomando banho, Henri-Pierre Picou 

Produto social, produto cultural e histórico, nossa sociedade fragmentou o corpo feminino e o recompôs, regulando seus usos, normas e funções. Nos últimos cem anos, a mulher brasileira viveu diversas transformações físicas. Viu ser introduzida a higiene corporal, que alimentada pela revolução microbiológica transformou-se numa radicalização compulsiva e ansiosa. Acompanhou a invenção do batom, em 1925, do desodorante, nos anos 1950. Nos anos 1920, cortou os cabelos "à la garçonne", gesto sacrílego contra vastas cabeleiras do século XIX. O aprofundamento dos decotes levou-a a aderir à depilação. O espartilho, graças ao trabalho feminino nas fábricas, diminuiu e se transformou em sutiã para possibilitar maior movimentação dos braços. "Manter a linha" tornou-se um culto. A magreza ativa foi a resposta do século XX à gordura passiva da belle époque. O jeans colado e a minissaia sucederam, nos anos 1960, o erotismo da mão na luva e das saias no meio dos tornozelos característicos dos anos 1920. Com o desaparecimento da luva, essa capa sensual que funcionava ao mesmo tempo como freio e estímulo do desejo, surgiu o esmalte de unhas. No decorrer do século XX a mulher se despiu. O nu, na mídia, nas televisões, nas revistas e nas praias, incentivou o corpo a desvendar-se em público, banalizando-se sexualmente. A solução foi cobri-lo de cremes, vitaminas, silicones e colágenos. A pele tonificada, alisada, limpa, apresenta-se idealmente como uma nova forma de vestimenta, que não enruga nem "amassa" jamais. Uma estética esportiva voltada ao culto do corpo, fonte inesgotável de ansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sensualidade imaginária e simbólica. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho. "Liberar-se" tornou-se sinônimo de lutar, centímetro por centímetro, contra a decrepitude fatal e, agora, culpada, pois o prestígio exagerado da juventude tornou a velhice vergonhosa.

O corpo feminino passou também por uma revolução silenciosa nas últimas três décadas. A pílula anticoncepcional permitiu-lhe fazer do sexo não mais uma questão moral, mas de bem-estar e prazer. A mulher tornou-se, assim, mais exigente em relação ao seu parceiro, vivendo uma sexualidade mais ativa e prolongada. Entre os sexos surgiram normas e práticas mais igualitárias. A corrente de igualdade não varreu, contudo, a dissemetria profunda entre homens e mulheres na atividade sexual. Quando da realização do ato físico, desejo e excitação física continuam percebidos como domínio e espaço da responsabilidade masculina. O casal raramente reconhece a existência e a autonomia do desejo feminino, obrigando-o a esconder-se atrás da capa da afetividade. A famosa "pílula azul", o Viagra, só veio a reforçar o primado do desejo masculino, explicitando uma visão física e mecanicista do ato sexual, reduzido ao bom funcionamento de um único órgão. Revanche masculina contra o "domínio de si" que a pílula anticoncepcional deu à mulher?

O espaço privado no qual tais mudanças se impuseram também mudou. A brasileira saiu do campo e veio para a cidade. Teve de mudar o corpo e alma. Em meio à solidão da grande cidade, ao trânsito, à corrida contra o relógio, aprendeu a sonhar com a emoção do sentimento sincero, com o fantasma da interação transparente e fusional. Leu preferencialmente romances e livros de auto-ajuda, sempre à espera de um príncipe encantado que a levasse de volta ao século XIX. Mas aprendeu também que, neste mundo de competição e trabalho, os sentimentos intensos demais provocam horrível embaraço, e que as lágrimas e a dor devem se submeter a implacável discrição afetiva; a um tal de "self control". Sob o choque da modernidade capitalista, ela viu igualmente a família se modificar. A crescente dissolução de casamentos que duram cada vez menos, o aumento de divórcios que não impedem ninguém de recomeçar constituíram-se em novo cenário para as relações afetivas. É o fim de um mundo constituído por vastas parentelas, famílias enormes, sobrinhos e afilhados reunidos nos domingos para o almoço; onde residem tensões mas também, e sobretudo, solidariedades. Ocupando cada vez mais os postos de trabalho, a mulher vê-se na obrigação de buscar um equilíbrio entre o público e o privado. Tarefa fácil? Não. O modelo que lhe foi oferecido como exemplo, até bem pouco tempo atrás, era o masculino. O modelo feminino de supermulher dos anos 1980, calcado sobre um modelo de forte investimento profissional e de competição, era o de "um homem como nós", como diriam alguns patrões. Mas a "executiva de saias" não deu certo. Isso porque são numerosas as dificuldades e os sacrifícios da mulher quando ela quer conciliar seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar conta do que sociólogos chamam de "dobradinha infernal". A carga mental em que se constituem as imbricações e sucessões de atividades profissionais, o trabalho doméstico, a educação dos filhos é mais pesada para ela do que para o homem. Quando quer investir profissionalmente, ela acaba por hipotecar sua vida familiar ou usar todo tipo de astuciosa bricolagem, sacrificando o tempo livre que teria para seu prazer e seu lazer e que poderia ser vivido na esfera doméstica. Muitas mulheres, menos afortunadas, são assim empurradas para uma pesadíssima jornada de trabalho

O diagnóstico das revoluções femininas no século XX é, por assim dizer, ambíguo. Ele aponta para conquistas, mas também para armadilhas. No campo da aparência, da sexualidade, do trabalho e da família houve conquistas, mas também frustrações. A tirania da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. A revolução sexual eclipsou-se diante dos riscos da aids. A profissionalização, se trouxe independência, trouxe também estresse, fadiga e exaustão. A desestruturação familiar onerou sobretudo os dependentes mais indefesos: os filhos. Como lidar com essas tensões? Em países onde tais questões já foram discutidas há algum tempo, a resposta veio como proposta para o século XXI: uma nova ética para a mulher. Que ética seria essa?

Uma ética baseada em valores absolutamente femininos. Me explico. De Mary Wollstonecraft, no século XVIII, à Simone de Beauvoir nos anos 1950, o objetivo do feminismo foi provar que as mulheres são "homens como os outros" e devem, consequentemente, beneficiar-se de clientes iguais. Todavia, numerosas vozes levantaram-se, no final do último milênio, para denunciar os conteúdos abstrato e falso dessas ideias. Elas nunca levaram em conta as diferenças concretas entre os sexos, incentivando as mulheres a conformar-se a um modelo concebido por e para homens. Para lutar contra a subordinação das mulheres, essa nova ética considera que não se deve implicitamente adotar os valores masculinos para parecer-se mais aos homens. Mas que se deve, ao contrário, repensar não somente a indiferença em relação aos interesses femininos, mas, sobretudo, o desprezo pelas virtudes tradicionalmente femininas.

[...]

Entre a herança dos anos libertários de 1968 e o desenvolvimento de um pensamento pós-moderno, os valores ditos "femininos" fizeram sua intrusão e são cada vez mais apreciados socialmente. A negociação e a mediação como modos de resolução dos conflitos são preferíveis ao autoritarismo, até nas práticas de certos dirigentes políticos. A cooperação e a solidariedade, sobretudo a assistência ao outro, esvaziam o espírito de competição e egoísmo. A educação pedagógica toma o lugar, pouco a pouco, das antigas formas de disciplina repressivas. Nas sociedades ocidentais, esse processo de "feminização" começou a aparecer tanto na organização do trabalho quanto nos modos de vida, nas formas de consumo ou de comunicação. Eis porque começamos a ver na propaganda a publicidade de "homens voltados para a vida privada", desejosos de se apropriar do que era considerado um atributo das mulheres. Não há dúvida que aquelas que o filósofo Edgard Morin descreveu como "as agentes secretas da modernidade" tornaram-se as principais personagens das mudanças estruturais em nossas sociedades.

A passagem do século XX para o XXI parece marcar uma ruptura na história da invisibilidade das mulheres. Só lhes falta uma participação maior na representação política. [...]

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 99-102, 105.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Piratas, bandidos nada simpáticos

Sir Francis Drake, o maior corsário da história. Marcus Gheeraerts


Na região do Caribe dos séculos XVI-XVIII, o flibusteiro era um pirata, um irmão da costa, um saqueador dos mares, produto de um conglomerado humano cosmopolita. Voltaire, em seu ensaio “Essai sur les moeurs”, escreve: A França só entrou nessa partilha [de Santo Domingo] com a Espanha pela audácia [...] de um povo novo que o acaso compôs de ingleses, bretões e, sobretudo, normandos. Eles foram denominados bucaneiros, flibusteiros. Esses marinheiros, revoltosos e desertores, seduzidos pelo clima das Antilhas, decidiram expulsar os bandos selvagens da parte norte de Santo Domingo, em vez de voltar às brumas do norte. Eles passaram a comer carne assada em fogo de lenha, cantando ao redor do fogo, e fazendo barulho à maneira dos caribenhos, isto é, fazendo boucan (barulho). No fim da primavera, os flibusteiros do mar das Antilhas caçavam os galeões espanhóis carregados de ouro e prata. A bordo de navios pequenos e rápidos, armados com poucos canhões lançadores de pedras, esperavam suas presas fumando tabaco. De surpresa, faziam a abordagem, geralmente em pares de amigos íntimos, donde veio o nome irmãos da costa. A arma branca era a preferida, a se acreditar na imagem do pirata com a faca entre os dentes. O canhão era supérfluo. Em 1696, um flibusteiro confiou ao padre Labat, um missionário francês que reuniu suas observações sobre a vida dos bucaneiros em Voyage aux îles de l'Amérique, que sua artilharia de seis minúsculos canhões era mais por cerimônia que por necessidade, já que eles só empregavam as duas peças de caça quando combatiam um barco pela frente ou por trás; seus fuzis bastavam para importunar o adversário até que seu capitão julgasse conveniente fazer a abordagem.

A tática do pirata do mar das Antilhas se resumia a uma única palavra: abordagem. O êxito dependia da determinação, ou melhor, da temeridade dos homens do navio. Numerosos, eles manejavam o sabre de abordagem e o punhal. Combatiam aos pares, porque sempre se juntavam em duplas e se chamavam, um ao outro, de matelot [marinheiros], sendo mattenoot aquele que compartilhava alternadamente a mesma rede que seu irmão. Vitoriosos, esses celibatários sem família faziam a festa, embebedavam-se à vontade de rum da Jamaica e partilhavam amigavelmente as mulheres indígenas ou pilhadas.

A pirataria é uma mitologia composta de ganhos espetaculares, de liberdade absoluta em locais insulares e encantadores. Por isso a perenidade da pirataria ou, melhor, das piratarias ao longo das eras, porque cada época engendrou seus candidatos a piratas: marinheiros e revoltosos, clandestinos e renegados, apátridas e flibusteiros, marginais e rebeldes. O fato de o pirata travar uma guerrilha sangrenta era quase ignorado. Embora a literatura celebre a pirataria desde a Antigüidade romana – o pirata é um dos personagens dos romances da época imperial: erigido, muitas vezes, em modelo, uma espécie de Robin Hood do mar, ele era mais facilmente encontrado nos livros de aventura do que na realidade. O pirata era uma pessoa má, um bandido, um marginal associado por razões pouco confessáveis a outros marginais – indisciplina, deserção, motim, crime, assassinato, rapina, a avidez de ganho. Com os outros marginais, formava uma sociedade, cuja hierarquia repousava na força, qualidade reconhecida por todos, por ser a única fonte do butim. Ele era astuto, feroz e carregava a inteligência do mal. Entretanto, essa sociedade, como os bandos e o meio social, possuía regras próprias, disciplina interna, chefe (como Olonnais, Morgan, Grammont) reconhecido por sua coragem, intrepidez e faro. O chefe era temido por sua ferocidade, e respeitado por seu senso de justiça, porque sabia repartir eqüitativamente as presas (Labat). Tudo isso em teoria, naturalmente, porque são numerosos os exemplos discordantes. Foi o que aconteceu depois do saque do Panamá. Os flibusteiros ficaram literalmente a ver navios quando Morgan fugiu com a maior parte do butim. Sem nenhum escrúpulo ou constrangimento, Morgan abandonou seus homens sem víveres e sem navio!

As mulheres faziam parte do butim conforme revela Oexmelin, cirurgião dos flibusteiros, autor de uma Histoire des aventuriers et des boucaniers d'Amérique (1686): Quando dois bucaneiros encontram uma bela mulher, para evitar a disputa decidem quem casará com ela lançando uma moeda. Casará aquele que for favorecido pela sorte, mas seu camarada era recebido na casa: a isso se chamava a matelotage... Outro costume: o sobrevivente dos dois era o herdeiro de fato de seu companheiro. O capitão e seus homens firmavam um contrato ou chasse-partie, no qual tudo era previsto para a duração de uma campanha: cada homem levava seus víveres, suas armas, suas munições. O soldo de cada mercenário saía do butim. Sem butim, sem soldo. O capitão retinha uma parte para amortizar as despesas do navio, além do soldo do carpinteiro (100 a 150 piastras) e do cirurgião (200 a 250 piastras), e recebia até seis vezes a parte de um marinheiro (a piastra era uma antiga moeda de prata, de valor variável de acordo com o país e a época). O imediato tinha direito a duas partes. O marinheiro a apenas uma. O grumete, a meia. Os feridos e estropiados recebiam 600 piastras pelo braço direito; 500 pelo esquerdo ou a perna direita; 400 pela esquerda; 100 por um olho ou um dedo. Ao final da campanha, cada membro da tripulação ganhava a liberdade levando sua parte. Naquele momento, cessava a autoridade do capitão.


O pirata, seja qual for a época considerada, o teatro de operações escolhido ou o butim alcançado, era um bandido voraz. Ele atacava outro navio no mar, se possível ricamente carregado, que pilhava depois de eliminar a tripulação, vencida pela abordagem e morta, porque não havia quartel. Nessa característica, o pirata se parecia com os ladrões de estrada, que assaltavam carruagens e diligências em terra. Em outros casos, o bucaneiro desembarcava numa terra ocupada, transformando, então, a imagem clássica do pirata dos mares em outra, a de bárbaro ou de barba-ruiva. No primeiro caso, trata-se do frisão (natural da Frísia, região que hoje faz parte dos Países Baixos) que arrasava as costas do mar do Norte e do Canal da Mancha; do bárbaro que pilhava as costas do mar Negro e devastava o Egeu; do franco embarcado nas costas do Ponto Euxino (antigo nome do mar Negro) para devastar as da Sicília e da África. O barbaresco, vindo da África do Norte, arrasava os grupos nas costas cristãs da Provença e do Languedoc (na antiga França) ou da península italiana. O flibusteiro das Antilhas evoluiu muitas vezes para esse tipo de pirataria quando, em vez de atacar navios, passou a atacar as ricas cidades hispano-americanas: Vera Cruz e Campeche (no México), Panamá, Cartagena-das-Índias (Colômbia).

Os piratas faziam o reconhecimento da costa na proximidade de um estreito, numa rota marítima freqüentada. Tendo necessidade de uma base logística – água potável, víveres, madeira para lenha e reparos navais, minicanteiro de reparos ou construção –, davam preferência às ilhas. Situadas em encruzilhadas, a ilhas permitiam vigiar as rotas marítimas. Os piratas gostavam de ficar ao largo da Citera antiga (ilha grega do mar Egeu, entre o Peloponeso e Creta, também conhecida como Cérigo), da Sicília, da Sardenha, das Baleares ou da Córsega. Malta, Creta, Tinos foram ninhos de piratas. Os Grimaldi enriqueceram como piratas a partir de seu rochedo em Mônaco. [...]

Em La Tortue, a principal base pirata nas Antilhas durante o século XVIII, os bucaneiros esperavam o navio mercante que passava, isolado ou em comboio, com guarda ou desprotegido, e se lançavam sobre a presa com um navio veloz: hemolia, dos gregos; lemboi, dos bucaneiros da Ilíria (região balcânica próxima ao Adriático), bergatins (escuna de velas quadradas de dois mastros) dos barbarescos, flibots (pequena embarcação com dois mastros, com fundo chato) dos flibusteiros. Na ponta do mastro, um crânio e duas tíbias embranquecidas pelo sol se destacavam sobre um pavilhão negro ondulando ao vento. Todos os navios-piratas se pareciam: lastro leve e velocidade aumentada pelos cascos untados com sebo para diminuir a resistência da água. Pequenas, rápidas, fáceis de manobrar, repletas de homens e munidas de pouca artilharia, essas embarcações precisavam correr os mares para alcançar suas presas, ultrapassá-las e forçá-las a parar. Uma vez pilhado o adversário, era preciso repartir depressa o butim e procurar refúgio em águas inacessíveis para os grandes navios oficiais, no meio de recifes, de rochedos e em locais de grande profundidade.

O pirata era, sobretudo, aquele que perseguia e atacava qualquer navio no mar, sem nenhuma consideração por pavilhão. Para o flibusteiro, não existiam amigos ou aliados. Assim pensava o velho Abraham Duquesne (1570–1635), pirata normando que capturava navios mercantes bretões sob pretexto de serem estrangeiros. Richelieu teve a maior dificuldade de se fazer obedecer por esse mundo tão matizado do mar, tão distante das leis e das regras de terra.

O pirata era um perigo para todos aqueles que cruzavam seu caminho – foram responsáveis pelo nascimento do seguro marítimo –, mas era também um perigo para a civilização, porque se colocava fora da norma. Sem pertencer a um Estado ou a uma estrutura, o pirata era, enfim, o único homem livre das sociedades pré-revolucionárias. Políticos de todos os tempos combateram esses marginais armados, perigosos para os marinheiros, perigosos para os Estados, perigosos para as trocas, para os comércios longínquos e para o grande negócio marítimo. Corinto moveu guerra aos piratas. Pompéia também, assim como Luís XIV, mais tarde, no Mediterrâneo, porque no Atlântico, o Très Chrétien se aliou aos flibusteiros para atacar o rico entreposto espanhol de Cartagena-das-Índias em 1697. Os Estados tiveram, enfim, uma atitude excessivamente ambígua para com os piratas: em época de paz, quiseram erradicar a pirataria e comerciar livremente, assegurando a liberdade dos mares; mas, se viesse a guerra, procuravam seduzir os excelentes soldados que mantinham tal ou qual base de apoio (Santo Domingo ou a Ilha de la Tortue). Essas bases eram, então, cedidas aos piratas e, com isso, a pirataria está na origem de numerosas colônias inglesas e francesas na região do Caribe.

Uma das principais causas do desenvolvimento das frotas de guerra permanentes dos Estados, quaisquer que fossem, foi a eliminação da pirataria. Tucídides fala de expedições atenienses contra ninhos de bucaneiros. Plutarco evoca a luta contra os dolopes (antigos habitantes da Tessália) que se tornaram corsários por falta de recursos agrícolas. Otaviano lutou ferozmente contra os ilirianos em 35 da nossa era. Rodes chegou a criar um tipo de embarcação especial para dar combate aos piratas, a trihemolia, mais rápida que a trirreme (galera grega com três fileiras de remadores sobrepostos), e Luis XIV mandou construir galeotas (pequena galé movida a remos e a vela) com bombas específicas, em 1678, para bombardear Argel e Trípoli. A hansa (associação comercial da Idade Média) jamais se cansou de tentar libertar o mar Báltico e o mar do Norte de toda pirataria desde 1168.

A pirataria não foi, pois, um tema de romance. Foi um caso militar, que exigiu despesas dos Estados para combatê-la. Ela exigia uma resposta: navios, guerras, leis. Todos os litorais, todas as ilhas, foram obrigados a fazer pesados sacrifícios financeiros para construir fortins e torres (na Córsega), para pagar torregiani (os guardas de torres) e organizar milícias. É verdade que a pirataria foi um reflexo da fraqueza dos Estados, mas também pôde se tornar – fato menos conhecido – pirataria de Estado. Foi assentada na pirataria que a Inglaterra dos Tudor fundou seu poderio, a partir do século XVI, atacando os ricos galeões espanhóis nas costas americanas. Foi atacando navios franceses, em plena paz, que os ingleses asseguraram a vitória na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), privando a armada francesa dos marinheiros capturados em mais de 250 navios mercantes desde 1755. Entre 1740 e 1744, franceses e ingleses já haviam começado as hostilidades. Antes da guerra, portanto, que foi declarada apenas em 15 de março de 1744. Feito prisioneiro nessas condições, em 11 de novembro de 1755, no golfo da Gasconha, o visconde Joubert de Bouville, bisneto de Demarets e da irmã de Colbert, recusou-se a ser libertado pelos ingleses na qualidade de prisioneiro de guerra, e preferiu pagar seu resgate!

A pirataria é um tema difícil, tratado muitas vezes como mera epopéia caribenha. O pirata viril e bronzeado, de camisa rasgada, olho de vidro e perna de pau, com o sabre de abordagem na mão, de pé diante dos cofres de ouro e pedrarias, é quase inteiramente uma imagem de Epinal.

A pirataria não tem idade de ouro, nem idade simplesmente: é um fenômeno inscrito nos tempos. Se os habitantes da Etólia, na Grécia antiga, fizeram dela um instrumento de política exterior, chegando a firmar tratados de garantias contra suas próprias ações mediante indenizações com suas futuras presas, a pirataria existe ainda hoje. Está presente nos mares da China, e a espoliação fraudulenta de companhias de seguro continua sendo praticada sob o nome de “barataria”, um tipo de pirataria, pois a carga é roubada, o navio destruído, rebatizado ou escamoteado, e o prêmio do seguro recebido!

Todo aquele que acumulasse muitas capturas e butins tornava-se herói rapidamente aos olhos de seus camaradas; aos olhos das pessoas honestas, um terror. Desses heróis aterrorizantes, as fontes medievais conservaram os nomes, ou melhor, as façanhas: Henri le Pêcheur, conde de Malta em 1218; Benedetto Zaccaria, pirata, comerciante e, depois, almirante genovês; Roger de Lauria, pirata aragonês que saqueou o litoral do Languedoc à Sicília no século XIII; Roger de Flor, templário catalão, almirante da Sicília, que devastou o Egeu no século XIV.

A época moderna, dos séculos XVI a XVIII atlânticos, não teve, porém, o monopólio da pirataria. O pirata das plagas caribenhas do período elisabetano ou colbertiano não era um homem novo: era herdeiro de uma multidão de aventureiros, produto dos invasores de antanho, porque toda invasão (normanda, saxônia ou sarracena) já fora uma empresa de pirataria. Como ocorrera antes, a época moderna procurou se defender do pirata, fosse armando com canhões seus navios mercantes, fosse escoltando-os com navios de guerra. Por conta dos piratas, o direito internacional foi endurecido, e todo capitão que conseguisse capturar corsários no mar tinha o direito de enforcá-los no ato, na verga mais alta do navio apresado. Mas quando as nações se tornaram piratas, como a Inglaterra de Elizabeth I, os sucessos obtidos sobre os galeões espanhóis pelos Drakes e Raleighs foram tais que já não se podia limitar a pirataria à noção de empresa privada.

A pirataria de Estado caracterizou a Inglaterra dos Tudor, que associava capitais públicos a capitais privados para apresar sua parte dos metais preciosos na rota transatlântica do império espanhol.

Entre 1560 e 1620, da morte de Maria Tudor (1558) à de Elisabeth (1603), essa pirataria conheceu um de seus períodos de glória e de lucro. Nos anos 1550-1570, franceses e, sobretudo, ingleses se atiraram sobre o comércio espanhol, prejudicando suas rotas e limitando seus lucros, mas a porcentagem de perdas resultantes disso não foi comparável às causadas pelas tempestades. O impacto foi mais psicológico do que econômico, ainda que Dürer tenha se demorado em Anvers apreciando os tesouros saqueados por franceses de um navio espanhol que transportava uma parte dos tesouros do imperador asteca Montezuma.

Como essa pirataria parecia mais lucrativa do que na realidade, as grandes potências não pararam de engajar esses guerreiros dos mares para transforma-los em corsários. Foi o caso dos marinheiros de Dieppe, de La Rochelle, de Saint Malo, mas também de Argel, de Túnis, de Trípoli, de Salé, pilares de regências magrebinas. São comuns as objeções, injustas, aos marinheiros, e a sua classificação arbitrária em três categorias: os piratas, os corsários, os oficiais de marinha. Nada é mais falso: o pirata era certamente um bandido, mas tão logo o rei reconhecia suas competências, o admitia ao seu serviço, concedia-lhe autorização para perseguir o inimigo – eis, então, o nosso pirata transformado em corsário. Se o antigo bandido usando o mesmo sabre de abordagem obtivesse êxito em sua nova carreira de corsário, era promovido a capitão dos navios do rei, como Abraham Duquesne, o Velho, pirata temível, corsário talentoso e, depois, respeitável oficial de Luis XIII! Ao longo da vida, Ducasse, nascido huguenote, pôde ser o chefe dos flibusteiros de La Tortue, tenente-general das armadas navais e o velho calvinista que morreu condecorado com o Tosão de Ouro pelo Rei Católico! Ducasse é o exemplo típico do flibusteiro oficial-general. Graças ao dinheiro cobiçado, apresado e confiscado na região do Caribe, ele pôde dar um dote de 400 mil libras a sua filha única, e fazer dela a duquesa de La Rochefoucauld! Esplêndida promoção conseguida com o aporte fornecido pelos 1.600 flibusteiros de Santo Domingo, apanhados de passagem pelo barão de Pointis, em 1697, em sua excursão para saquear Cartagena-das-Índias. Os flibusteiros participaram da campanha navegando ao lado da frota do rei. Ali, além de nove milhões em prata ou em barra, o que foi tomado em pedrarias e prataria é inconcebível, escreveu Saint-Simon. Cartagena-das-Índias era o entreposto mais rico de toda a América Latina.

Os piratas formavam uma sociedade cosmopolita. Vindos da Holanda, da Zelândia, da Frísia, de Flessingue, de Dunkerque, de Honfleur, de Saint-Malo, do País Basco, da Provença ou da Bretanha, se associaram por toda parte em barbarescos, tratantes do mar, flibusteiros da região antilhana, irmãos da costa, piratas de Formosa sob as ordens do rei Koxinga, estabelecido na ilha em 1661. Piratas, eram também contrabandistas, porque era preciso escoar as cargas capturadas, no mais das vezes bens comestíveis, madeira, conservas salgadas, peixe seco – mais do que pérolas, esmeraldas e rubis. É fato que no meio do triângulo das Bermudas, as “ilhas do tesouro” fascinavam, as minas de cobre de Cartier foram tomadas por minas de ouro, a mica por diamantes, e a Louisiana de Law (John Law foi o criador da Companhia Francesa das Índias) prometia rochedos de diamantes, mas a realidade foi bem outra. A pirataria se transformou, muitas vezes, num comércio na ponta da lança (isto é, em contrabando) que se fazia com as colônias ibéricas da América do Sul e Central. Daí a sedentarização dos piratas, o que contribuiu para o povoamento das Antilhas.

As nações civilizadas acabaram sendo mais ladras que os piratas. Em 1697, os flibusteiros tiveram uma grande discussão com Pointis exigindo seu quinhão, cuja maior parte pretendiam contrabandear. Percebendo que o barão, oficial-general de Luís XIV, zombava deles, retornaram a Cartagena, pilharam-na de novo, e fizeram um rico butim, encontrando muita prata, diz ainda Saint-Simon.

A pirataria desapareceu da região do Caribe ao fim da Regência, devido à onipresença da armada real. Os flibusteiros abandonaram esse ofício que se tornara perigoso demais, para investir, graças a seus butins, nas vastas propriedades dedicadas à grande plantação açucareira.

Michel Vergé-Franceschi é professor de História Moderna da Universidade de Savóia e publicou grande número de obras, entre as quais Histoire de Toulon, PortRoyal. Ele dirigiu o Dictionnaire d'Histoire Maritime e é laureado pela Academia Francesa e pela Academia da Marinha. In: Revista História Viva.

domingo, 26 de agosto de 2012

Reflexão sobre o choque de épocas no século XX


No vagão, Joel Kass

Desde os tempos mais recuados, os homens mostraram-se capazes de criações admiráveis. Mas cometeram os crimes mais odiosos. Os mais fortes dominaram os mais fracos. Homens reduziram à escravatura e massacravam outros homens, mulheres e crianças. E para mais, há só dois séculos que se impôs pouco a pouco a ideia de que todos os seres humanos, não importa a sua origem, a cor do rosto ou as suas crenças, têm o mesmo direito à vida, à justiça e ao respeito.

No entanto, no século XX, as guerras tornaram-se mundiais, milhões de pessoas foram e continuam a ser assassinadas através de terríveis genocídios. A tentativa de Hitler de exterminar de um modo organizado e industrial todos os judeus da Europa é como que um auge do Mal na História.

Pode-se tentar compreender como forças más, vindas de todas as épocas, se reuniram na Shoah, e como estas continuam a circular entre nós.

Massacre, Joel Kass

[O que é um ser humano?] Durante milhares de anos, para o membro de uma tribo, de uma aldeia, o "homem", o ser humano, era aquele que vivia como ele próprio, a seu lado, e que tinha a mesma língua e os mesmos hábitos. Em muitas tribos a palavra "homem" designava os membros do grupo. Aos das outras tribos, ou das aldeias longínquas, não chamavam "homens", mas "malvados", "maus", ou ainda "macacos de terra", "ovos de piolhos"...! O estrangeiro era também um "fantasma", uma "aparição".

Para os gregos, os "bárbaros" (barbaroi) eram os estrangeiros. Aqueles cuja língua se não percebia. E o filósofo Aristóteles escrevia que os bárbaros tinham nascido para ser escravos.

A entrada para o forno, Joel Kass 

[A divisão dos homens] Durante a Antiguidade, os que eram ricos, os que tinham o poder, os que conheciam a escrita e eram instruídos foram, por todo o lado, apenas um pequeno número de homens (quase não houve mulheres) entre a multidão de pessoas. Na Europa, a cristandade tinha-se organizado em torno das "ordens": os homens da Igreja, os senhores e os trabalhadores.

Os "instruídos" ignoravam ou desprezavam aqueles que designavam como "vilões", ou seja, os que trabalhavam com as mãos. No entanto, era esse mesmo trabalho que alimentava os instruídos, que os vestia, e esses trabalhos manuais também exigiam saber. Mas, na cabeça dos poderosos, havia, contudo, o alto e o baixo, os homens que acreditavam ser superiores e os inferiores.

Na Índia, a sociedade também estava dividida em castas. Nas cidades do mundo muçulmano havia pobres e ricos, letrados e mendigos. Mas não havia "ordens" como na cristandade.

Em frente do forno, Joel Kass

[A rejeição dos homens "selvagens"] Na Idade Moderna, depois da "descoberta" da América e dos "índios" a que os europeus chamaram "selvagens", os espanhóis enviaram comissões de inquérito às Antilhas para se certificarem se os habitantes possuíam, ou não, uma alma. Quanto aos antilhanos, estes observavam os cadáveres dos brancos para verem se estes apodreciam como os seus. O cristianismo tinha afirmado que todos os homens descendiam de Adão, logo de Noé, após o Dilúvio. Os cristãos podiam pensar, assim, que os homens formavam uma única grande "família". Mas eles justificaram a escravatura dos negros dizendo que estes descendiam de Cham, o filho maldito de Noé.

Carregando o morto, Joel Kass

[Diferentes, logo inferiores] Durante a grande rearrumação de ideias nos princípios da Idade Moderna, pôs-se o problema de saber se os índios da América também descendiam de Adão e a que filho de Noé ligar a sua ascendência. Alguns de entre os homens das Luzes punham em questão a autoridade da Bíblia. Mas todos estavam preocupados com o problema dos negros. Muitos pensavam que os "negros" (palavra inventada no século XVI) eram inferiores aos brancos. Na sua discussão, utilizavam também uma palavra nova, raça. Eles deram-lhe então, mais ou menos o mesmo sentido que nação, tal como esta era compreendida na Antiguidade, dado que aplicavam a noção de raça a todos aqueles que descendiam de uma mesma família, de um mesmo povo. A ideia dos direitos do homem foi contrariada pelo racismo e pelo anti-semitismo, quando estes apareceram na Europa do século XIX, entre certos escritores franceses, alemães e austríacos.

O Iluminismo conduziu às afirmações dos revolucionários americanos, depois às dos revolucionários franceses sobre a igualdade entre os homens. No entanto, foi na Época das Luzes que começou a espalhar-se a ideia de desigualdade entre as raças, totalmente contrária aos direitos do homem, e os europeus afirmaram a sua pretendida superioridade sobre os outros.

Crucificado, Joel Kass

[Ciência, raça e racismo] Durante todo o século XIX, utilizou-se muito a palavra "raça" dando-lhe um sentido novo, um sentido "biológico". A ciência tinha-se desenvolvido. Alguns sábios tinham-se lançado em cálculos, mediam os crânios dos humanos para daí deduzirem a inteligência de cada um e comparavam as cores da pele. Outros estudavam as línguas. O francês Ernest Renan, que tinha muita influência, afirmava que, entre os brancos, havia dois grandes grupos de línguas, logo, de "raças": os arianos (os germanos e os celtas) e os semitas (os árabes e, sobretudo, os judeus). A "raça ariana" dizia ele, seria o futuro da humanidade, enquanto a "raça semita" - ele também falava de "raça judaica" - tinha o cérebro atrofiado.

Na Antiguidade, os cristãos tinham perseguido os judeus porque estes eram "infiéis". Na Idade Moderna, o anti-semitismo entroncou no antijudaísmo cristão. O anti-semitismo tornou-se algo de diferente porque se misturou com o racismo e com certas formas de nacionalismo.

Velhas memórias, Joel Kass

[Como o racismo e o anti-semitismo se misturaram com o nacionalismo] Depois da Revolução Francesa, os judeus tornaram-se cidadãos como os outros. Participavam nas eleições e no grande desenvolvimento da indústria. O anti-semitismo apoiava-se nos sábios que pretendiam que as raças não eram iguais. Os anti-semitas diziam que os judeus eram uma "raça" diferente das outras, má e prejudicial.

O nacionalismo era uma espécie de nova religião. Era acreditar não somente que a nação era superior a tudo, mas que esta deveria ser pura, e que estava "manchada" pela presença dos judeus e dos estrangeiros. Na França, os manuais de história, que asseguravam que todos os franceses descendiam dos gauleses, desenvolveram assim o nacionalismo através da ideia falsa de que os verdadeiros franceses, os franceses de cepa, descendiam apenas dos "gauleses".

[...]

[...] Desde o século XIX até a Segunda Guerra Mundial, muitos estrangeiros tinham imigrado para França. Alguns tinham vindo para trabalhar, outros, nomeadamente os judeus da Europa central, tinham fugido a perseguições nos seus países. Entre as duas guerras, alguns jornais franceses estavam cheios de insultos anti-semitas e xenófobos (contra os estrangeiros). Foram esses jornais e essas pessoas que, mais tarde, "colaboraram" com Hitler durante a Ocupação e aprovaram as suas acções contra os judeus.

O anti-semitismo conduzira Hitler e os nazis a essa loucura criminosa de que Auschwitz é bem o símbolo.

[...]

Desde o Paleolítico que os homens foram migrantes. As migrações continuarão e acelerar-se-ão no século XXI porque o mundo, na Idade Electrónica, é uma aldeia planetária onde toda a gente comunica, mesmo que as fronteiras existam e mesmo que continuem absurdas guerras para a defesa de algumas delas.

[...]

CITRON, Suzanne. A História dos Homens. Lisboa: Terramar, 1999. p. 321-325, 328, 331.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Homens do sertão

Monumento aos Bandeirantes, Santana do Parnaíba, São Paulo

Eles [os bandeirantes] foram os piratas do sertão. Perambulavam pelos atalhos, pelos planaltos e pelas  planícies armados até os dentes, com seus sons de guerra e suas bandeiras desfraldadas. [...] À sua passagem restava apenas um rastro de cidades devastadas; velhos, mulheres e crianças passados a fio de espada; altares profanados, sangue, lágrimas e chamas. [...] Foram chamados de "raça de gigantes" - e, com certeza, eram sujeitos intrépidos e indomáveis. São tidos como os principais responsáveis pela expansão territorial do Brasil - e não há dúvida que foram. Embora tenham sido heróis brasileiros, se tornaram também os maiores criminosos de seu tempo. [...]

Caçador de esmeraldas, Antônio Parreiras

Transformaram sua capital, São Paulo, num dos maiores centros do escravagismo indígena de todo o continente. [...]

Por que justamente São Paulo? Porque a cidade fundada pelos jesuítas estava no centro das rotas para o sertão, porque os carijós do litoral e os guaranis do Paraguai estavam próximos e eram presa fácil e, acima de tudo, porque São Paulo nascera pobre. "Buscar o remédio para sua pobreza" - assim os paulistas explicavam o motivo que os impelia aos rigores do sertão em busca de "peças". [...]

O bandeirismo tornou-se um negócio cuja técnica era passada de pai para filho - inúmeros adolescentes iam para o sertão e muitas bandeiras eram empresas familiares unindo pais, filhos, tios, cunhados e genros. Embora promovidas por brancos, as bandeiras não teriam sobrevivido no sertão não fossem as técnicas indígenas. Na verdade, mais pareciam tropa tupiniquim do que patrulha europeia: avançavam em fila indiana, utilizavam canoas de tronco, sobreviviam à base de mel e palmito (quase extinguindo colmeias e palmiteiros). O grosso da tropa era de índios, escravos ou não. [...]

ROSA, Carlos Mendes. História do Brasil. In: Folha de S. Paulo. São Paulo: Publifolha, 1997. p. 41-2.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Mesoamérica: La medicina indígena

Este es un fragmento del Códice Badiano; en el se describen la forma, propriedades y aplicaciones de las principales plantas medicinales que conocieron los mexicas.

La intensa relación del hombre mesoamericano con su medio natural permitió un profundo conocimiento de las propriedades de plantas, animales y minerales que aprovechó en su beneficio. Ejemplo de esto fue el efecto curativo de los vegetables que, junto con la práctica de rituales y ceremoniais religiosas, fueron la base de la medicina prehispánica que aún en nuestros dias se practica con notable efectividad.

A lo largo de muchos siglos, los zapotecas acumularon experiencias y observaciones relacionadas con plantas, animales y minerales que derivaron en el tratamento y cura de muchas enfermedades. Para los gobeeche huinaa, es dicir, "curanderos", toda enfermedad se debia al calor (fuego), a la humedad (agua) o al frio (aire). Por ello, en el tratamento se empleaban medicamentos de naturaleza contraria.

Por ejemplo, se aprovechaba la frescura de las hojas de higuerilla para atacar los males producidos por el calor y las hojas de malva eran el remedio para las fiebres intestinales; el tabaco, por el contrario, atacaba los males provocados por el frio y se empleaba como sudorífico; el epazote curaba los cóllicos estomacales y el copal, los dolores de cabeza. Muchas plantas más eran usadas con fines curativos.

Los zapotecas recurrian también al tratamiento por masajes o a la extracción del mal por medio de sangrias; usaban el temazcal o "baño de vapor" y se sabe que practicaban la trepanación, es decird, la perforación del cráneo con fines curativos.

En la medicina mexica las enfermedades se vinculaban también con ideas religosas. Cuando alguien caía enfermo y acudia a un doctor, que podia ser hombre o mujer, éste se apoyaba en la adivinhación para encontrar la razón mágica del mal. Sin embargo, también observaba los sintomas para diagnosticar la enfermedad. Es posible afirmar, por ello, que los médicos mexicas fundamentaban sus curaciones en el conocimiento del cuerpo humano: sabian curar fracturas aplicando tablillas sobre los huesos rotos, realizaban purgas para aliviar enfermedades estomacales y remediaban rasgaduras con puntos sobre la piel. Sus recetas se baseaban en las propriedades de algunos minerales, la carne de ciertos animales y, sobre tudo, en un gran número de plantas curativas.

Los curanderos indígenas llegaran a conocer qué plantas servian comp purgantes, vomitivos, diuréticos, sedantes y antitérmicos: el iztacpalli se empleaba contra la fiebre; el chichiquahuitl era eficaz contra la disentería; el iztacuanenepilli servia como diurético; el nixtamalaxochitl, como revulsivo; y la valeriana era utilizada como antiespasmódica.

Esta enorme cantidad de conocimientos herbolarios tuvo gran consistencia en aquel tiempo gracias a su sistematización: se construyeron invernaderos y jardines donde se estudiaron y clasificaron las plantas; existiron hospitales y escuelas donde se enseñaba y practicaba la medicina; y se formaron a distintos especialistas como hueseros, hierberos, cirurjanos y parteras.

GÓMEZ MÉNDEZ, Sergio Orlando. Historia 3: A través de los Tiempos de México. México: Prentice Hall, 1998. p. 25-26.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Yamato ヤマト

ヤマト



A civilização de Yamato nasceu por volta da primeira metade do século IV na planície fértil de mesmo nome, no sudeste da ilha Honshu, nos arredores das cidades atuais de Kyoto (Nara) e Osaka. Os anais chineses da dinastia Wei mencionam essa entidade política a partir do século III (a Yamato envia uma embaixada para a China em 265). Essa região parece ter tido um avanço técnico sobre o resto do arquipélago, que envia seus príncipes a servir no palácio do soberano de Yamato. Um relato mítico faz de seu fundador Jinmu-tenno um descendente humano de Amaterasu, divindade celestial e solar, a mais importante do Japão antigo. O período dito Yamato cobre as épocas Kofun (250 a 593) e Asuka (593 a 710).











Estas estatuetas, ou haniwa, encimam tubos de argila que eram fixados no solo sobre e ao redor dos monumentos funerários  (túmulos chamados kofun). Elas delimitavam o espaço sagrado e o protegiam. Século VI.


No século III, clãs guerreiros começam a construir nessa planície túmulos recobertos com montículos de terra que, por volta do ano 500, sob a influência da Coréia, são dotados de armaduras e armas e ornados com estatuetas tubulares em terracota, as haniwa. As relações com a Coréia são cruciais não só para a formação cultural de Yamato, que lhe deve realmente as novas técnicas agrícolas, metalúrgicas e têxteis, mas também para a transmissão dos métodos da administração chinesa. Os letrados trouxeram os textos do confucionismo, a escrita chinesa e o budismo. Um Estado baseado na dominação dos clãs aristocráticos é criado. As modalidades são precisadas em 604 na Constituição do príncipe Shotoku, cujos princípios gerais se apoiam na ideia de que a ordem humana reflete a ordem celestial. Uma hierarquia estrita, estabelecida nos moldes chineses e coreanos, é então instaurada.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas: das bacanais a Ravena (o Império Romano do Ocidente). São Paulo: Larousse, 2008. p. 327.

domingo, 19 de agosto de 2012

O Livro dos mortos

Seção do Livro dos mortos do escriba Nebqed, cerca de 1300 a.C.

Denominada dessa forma pelos egiptólogos do século XIX, essa obra é um conglomerado de fórmulas mais ou menos longas, enriquecidas de ilustrações (chamadas "vinhetas"), necessárias para o acompanhamento do defunto no túmulo e no além. Atestado desde o Novo Império (1580-1085 a.C.), refere-se a todos os indivíduos, excluído o faraó, cuja sobrevida requer rituais específicos.

Um grupo de carpideiras. Túmulo de Ramosé, XVIII dinastia. Levando a mão sobre sua cabeleira, as carpideiras esboçam um gesto de luto quando o cortejo fúnebre acompanha o defunto e sua família para o túmulo.

Sem dúvida composto na região de Tebas, o Livro dos mortos é designado pelos escribas com o nome de Rolo de saída ao dia, contém, com efeito, conselhos dados ao defunto para sair de seu túmulo durante o dia e seguir o curso do Sol. Com suas variantes, se compõe de quatro partes (divididas em capítulos): Sair e caminhar para a necrópole, dirigir as orações a Rá e a Osíris; Sair e regenerar-se, lutar contra todos os inimigos, procurar a presença mágica; transfiguração do defunto, utilização do barco divino, julgamento perante o tribunal divino; As glorificações do defunto, entre as quais alguns rituais para festas fúnebres.

Barco funerário. Tumba de Haremhab.

Remonta a fontes muito antigas, como os textos dos sarcófagos (Médio Império). A redação desses textos mescla fórmulas religiosas com fórmulas mágicas, algumas das quais remontam aos textos das pirâmides (que apareceram no reinado do rei Unas, Antigo Império, 5ª dinastia), em princípio destinados unicamente aos faraós. Um contexto de enfraquecimento do poder central explica talvez a usurpação, por altos funcionários das províncias, de alguns privilégios faraônicos.

SALLES, Catherine. (dir.). Larousse das Civilizações Antigas. São Paulo: Larousse, 2008. p. 54.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O escravo indígena

Antes de chegar à escravidão negra, a História do Brasil, já em seu primeiro século, registra a utilização do trabalho do índio. Interessados logo nos chamados produtos tropicais - notadamente o pau-brasil -, os membros das primeiras expedições tratavam de conseguir, em troca de algumas quinquilharias, a força de trabalho indígena.

Enquanto os produtos oferecidos pelos portugueses atraíam os índios, o sistema de trocas funcionava bem: o pau-brasil e os alimentos desejados eram conseguidos. Seja, porém, pelo ritmo de trabalho dos índios, seja pelo seu desinteresse total em servir os portugueses uma vez satisfeita a curiosidade pelos produtos europeus, o escambo não mais resolvia a necessidade dos comerciantes lusitanos.

Partia-se, então, para a escravização do índio.

Embora seja difícil aferir a extensão do regime escravista completo para a mão-de-obra indígena no Brasil (com as características de perplexidade, transmissão hereditária por via materna e irrestrita alienabilidade), não há dúvida de que não se tratou de casos esporádicos como se poderia pensar, mas de algo regulamentado pela Coroa portuguesa e que atingiu caráter amplo no espaço e no tempo. É verdade que a legislação variou bastante, estabelecendo inúmeras restrições à escravidão do índio [...].

As guerras justas, por exemplo, eram aquelas que deviam ser travadas - uma vez autorizadas pela Coroa e pelos governadores - em legítima defesa contra tribos antropofágicas. Nelas se justificava tomar escravos [...].

[...] a força de trabalho do índio é considerada um bem que à falta de outros lhe será tomado como botim de guerra, pelos soldados. Estes, por sua vez, farão do índio o seu soldo. E tudo isso considerado justo por teólogos e letrados cronistas.


Caçador de escravos, J. B. Debret

As expedições de apresamento, que celebrizariam os paulistas, tinham  por objetivo expresso a caça ao índio. A se confiar nos números geralmente apresentados, cerca de trezentos mil indígenas foram aprisionados e escravizados, dos quais uma terça parte transportada para outras capitanias.

Várias outras formas de escravidão ocorreram, umas formais, outras informais, inclusive a escravidão voluntária. Com suas formas de existência desestruturadas, frequentemente o índio via-se obrigado a se vender ou a entregar algum familiar em troca de um prato de comida.

A legislação portuguesa permitia também a escravização de filhos de negros com índios. Uma vez atraído a um engenho, o índio, na prática, ficava retido e seu filho era formalmente escravo. Já em pleno século XVIII há documentos que se referem a prisão de índios vagabundos e sua remessa a proprietários de terra. É fácil perceber que por índio vagabundo designa-se o índio livre e que sua escravização tornava-se corolário de seu aprisionamento.

Como se pode ver eram diversas as maneiras pelas quais se reduzia o índio à escravidão completa. Além disso, havia outras formas compulsórias de extração da força de trabalho indígena, como a "administração", as reduções jesuíticas e até mesmo o assalariamento.

Com frequência esses sistemas impunham regime de trabalho mais severo do que a escravidão propriamente dita. Um sistema muito curioso era imposto aos índios das missões: durante um semestre, serviam nas próprias aldeias e no outro atendiam às necessidades dos moradores. O salário era predeterminado e todos, de 15 a cinquenta anos, deviam prestar esse trabalho.

Sem nenhuma responsabilidade - e sem nenhum custo inicial - cada patrão procurava extrair do índio o máximo - não respeitando limites de horário nem para carga de trabalho. Assim, além de deslocado do seu ambiente e sujeito a doenças comuns ao europeu, mas arrasadoras para si, o índio via-se submetido a condições de vida e de trabalho terríveis, o que terá contribuído, enormemente, para a queda da população indígena em áreas de "colonização" branca.

PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. p. 17-18, 20.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

As mulheres na Grécia antiga

Lekythos, 550-530 a.C. Representação de duas mulheres tecendo. Artista desconhecido

Texto 1. Uma importante historiadora francesa, Michelle Perrot, estudiosa da história das mulheres, revela que, no mundo greco-romano, espaço público e cidadania eram uma exclusividade do universo masculino, no qual as mulheres sempre estiveram deslocadas, restando-lhes apenas a esfera privada. Nesta, suas funções eram bem delineadas: procriação, educação das crianças, trabalhos domésticos, manutenção do culto familiar e preservação do oikos, isto é, da casa paterna para os gregos antigos, na qual havia inclusive um espaço reservado a elas, o gineceu. Mesmo sendo esposa ou filha de um cidadão, no mundo grego essa condição não lhe garantia o direito de cidadania. Não raramente era considerada um bem de troca, como se fosse uma riqueza móvel, pertencente a um homem. Essa realidade era mais comum entre as famílias mais ricas, enquanto nas mais pobres o trabalho feminino (tecelagem, por exemplo), realizado geralmente no espaço do oikos, era essencial para garantir a sobrevivência. BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem. Curitiba: Base Editorial, 2011. p. 72.

Texto 2. As mulheres livres [...] não tinham cidadania. Algumas evidências também sugerem que levavam uma vida bastante confinada e reclusa, mas havia diferença de costumes. A maioria dos gregos parecia pensar que as moças espartanas recebiam excessiva liberdade (e censuravam muito os calções de ginástica muito curtos com que elas se exercitavam junto com os rapazes), enquanto as mulheres das casas ricas de Atenas, por exemplo, viviam em locais separados, trancadas do resto da casa à noite. Isto pode sugerir a reclusão de um harém oriental, mas o objetivo provável era o de impedir que os homens assediassem as criadas que, grávidas ou com filhos pequenos, teriam menos utilidade como criadas, e haveria mais bocas para alimentar. Contudo, também se sabe que respeitáveis mulheres casadas provavelmente usavam véus para sair de casa, de onde não saíam sozinhas, e não deviam falar com ninguém que encontrassem. Os gregos gostavam de festas - a sua cerâmica o demonstra -, mas parece que não havia atmosfera livre de reuniões mistas de cavalheiros e damas das pinturas dos túmulos egípcios; os homens gregos nunca se encontravam com as mulheres de seus amigos. Se efetivamente encontrassem uma mulher numa festa, ela por certo seria uma cortesã profissional, intitulada de hetaira. Algumas ficaram famosas, pois seus nomes chegaram até nós e, mais do que prostitutas, eram hábeis no canto, na conversa e na dança - embora não fossem nada respeitáveis, já que os seus encantos estavam à venda.

Fora de casa, nenhuma atividade era oferecida a uma dama grega de boa família. As mulheres pobres podiam trabalhar para os outros, mas uma dama não. Nenhuma mulher podia se tornar enfermeira, atriz, escriba ou similares, porque estas profissões não existiam para as mulheres. Parece que, em geral, não se considerava que as moças merecessem ser educadas. Em casa, no entanto, tinham muito o que fazer. As mulheres gregas não apenas lavavam a roupa da família, mas as faziam, provavelmente depois de tecerem o material a partir da linha que elas mesmas fiavam. A administração da casa era complicada e consumia tempo.

Uma das razões pelas quais as mulheres de Atenas [...] tinham menos direitos legais do que os seus companheiros era que a sociedade grega [...] pensava em termos de família e não de indivíduos. A sociedade era patriarcal, as mulheres não podiam possuir propriedades, administrar negócios, e eram sempre tuteladas pelos maridos ou parentes masculinos mais próximos. Se uma filha fosse a única herdeira da propriedade do pai, o seu parente masculino mais próximo tinha direito e era encarregado de reclamá-la em casamento para assegurar que a propriedade permanecesse na família. [...] sabemos que as mulheres gregas iam ao teatro em Atenas; devem ter assistido a Antígona, Electra, Jocasta, Medéia, grandes personagens femininos da tragédia grega, e a muitos outros variados papéis femininos. Elas não os compreenderiam se fossem simples escravas de cabeça oca. Nos túmulos e vasos há figuras de esposas e mães falecidas se despedindo de suas famílias e sugerindo um afeto profundo; [...] Homero disse que "não há nada mais belo do que um homem e sua mulher vivendo juntos uma verdadeira união, compartilhando os mesmos pensamentos" e todos os gregos educados devem ter lido isto.

Quando pequenas, as crianças gregas eram educadas pelas mães, mas como os meninos deviam ir para a escola (as meninas não), eles saíam bem cedo dos cuidados maternos. A educação recebida por um menino grego de uma família de recursos dava grande ênfase à memorização [...] e à literatura, junto com a escrita, a música e a ginástica, constituíam a maior parte do currículo. O objetivo era formar um "homem completo", dar-lhe uma educação abrangente, que servisse a alguém que assumiria o seu lugar na pólis, compartilhando os seus valores e gostos, em vez de treiná-lo em habilidades específicas - algo que os gregos achavam melhor deixar para os escravos. [...] ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 195-197.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Quebra-quilo, cortiço e vintém

Revolta do Vintém. Caricatura de Angelo Agostini

Tião Carga d'Água era um negrão simpático. No seu burrico ele levava barris e vendia água para toda a gente de Quipapá. Quem não conhecia o Tião naquela cidadezinha do interior de Pernambuco?

Pois num dia de feira o Carga d'Água virou "atirador de rapaduras". Tudo começou com um bate-boca. De um lado, os feirantes inconformados, pois julgavam que o governo havia criado novos impostos:

- A gente dá um duro danado para tirar da terra o que vende e o governo ainda cria novas taxas?

De outro lado, os funcionários do Império: eles tentavam explicar que não se tratava de impostos, mas sim de um novo sistema de pesos e medidas, o sistema métrico decimal.

Quem vai entender? Quem aceitaria?

O tempo foi esquentando, e Tião Carga d'Água,  junto com outros populares, entrou na briga. Se era contra o governo, podiam contar com ele! Logo o delegado baqueou com uma rapadura que lhe atingiu a testa, sendo amparado por seus soldados. Os feirantes ficaram mais animados ainda:

- Vamos botar esses ladrões para correr! Fora, cambada do governo!

No ano de 1874 conflitos como o de Quipapá ocorriam em muitas outras cidades do interior de Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Onde as autoridades chegassem para implantar o novo sistema de pesos e medidas os protestos explodiam. Era a Revolta do Quebra-Quilo.

Como fogo em capim seco, a desobediência se alastrava. Os mais exaltados jogavam longe os pesos que o governo de D. Pedro II havia mandado, enquanto os arquivos das Coletorias e Cartórios, onde estavam guardadas as listas dos devedores, eram destruídos.

Manuel do Carmo era tão simpático e popular como o Tião de Quipapá. Só que era escravo e trabalhava na terra. Morava em Campina Grande, na Paraíba.

Ele e seus companheiros de cativeiro cercaram a casa-grande do Sítio Timbaúba:

- Nós qué sabê pruquê os nossos fio continua trabaiando como escravo!

Pela Lei do Ventre-Livre, em 1871, os filhos das escravas nascidos daquele ano em diante deviam estar em liberdade. O capataz mostrou um livro de registro. Nele, para surpresa dos negros escravos, não havia anotação de nenhum nascimento depois de 1871... Dessa forma nenhuma criança negra poderia estar livre!

Manuel do Carmo e os outros negros, que já não acreditavam muito nas leis do governo, ficaram furiosos. Naquela mesma noite eles reuniram todos os escravos, inclusive as crianças de peito, e fugiram para a mata. Quebravam à força a gaiola da escravidão.

Nas últimas décadas do século XIX, o Nordeste estava mesmo agitado. Pequenos roceiros revoltavam-se, escravos reagiam, havia descontentamento por toda parte. E uma seca terrível tornava a situação ainda mais grave. Os grandes fazendeiros, com os seus jagunços e a ajuda da política, trataram de se defender:

Toca, toca, minha gente
Toca, toca a reunir
Que os matutos quebra-quilos
Por aí não tardam a vir!

A violência contra os matutos e os escravos rebeldes foi enorme. Era preciso "manter a ordem", diziam as autoridades e os fazendeiros. Inúmeras prisões ocorreram e alguns presos morreram cruelmente. Eles foram obrigados a vestir um colete de couro fresco, que encolhia com o calor e os sufocava lentamente!

Mas o sofrimento e a revolta não existiam só no Nordeste.

O Rio de Janeiro, capital do Império, não era nenhum paraíso. Dos seus 235 mil habitantes, cerca de 50 mil eram escravos e 40 mil eram pessoas muito pobres, que viviam de biscates e esmolas. Havia também milhares de brancos, mestiços e negros livres obrigados a trabalhar 10, 12, às vezes 14 horas diárias, recebendo, em troca, míseros salários. Eram comerciários, trabalhadores do porto e operários das manufaturas e das primeiras fábricas que surgiam. Muitos deles eram estrangeiros e tinham vindo "tentar a sorte" no Brasil.

Boa parte dessa gente morava em habitações coletivas - as casas de cômodos e os cortiços - do centro da cidade. As condições dessas habitações eram péssimas. Os quartos eram pequenos, não tinham janelas e havia um só banheiro para várias famílias que lá moravam. Tudo contribuía para as epidemias de febre amarela, tifo, varíola, tuberculose e diarréia.

Os donos dos cortiços eram portugueses bem-sucedidos no comércio. Ou barões e viscondes que não queriam mais morar no centro. Ou mesmo instituições de caridade, como a Santa Casa de Misericórdia. Para todos esses, o negócio era lucrar, mesmo às custas da saúde da população.

A alimentação do povo da Capital chegava a ser pior que a dos pobres do interior. Quem podia pagar os preços da carne, depois que ela passava pelas mãos de poderosos comerciantes intermediários?

Sobravam no prato o feijão, a farinha e a carne-seca. E a laranja ou banana na sobremesa. Faltavam as proteínas da carne fresca, do leite e dos ovos, o ferro e as vitaminas das verduras e de muitas outras frutas.

Na cidade de São Paulo, um número menor de pessoas vivia nessas condições. Mas só por um motivo: menos gente morava aí... Essa que hoje é a maior cidade brasileira não tinha, em 1880, mais que 80 mil habitantes.

Como no Rio de Janeiro, a maioria da população era subnutrida e vivia em choupanas ou cortiços que só agradavam mesmo os ratos. Quando os rios Tietê e Tamanduateí transbordavam, devido às chuvas, inúmeras famílias ficavam desabrigadas.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, alguns não sentiam na carne esses problemas. Eram as famílias das classes abastadas, que moravam em confortáveis chácaras, comiam do bom e do melhor e se vestiam elegantemente. Pareciam viver em outro país.

O que pensaria Tião Carga d'Água ao ver aquela gente passeando num coupé - um veículo fechado, de quatro rodas, puxado por dois burros bem tratados? E o que dizer daquele milionário extravagante, que mandou vir da África uma parelha de zebras para puxar sua carruagem?

Morando e comendo mal, parte da população do Rio de Janeiro ao menos podia viajar nos bondes puxados a burro, um meio de transporte coletivo. Mas certas madames condenavam:

- É imperdoável deslize de polidez misturar pessoas de hábito educado com gente do povo!

Um senhor, que já começava a se destacar como político e advogado da "Light" - companhia que passou a explorar todas as linhas -, não pensava assim:

- O bonde foi a salvação da cidade, o grande instrumento de seu progresso material. Foi ele que dilatou a zona urbana, arejando a cidade e tornando possível a moradia fora da região central. Se não existisse, era preciso inventá-lo.

Esse senhor era Rui Barbosa. Apesar de tantos elogios aos bondes, ele não dispensava, no entanto, sua chique carruagem modelo landau...

Pois o bonde, a "salvação da cidade", foi o estopim de um conflito que fez a Corte parecer o sertão do Quebra-Quilo! No primeiro dia de 1880 o governo deu um "presente de ano novo" para a população carioca: aumentou as passagens dos bondes em 20 réis...


Morar mal, comer pior e ainda por cima ter que pagar mais pelo transporte era insuportável!

Daí, cerca de quatro mil pessoas decidiram ir até a Quinta da Boa Vista, para entregar um "Manifesto ao Imperador". Lá encontraram a polícia, que lhes barrou o caminho. Disposta assim mesmo a impedir o aumento, a multidão reuniu-se no Campo de São Cristóvão, iniciando um grande comício de protesto. A cavalaria imperial atacou os manifestantes, e eles reagiram. Era o começo da "Revolta do Vintém".

Para se defender, o povo atirou pedras na polícia, arrancou trilhos e quebrou muitos bondes. Os tumultos duraram três dias e estenderam-se por vários bairros da cidade, como se em cada um houvesse um barril de pólvora. Diversas lojas foram saqueadas. De forma desordenada e explosiva, a população mostrava que daquele jeito não era possível viver.

A "Revolta do Vintém" só terminou quando o Exército entrou em ação. Nas ruas da cidade, semidestruída pela rebelião popular, havia dez mortos.

O imperador explicou-se:

- É a primeira vez que sucede isso no Rio, desde 1840. Há quase quarenta anos que presido esse governo, sem que houvesse necessidade de atirar no povo. Mas que remédio? A Lei tem que ser respeitada.

Os belos e calmos dias do Segundo Reinado estavam no fim. É o que pareciam mostrar acontecimentos como a Revolta do Quebra-Quilo e a Revolta do Vintém. Não era à toa que a cabeça do imperador ficava cada dia mais branca...

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 146-148.