"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Flora Tristán

Flora Tristán, Artista desconhecido

A tela, nua, imensa, se oferece e desafia. Paul Gauguin pinta, persegue, deita cores como quem se despede do mundo; e a mão, desesperada, escreve: De onde viemos, o que somos, aonde vamos?

Faz mais de meio século que a avó de Gauguin perguntou a mesma coisa, em um de seus livros, e morreu averiguando. A família peruana de Flora Tristán não a mencionava nunca, como se desse azar ou fosse louca ou fantasma. Quando Paul perguntava pela avó, nos distantes anos da infância em Lima, lhe respondiam:

- Vai dormir, que é tarde.

Flora Tristán tinha queimado sua vida fugaz pregando a revolução, a revolução proletária e a revolução da mulher escravizada pelo pai, o patrão e o marido. A doença e a polícia acabaram com ela. Morreu na França. Os trabalhadores de Bordéus pagaram o caixão dela, e o levaram para o cemitério em procissão.

GALEANO, Eduardo. Memória do Fogo: As caras e as máscaras. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 522.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Os ideais renascentistas e a brutalidade da vida cotidiana

A expulsão do jardim do Éden, Masaccio

[...] os velhos sistemas de valores foram destronados, os novos valores ainda possuíam um caráter rudimentar e inseguro do ponto de vista do conjunto da sociedade. A procura de uma vida verdadeira e bela, com base em modelos judaico-cristãos, gregos e romanos, se confrontava com a brutalidade da vida cotidiana, que marcou a realidade da época do Renascimento.

Essa brutalidade era expressão da crise feudal. Os poderes tradicionais da Igreja e da nobreza feudal estavam abalados pelas transformações econômicas e sociais, mas os novos poderes ainda não tinham se firmado.

O aparecimento das relações burguesas de produção, ou seja, da produção para o mercado, da competição econômica e do trabalho assalariado nas cidades, não podia pôr fim à brutalidade. Ao contrário, tendia a torná-la mais aguda. A vida cotidiana era dominada pela brutalidade da acumulação primitiva.

A expansão da manufatura, por exemplo, ao mesmo tempo que valorizou o trabalho especializado do artesão, exigiu o uso do trabalho não-especializado, que não necessitava de um longo período de treino. Era preciso aumentar a produção e atender as novas necessidades do mercado. A inovação passou a ter um papel muito importante na produção, e isso entrava em contradição com o trabalho do artesão tradicional, que aprendia lentamente uma técnica antiga.

O nascimento da moda era um sinal dos tempos e obrigava a produção a se adequar a ela.

Outro fator de brutalidade era a instabilidade política, principalmente em várias cidades italianas, onde grupos e famílias, muitas de origens plebeia e obscura, conquistavam ou perdiam o poder sucessivamente. O assassinato, a traição, o envenenamento, o golpe de audácia eram comuns na luta pelo poder.

Essa realidade política brutal, por outro lado, evidenciava as potencialidades individuais, a capacidade de o indivíduo construir o seu próprio destino por meio das oportunidades aproveitadas ou perdidas, dos cálculos bem feitos ou malfeitos.

Por outro lado, a democracia relativa de muitas cidades italianas criou, pelo menos por um curto período, um otimismo em relação à possibilidade de realização dos ideais renascentistas. O sucesso individual e o reconhecimento público eram procurados com afinco. A inveja e a competição eram consideradas normais.

O sucesso individual significava dinheiro e fama. Aos homens que viveram em Florença, por exemplo, no auge do Renascimento, esse sucesso parecia depender exclusivamente da capacidade individual. Esse sentimento era justificado pela realidade. O êxito era uma confirmação da humanidade do indivíduo, do valor do seu trabalho.

No auge do Renascimento, os artistas já tinham prestígio social, seu trabalho era valorizado, embora menos do que o dos literatos.

A sociedade, os poderes estabelecidos e o público não eram obstáculos para a realização pessoal. O Renascimento, no seu apogeu, não produziu gênios incompreendidos. Por isso ninguém tinha medo de ser ele mesmo, de parecer diferente, de seguir o seu rumo na vida e de fazer o que achasse melhor.

A extroversão foi, portanto, uma característica do homem renascentista. Por isso não devemos confundir o individualismo renascentista com o atual. O homem renascentista não era egocêntrico, mas voltado para o exterior. Os cidadãos das cidades italianas procuraram servi-las conscientemente. Eles desejavam servir por meio do conteúdo humano das suas obras e das suas ações, isto é, da sua individualidade.

Tudo isso não significa que a sociedade e os poderes estabelecidos tendiam a aceitar os novos valores e a nova convicção de homem? Parece que sim!

Mas esse momento de aceitação foi relativamente breve. À medida que as normas e a ética do mundo iam mostrando a incapacidade de realização dos ideais do Renascimento, estes passaram para a intimidade. A brutalidade da vida cotidiana, no aspecto político ou econômico, não foi resolvida pela eliminação das contradições de interesses entre grupos e classes. O Estado unificado absoluto se firmou exatamente estabelecendo uma ordem social mais estável. Com isso tirou do indivíduo a possibilidade de ele construir o seu destino. O prêmio e o castigo passaram a depender do Estado.

A Igreja Católica e as novas igrejas cristãs surgidas com a Reforma também colocaram freios à liberdade individual. A extroversão e a sinceridade se tornaram não só perigosas, mas anti-cristãs.

Isso desenvolveu a hipocrisia como atitude social necessária. Alcançar um lugar no mundo contra os outros exige disfarces.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 139-141.

sábado, 25 de junho de 2016

Valores burgueses (1870-1914)

M. Jourdain, Le Bourgeois Gentilhomme, o personagem-título da peça de Molière

"Espetacular" parece ser a palavra correta para descrever os diversos aspectos do mundo público burguês. A sociedade nervosa e de estímulos contínuos se manifesta com especial intensidade no centro do capitalismo: o consumo de mercadorias. Através do consumo, ato final e ao mesmo tempo regenerador, é possível perceber traços e valores dessa "nova era".

O próprio ato de consumir mudou de sentido. Se tomarmos a Inglaterra como parâmetro, podemos notar que em Londres se realizava uma transformação que ainda caracteriza a cultura urbana contemporânea: o consumo como prazer, diversão e exercício de sociabilidade.

Durante quase toda a era vitoriana, consumir foi um ato associado ao desperdício, à indulgência e mesmo à imoralidade e à falta de controle. No entanto, desde os anos de 1860, restaurantes, hotéis, teatros, museus, exposições e clubes, associados à expansão do transporte público e ao advento da imprensa popular, alteravam gradualmente esse sentido negativo do ato de consumir.

Como componentes dessa "nova era de consumo" estavam as lojas de departamento. O auge do consumo como um ato refinado e seguro pode ser estabelecido com a fundação da grande loja de atendimento de massa por Harry Gordon Selfridge, na Oxford Street, em 1909. Em sua loja ele introduziu um restaurante, montou vitrines espetaculares, acreditou em uma decoração luxuosa e se amparou em um forte esquema publicitário. Nesse ambiente comercial, Selfridge esperava que seus clientes considerassem as compras não como uma ação econômica, mas como uma celebração social e cultural. Consumo como lazer era a nova tônica do mercado capitalista da virada do século XIX.

O consumo de massa não se limitou aos produtos feitos pelo sistema fabril. Ele se expandiu para áreas que também adotaram um modelo de produção massiva, mas que faziam parte de uma nova fronteira da indústria: a circulação de informações. Durante a guerra hispano-americana em 1898, o New York Journal, de propriedade de William Randolph Hearst, alcançou a cifra de um milhão de leitores. No mesmo ano era lançado na Grã-Bretanha o primeiro jornal popular: o Daily Mail.

Esses jornais apresentavam notícias e artigos curtos, notícias políticas e econômicas eram simples e informativas e os grandes espaços estavam dedicados aos esportes, às "fofocas" e aos assuntos "femininos". No entanto, a imprensa popular americana e depois a inglesa viviam alimentando uma indústria de notícias espetaculares. Campanhas moralizadoras, tragédias sexuais, crimes violentos, o cotidiano em forma de sensações exacerbadas eram os produtos dessa nova indústria que surgia. No novo capitalismo não apenas a mercadoria era o espetáculo, como na Selfridges, mas o espetáculo também era mercadoria, isso garantia as vendas e a publicidade que sustentava os jornais populares.

Em um mundo público tão intenso e espetacular foi impossível não ressignificar o espaço privado burguês. A casa tornou-se um refúgio, misto de isolamento e proteção em uma cidade cheia de ameaças e terrores, e a família, o conjunto de laços sociais estáveis impossíveis de serem mantidos na esfera da multidão urbana.

Acompanhando essa tendência de perceber a casa e a família como locais estáveis, podemos ver como se desenvolveu na sociedade burguesa um profundo fascínio pelo íntimo e pelo subjetivo. Cartas, diários e relatos em primeira pessoa fizeram um profundo escrutínio do mundo subjetivo. O indivíduo passou a ter suas sensações e seus sentimentos colocados em primeiro plano frente a qualquer outro problema.

[...]

A leitura como um ato de intimidade individual permitiu um "fervor" mais pessoal, uma "devoção" privada, rompendo com as mediações das regulamentações eclesiais da Idade Média e criando uma relação secularizada com o livro e a leitura.

A literatura colocou o subjetivo no foco de sua preocupação narrativa, as artes plásticas passaram a investigar as "impressões" visuais, o século XX poderia ser chamado de a "Era do indivíduo". Nesse novo tempo as sensações e os desejos mais íntimos, progressivamente, irão interagir com a sociedade da mercadoria-fetiche e se tornarão parte integrante do mercado capitalista.

PARADA, Maurício. Formação do mundo contemporâneo: o século estilhaçado. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2014. p. 25-7. (Série História Geral)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Inti Raymi, a Festa do Sol nos Andes

"Hoje, desde que amanheceu, é celebrada a Festa do Sol, o Inti Raymi, nos cerrados e nas montanhas dos Andes.

No começo dos tempos, a terra e o céu estavam na escuridão. Só havia noite.

Quando a primeira mulher e o primeiro homem emergiram das águas do lago Titicaca, nasceu o Sol.

O Sol foi inventado por Viracocha, o deus dos deuses, para que a mulher e o homem pudessem se ver."

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 204.

Galeria de imagens:






quarta-feira, 22 de junho de 2016

Vida cotidiana em Constantinopla

Texto 1. Nas ruas de Constantinopla conviviam ricos e pobres, sem que houvesse diferenciação de locais para a construção de moradias. Era comum existirem quarteirões residenciais  elegantes rodeados por sobrados de madeira, ocupados por grupos médios ou ainda por pequenos casebres, pertencentes aos trabalhadores pobres. Contudo, a existência de muros altos em torno das moradias dos grupos privilegiados impedia o convívio entre pessoas de diferentes status sociais.


Mapa de Constantinopla. Desenhado pelo cartógrafo florentino Cristoforo Buondelmonti,1422.

Em Constantinopla, a vida urbana concentrava-se praticamente em torno de três grandes construções: a Igreja de Santa Sofia, o Hipódromo e o Palácio Imperial, que representavam respectivamente a religião, o povo e o poder do governo. Os prédios ficavam numa praça pública, bem próximos uns dos outros.

A Igreja de Santa Sofia, projetada e construída durante o reinado de Justiniano, entre 532 e 537, é uma das expressões máximas da arquitetura do Império Bizantino. Assim como grande parte das construções da civilização bizantina, as paredes internas de Santa Sofia apresentam ricas decorações de murais cobertos por mosaicos feitos com pedaços de vidro e pedra. Eles representam imagens de ícones religiosos e dos governantes. Há também mosaicos que trazem cenas da vida cotidiana e elementos naturais.

O Hipódromo era o local privilegiado de encontro entre os bizantinos. Nesse local aconteciam as corridas de biga, disputadas entre os partidos Verde e Azul. O primeiro representava as camadas populares, enquanto o último estava ligado à aristocracia. As roupas utilizadas durante os espetáculos no Hipódromo estavam entre os principais indicativos da condição social dos bizantinos.


O Palácio do Hipódromo. Século X, artista desconhecido.

Na maioria das vezes, o casamento dos nobres constituía um ato diplomático. Damas da sociedade eram enviadas a reinos estrangeiros distantes para desposar e "civilizar" nobres ricos e poderosos, ou seja, levar até eles a cultura helenística.

Alguns autores relatam que para o casamento de um imperador o processo era diferente. Era tradição que um grupo de funcionários reais saísse à procura de uma noiva por todo o território do império. As candidatas deveriam ser muito bonitas, discretas e possuir as medidas do busto, da cintura e dos pés de acordo com o gosto do rei.

A Igreja desempenhava um importante papel na educação das crianças. Tanto as famílias mais abastadas como as parcelas mais empobrecidas da sociedade tinham a oportunidade de mandar seus filhos para as escolas. O ensino religioso processava-se paralelamente ao laico. Nas escolas religiosas - com raras exceções - era permitido o estudo de escritores e filósofos pagãos. As crianças começavam a frequentar as escolas aos 6 anos de idade, e os filhos dos aristocratas faziam estudos mais aprofundados, equivalentes ao nível superior, por volta dos 18 ou 20 anos. Esses estudos incluíam a filosofia e conhecimentos gerais de matemática, geometria, música e astronomia.

Os segmentos mais pobres, no Império Bizantino, viviam melhor que os de outras sociedades cristãs da época. O desenvolvimento comercial, urbano e manufatureiro dos bizantinos propiciou maior estabilidade econômica para a população, aumentando a oferta de empregos.

Mesmo as camadas mais humildes de Constantinopla eram servidas por água abundante e canalizada. Esta era transportada por aquedutos e armazenada em muitas cisternas abertas e cobertas. Das cisternas, era encanada para fontes localizadas em esquinas de ruas e nas praças públicas, onde todos podiam servir-se gratuitamente. O esgoto era desviado para o mar por meio de um sofisticado sistema de drenagem subterrânea. A cidade dispunha de banhos públicos, acessíveis para homens e mulheres em horários diferentes, e o governo e a Igreja proporcionavam cuidados médicos e hospitalares para aqueles que não podiam pagar. BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 171-2.

Parábola dos trabalhadores da vinha. Evangelho bizantino, século XI, artista desconhecido.

Texto 2. O vestuário dos bizantinos era derivado ao mesmo tempo dos gregos, romanos e asiáticos. Durante oito séculos, o feitio quase não mudou. Homens e mulheres usavam túnicas com mangas e capas, tendo sido adotadas as calças (braccae) dos soldados romanos que atuaram no norte da Europa. O feitio característico, para ambos os sexos, mantinha um corte folgado para ocultar as formas do corpo. A moda bizantina reinou no mundo feudal da Idade Média Românica, pois Constantinopla era a Paris de então! O ouro dominou a escala de cores, ao lado do nobre púrpura, do vermelho, do marrom, do preto e do branco - cores observadas nos mosaicos bem conservados de Ravena que, aliás, não retratavam a classe popular. Os motivos de decoração eram formas diversas de animais e vegetais, além de símbolos cristãos como a cruz, o cordeiro e a vinha. Os tecidos nos circos eram brocados enriquecidos com bordados de prata, ouro e pedras preciosas. [...] Podem-se definir as ricas roupas da corte imperial como vestimentas hierárquicas, com um certo ar eclesiástico, nada de sedução nem muito menos de utilidade, demonstrando as influências do Oriente, com seu colorido forte, bem diferente da simplicidade dos velhos trajes romanos. A partir do século XIII. ocorreu uma orientalização maior nas roupas bizantinas. A vestimenta do clero continuava a ser ainda composta da dalmática, da stola e da paenula. [...] Capas, a paenula circular e a paladamentum semicircular, cobriam as túnicas compridas femininas. Um véu retangular tinha que cobrir sempre as cabeças das mulheres. Os decotes eram geralmente altos para os dois sexos. NERY, Marie Louise. A evolução da indumentária - subsídios para criação de figurinos. São Paulo: Senac, 2003. p. 55-6.

domingo, 19 de junho de 2016

As classes sociais e os costumes no Egito Antigo

Poder: ostentando coroa e cetro, símbolos do poder, o faraó ouvia o relatório transmitido por seus ministros sobre os acontecimentos do Império. Faraó Horemheb. Relevo. Artista desconhecido

* O faraó. O faraó ocupava a posição mais elevada na hierarquia social egípcia. Era considerado um deus, filho de Amon-Rá e encarnação de Hórus. O povo adorava-o em vida, submetendo-se a sua autoridade sem resistência, e cultuava-o após sua morte.

"No Antigo Império apareceu a ideia de que o rei, ou faraó, era o senhor absoluto, logo venerado como um deus. A justiça é "aquilo que o faraó ama", o mal "aquilo que o faraó odeia"; ele possui onisciência divina e portanto não necessita de um código de leis para guiá-lo. Mais tarde, no Novo Império, os faraós seriam representados com a estatura heroica dos grandes guerreiros: aparecem em seus carros como poderosos guerreiros, esmagando os inimigos e corajosamente matando animais em sacrifício. Porém, a realeza egípcia permanecia sagrada e temível. "Ele é um deus a quem devemos a vida, pai e mãe de todos os homens, único e sem igual", escreveu um egípcio, funcionário civil do faraó, por volta de 1500 a.C." ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 100.


Diversão: cena de caça. Pintura mural em tumba. Artistas desconhecidos

Além de organizar as atividades econômicas, o faraó comandava o exército e resolvia os casos de justiça de acordo com sua vontade.

Depois da unificação do Alto e do Baixo Egito, o faraó passou a usar uma coroa dupla, que mantinha as cores (branca e vermelha) de cada uma das coroas usadas pelos soberanos dos dois reinos. Além da coroa dupla, que simbolizava a unificação dos dois Egitos sob um só comando, o faraó usava também um cetro, símbolo de seu poder.

O faraó possuía várias esposas, geralmente parentes, mas apenas a primeira mulher com quem havia se casado podia usar o título de rainha.


Cotidiano no palácio: músicos e dançarinas. Pintura mural em tumba. Artistas desconhecidos

"Os faraós e sua família viviam em meio a um tal luxo e conforto, que mesmo hoje, causam admiração. Os palácios eram equipados com móveis de cedro, de ébano, vestidos às vezes de ouro e de marfim; os utensílios de uso diário eram também de qualidade superior, demonstrando a riqueza daqueles que os possuíam, bem como a habilidade e perícia dos artesãos que os fabricavam. A presença de uma legião de servidores - criados, músicos, cantores, dançarinas e copeiros - colaborava ainda mais para tornar confortável a vida diária dos governantes do país. As caçadas e pescarias frequentes, a prática de jogos diversos, contribuíam também para que fosse agradável o dia-a-dia dos "deuses vivos" que governavam o Egito e daqueles que com eles conviviam". FERREIRA, Olavo Leonel. Egito, Terra dos Faraós. São Paulo: Moderna, 1993.


Nobreza: Príncipe Ankhhaf. Busto. Artista desconhecido

* A nobreza. Formada pelos mais importantes funcionários que administravam o Império, a nobreza constituía a alta camada da sociedade egípcia, logo abaixo do faraó. Esses importantes funcionários tanto podiam ser parentes do faraó como pertencer aos comandos do exército. Os nomarcas, que eram os chefes locais da administração, também pertenciam à nobreza.

Os nobres tinham muitos privilégios, como a posse de grandes extensões de terra cedidas pelo faraó. Apesar disso, nos momentos em que o poder real enfraquecia, os nobres transformavam-se em adversários políticos dos faraós.


Mediadores da relação dos homens com os deuses: sacerdotes vestidos com pele de leopardo realizam rituais de purificação. Pintura mural em tumba. Artistas desconhecidos

* Os sacerdotes. Devido à importância da religião na vida do Egito Antigo, os sacerdotes representavam o grupo social de maior prestígio junto à população. Por causa dos conhecimentos que possuíam e da intimidade que diziam ter com os deuses, os sacerdotes exerciam grande poder sobre o povo.

Os sacerdotes possuíam grandes propriedades, que recebiam do faraó. Os que serviam às principais divindades dispunham de riquezas enormes, pois os egípcios costumavam dar presentes valiosos aos deuses que adoravam. [...]

"[...] Eram responsáveis pela administração dos templos e de escolas nas quais os médicos, escribas e outros profissionais obtinham seus conhecimentos". BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 65.

A carreira sacerdotal era hereditária, isto é, passava de pai para filho.


Saber: escriba. Escultura. Artista desconhecido

"Ponha a sua alma nas escritas [...]
Observe como ela se salva através do trabalho!
Veja, não há nada que supere as escritas
São um barco perfeito!...
Farei com que goste de escrever mais do que de sua própria mãe.
Farei com que sua beleza lhe seja mostrada.
É a profissão mais importante do que qualquer outra.
Não existe igual na Terra".
(Relato escrito por um antigo egípcio chamado Khety. In: MAN, John. A história do alfabeto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 54.)

* Os escribas. Os escribas eram pessoas letradas. Os jovens que iam se tornar escribas recebiam instrução nas escolas do palácio. Depois de um longo aprendizado, eles conseguiam ler e escrever os complicados caracteres da escrita egípcia - os hieróglifos.

Graças à cultura que adquiriram durante os anos de estudo, os escribas ocupavam cargos importantes no governo. Era entre eles que o faraó escolhia, por exemplo, os magistrados e os inspetores dos trabalhos e das rendas públicas.

"[...] A eles cabia estipular os impostos cobrados, em espécie, dos camponeses e artesãos. Assim, estes funcionários estavam praticamente em pé de igualdade com os sacerdotes, que também cursavam escolas anexas aos palácios e templos e exerciam funções básicas para o Estado, ao mesmo tempo de natureza religiosa e temporal". HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975, p, 44-45.

Como eram as únicas pessoas que conheciam aritmética e, portanto, sabiam fazer cálculos, os escribas ficavam responsáveis pela coleta dos impostos e pela supervisão de toda a administração do soberano egípcio. Por isso, eram considerados essenciais ao governo do faraó.

"O escriba recebia salários. [...] Os salários e impostos eram pagos em produtos - como trigo, pão, carne, frutas, gordura, sal - ou trocados por prestação de serviços. Nas guerras, os escribas acompanhavam os exércitos, encarregando-se de manter os registros em dia". BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 65.


Força: soldados. Modelo funerário. Artesão desconhecido

* Os soldados. Ao contrário dos sacerdotes e dos escribas, os soldados não eram muito prestigiados pela população egípcia. Eles viviam dos produtos recebidos como pagamento e dos saques que podiam realizar durante as guerras de conquista.

No exército egípcio havia também soldados estrangeiros. Estes soldados, em recompensa pelos serviços prestados, recebiam um pedaço de terra.

Os soldados desempenhavam um papel muito importante no Egito Antigo, principalmente durante a fase militarista do Novo Império.

"O exército, profissionalizado, era empregado na defesa das fronteiras do país contra os inimigos externos, além de manter os camponeses e escravos sob dominação e realizar incursões ao Sinai e à Núbia, a fim de conseguir metais (cobre, ouro) e escravos". AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p.. 149


Trabalho 1: camponeses. Os camponeses colhiam o trigo com suas foices e amontoavam em feixes nos barcos, transportando-os pelo rio Nilo para todo o Egito. Cultivavam também cevada, frutas e legumes. Pintura em tumba. Artistas desconhecidos

Trabalho 2: artesão. Pintura. Artista desconhecido

Trabalho 3: transporte de ânforas. Pintura mural. Artistas desconhecidos

* Os camponeses e artesãos. Os trabalhadores braçais - camponeses e artesãos - constituíam a camada inferior da sociedade egípcia e também a mais numerosa. Os camponeses (mais numerosos que os artesãos) trabalhavam nas terras do faraó e da nobreza. Os artesãos eram marceneiros, pintores, escultores, tecelões e ourives, alguns, verdadeiros artistas. Os artesãos trabalhavam nas oficinas pertencentes ao faraó.

"Os artesãos produziam lanças, arcos e escudos para as tropas que combatiam as guerras. Também fabricavam objetos como vasos de cerâmica, cestos, sandálias, perucas, tecidos, barcos fluviais e estátuas gigantescas. Para as camadas privilegiadas, esses profissionais produziam joias, esculturas, quadros e objetos destinados a enfeitar as tumbas. Existiam também artesãs que fabricavam perfumes, óleos para o corpo, roupas e produtos de maquiagem". BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 65.

As condições de vida desses trabalhadores eram muito duras. Como pagamento pelo seu trabalho, eles recebiam uma pequena parte do que produziam. Moravam em cabanas muito simples e se vestiam pobremente. Conformavam-se, porém, com a expectativa de uma vida melhor depois da morte. Por isso, o que conseguiam poupar era guardado para o funeral [...]. 

"Os camponeses alimentavam-se de pão, cerveja e legumes. Às vezes, peixe e fruta podem entrar no seu cardápio". KOENNING, Viviane. Às margens do Nilo, os egípcios. São Paulo: Augustus, 1990. 

"[...] Os trabalhadores, no entanto, muitas vezes se revoltaram contra seus exploradores. A desagregação do Antigo Império deveu-se, exatamente, a uma série de lutas sociais. [...] Há, até, registros de greves". NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 59.


Mercado de escravos: núbios aguardam para serem vendidos. Relevo. Artista desconhecido
* Os escravos. Os escravos eram prisioneiros de guerra e não constituíam um grupo muito numeroso. Realizavam os trabalhos pesados, como a extração de enormes pedras das pedreiras e a construção de templos, palácios e pirâmides.

Comparados a outros povos do período, os egípcios eram mais tolerantes com seus escravos e, em geral, tratavam-nos bem.

"[...] O egípcio considerava obrigação dispensar bom tratamento a seus escravos. O Livro dos mortos inclui, entre os pecados a serem negados, o excesso de trabalho imposto aos escravos e os maus-tratos infligidos aos mesmos. Segundo uma lei antiga, quem matasse voluntariamente um escravo, merecia a pena de morte. Heródoto afirma que no Delta do Nilo existia outrora um templo em que os escravos fugitivos encontravam refúgio.

A condição dos escravos utilizados nas grandes obras públicas era extremamente cruel. Nas minas, nas pedreiras, nas construções monumentais, milhares de escravos deixavam a marca de seu ingente esforço e de seu sofrimento". GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 102-3.


Mulheres: carpideiras. Afresco na tumba de Ramose. Artistas desconhecidos

* A mulher egípcia. "A família egípcia parece apresentar a marca de antigos usos que davam à mulher um lugar muito amplo, talvez mesmo de preponderância. Invocava-se frequentemente, por exemplo, a filiação materna pelo menos em pé de igualdade com a ascendência paterna. Em caso de morte de marido, se não havia um filho adulto, a mulher assumia a chefia da família, inclusive no que dizia respeito às relações com o Estado. De maneira oficial, talvez após um certo tempo, principalmente depois de se tornar mãe, era chamada 'dona de casa', e tal expressão parece ter revestido seu pleno sentido jurídico, embora a casa proviesse do marido." AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia. Rio de Janeiro: Difel, 1977. p. 49. (História geral das civilizações, v. 1)

Jovens: filhas do faraó Amenófis IV. Afresco. Artistas desconhecidos

"Seja como for, [...] a mulher egípcia era sui juris, podendo dispor livremente de seus bens, intentar processos na justiça, tomar a iniciativa do divórcio tanto quanto o homem, desempenhar um papel ativo em diversas atividades produtivas, de serviços e eventualmente de gestão, enfim ir e vir com ampla liberdade. Havia, sem dúvida, certas limitações. [...] a direção da vida pública sempre esteve maciçamente em mãos masculinas; e tal tendência se fortaleceu com o tempo.

Na vida privada, porém, em termos gerais se mantiveram os amplos direitos da mulher, igual participação na herança paterna e materna, controle sobre os seus bens pessoais (mesmo quando geridos pelo marido, situação bastante corrente) etc. É certo, entretanto, que a mulher era encarada como tendo uma vocação essencialmente doméstica [...] ligada seja à administração da casa [...], seja à realização de tarefas no seu âmbito: fabricação de pão e cerveja, manufaturas de fios e tecidos. [...] Com maior frequência, era o homem que intervinha em transações e, em geral, na gestão do patrimônio familiar [...].


Família: um casal egípcio sentado. Escultura. Artista desconhecido

O casamento no antigo Egito não era sancionado por qualquer ritual religioso ou ato administrativo. Tratava-se de um ato social, selado por festividades que envolviam a comunidade num nível estritamente local. Em suma, a natureza do matrimônio era secular e, em si mesmo, não tinha caráter jurídico. [...] O Estado só intervinha, eventualmente, em questões de adultério no sentido de manter a ordem pública - limitando, por exemplo, a vingança privada." CARDOSO, Ciro Flamarion. "Algumas visões da mulher na literatura do Egito faraônico (II milênio a.C.)". In: História. São Paulo: Unesp, 1999. v. 12. p. 103-5.

Costumes: senhora em sua toalete ajudada por duas servas. Pintura mural. Artistas desconhecidos


* Costumes. "A maior parte da população vivia em pequenas casas de tijolos de barro, quase sempre recobertas por um teto de palha. Seu principal alimento era pão de cevada, às vezes acompanhado de cebolas, tâmaras e figos. Do pão de cevada obtinha-se uma pasta que, fermentada e espremida, resultava numa cerveja leve, muito apreciada pelos egípcios. A carne, as aves e os peixes eram reservados às pessoas abastadas, e também o vinho produzido no país ou importado da Síria. Consumido por todas as classes, o leite constituía um alimento básico; e o único adoçante utilizado era o mel.


Costumes: moda feminina. Pintura. Artista desconhecido

Homens e mulheres usavam vestimentas de linho. A sendit masculina não passava de uma simples tanga que envolvia os quadris. Mas a roupa feminina cobria o corpo do colo aos tornozelos, sustentada por alças e, às vezes, enfeitada com bordados. Durante o Novo Império, as mulheres introduziram certos refinamentos em suas vestes, principalmente tecidos transparentes com pregas delicadas. Amuletos, flores esmaltadas, pesados peitorais metálicos, pérolas multicoloridas, anéis, brincos, braceletes e pulseiras nos tornozelos eram usados tanto pelos homens como pelas mulheres.

No Egito Antigo, praticava-se comumente a poligamia, apesar de uma das esposas ter uma posição privilegiada no lar. Na família dos faraós, supõe-se que esta honra cabia à mãe do primeiro filho do sexo masculino, o qual, geralmente, herdava o trono. Embora o homem pudesse ter quantas concubinas quisesse em sua casa, só os elementos das classes abastadas possuíam um grande harém. E, ao que tudo indica, a mulher gozava de uma posição importante na família egípcia". HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 16-7.

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008.
AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia. Rio de Janeiro: Difel, 1977. (História geral das civilizações, v. 1)
ARRUDA, José Jobson. História Total 3: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Ática, 1998. 
BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010.
CARDOSO, Ciro Flamarion. "Algumas visões da mulher na literatura do Egito faraônico (II milênio a.C.)". In: História. São Paulo: Unesp, 1999. v. 12.
FERREIRA, Olavo Leonel. Egito, Terra dos Faraós. São Paulo: Moderna, 1993.
GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. 
HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
KOENNING, Viviane. Às margens do Nilo, os egípcios. São Paulo: Augustus, 1990.
MAN, John. A história do alfabeto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 
NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Estruturas mentais dos homens na Idade Média

Que estruturas mentais possuíam os homens da Idade Média? De que maneira viam o mundo ao seu redor? Quais eram seus sonhos, medos, esperanças, angústias, crenças? O que eles imaginavam? [...]

A primeira característica importante das estruturas mentais do homem medieval foi a religiosidade. [...]

O mundo para os homens do Ocidente medieval tinha um caráter ameaçador e inseguro: uma natureza da qual dependiam, em regra hostil, mas que não era explicada cientificamente; doenças que não sabiam combater; a presença quase constante da fome e da carestia; o medo do desconhecido. Por isso, o mundo sobrenatural adquiriu uma força significativa nesta sociedade, onde o universo era visto como funcionando a partir da ação das forças do bem e do mal. Ou seja, Deus e o diabo estavam em todas as partes, em todas as manifestações concretas da vida: as boas dádivas - colheitas fartas, clima favorável às plantações, fertilidade da terra, vitórias em guerras - eram signos da presença divina atuando. Mas, quando o diabo se fazia presente, o mal se abatia sobre os homens: más colheitas, tempestades, secas, derrotas etc.

Não era possível para este homem compreender o mundo de outra forma. Esta dualidade estava manifesta em todos os momentos. Para que o homem estivesse sempre sob as influências divinas, ele deveria desenvolver sua espiritualidade através de obras positivas aos olhos de Deus como forma de combate às forças do mal e às influências diabólicas.

As armas para enfrentar esta batalha constante no cotidiano difícil da vida na Idade Média feudal foram dadas pela Igreja: orações, exorcismos, sacramentos, amuletos protetores.

[...]

Uma das figuras mais importantes do universo mental do Ocidente medieval foi o diabo, que neste momento ganhou uma força significativa. Concebido na tradição cristã como anjo decaído, portanto teoricamente submetido ao poder de Deus, a quase onipotência de satã acabou por preponderar nos discursos dos teólogos na Baixa Idade Média. Foi a partir do ano 1000 que ele passou a ser representado no imaginário cristão. Representação animalesca, hostil, monstruosa, correspondente aos medos de fim de milênio, que assolaram o Ocidente medieval.


Santa Juliana e um demônio. Ca. 1170-1200, Artista desconhecido. 

A partir do século XI, foi representado como um homem animalizado, com presas, chifres, orelhas pontudas, asas de morcego, e, a partir do século XIII, com cauda, corpo peludo, garras. Foi atribuída a ele uma intensa atividade sexual, com a possibilidade de fecundar mulheres, e uma inteligência ímpar, podendo influenciar e agir sobre o espírito humano e sobre a matéria. Os homens imaginavam-no assumindo diferentes formas: assaltava homens adormecidos, sob o aspecto de mulheres bonitas, ou então como homens, como santo ou como o próprio Cristo, quando tentava as religiosas.

O diabo também era imaginado como provocador de ódios, pesadelos, selando pactos com os homens, provocando tentações da carne, do dinheiro, do poder, e era inspirador de práticas mágicas, duramente condenadas pela Igreja.

A partir do século XIII, se consagrava a majestade de satã. Sua existência e sua nefasta influência era tão certa que Santo Tomás de Aquino afirmou que "a fé verdadeiramente católica determina que os demônios existem e que podem causar dano mediante suas operações". Sua imagem era quase imperial, e associada ao mau poder: sentado de frente, com cetro, coroa, trono, soberano na sua corte de demônios.

Ao longo de todo este período, dominou a concepção de que o diabo era o príncipe dos pecadores: o pecado original de Adão e Eva levou o homem a se submeter ao poder do demônio. Mas Cristo anulou com seu sacrifício o direito que o diabo tinha sobre a humanidade, levando o homem novamente para perto de Deus. Estava formado então o embate entre estas duas forças, e os inimigos da Igreja eram vistos como seguidores do diabo: os pagãos, os muçulmanos, os judeus, os hereges, os feiticeiros, os pecadores.

Entre os espaços possíveis do mundo do Além, para onde iam as almas dos homens após a morte - o paraíso e o inferno -, surgiu, na segunda metade do século XII, um terceiro espaço, o do purgatório. Dependendo do tipo de pecado e das condições da morte do indivíduo, à sua alma era vetada a entrada imediata para o inferno, indo assim para esta "sala de espera", o purgatório, na tentativa de se purificar e poder alcançar o paraíso.

Local menos terrível que a morada do diabo, as almas poderiam diminuir seus dias de purgação em função de orações, missas, penitências, peregrinações e oferendas depositadas em sua intenção. A inauguração deste novo espaço do tempo da Igreja fazia crescer imensamente o seu poder, cuja ajuda era fundamental no encaminhamento satisfatório de cada alma para o paraíso. [...]

A noção de contratualidade também marcou a mentalidade medieval. Essência das relações sociais no feudalismo, o contrato pessoal [...] se transpôs para as relações dos homens com Deus, criando entre eles vínculos hierárquicos recíprocos. Deus conferiu vida aos homens, que tinham por dever combater seu maior inimigo e traidor, o diabo, bem como os seus seguidores, como prova de fidelidade. O homem era vassalo de Deus, portanto devia se conduzir como tal, servindo-o de várias maneiras: peregrinando a lugares sagrados, cultuando relíquias, adorando santos, combatendo pecadores e hereges, e combatendo, por meio das Cruzadas, os usurpadores da cidade sagrada de Jerusalém.

[...]

Os homens da Idade Média estiveram muito mais propensos a escutar do que propriamente a ver. Acreditavam nos relatos fantásticos daquele mundo que abrigava seres escandalosos e monstruosos, humanos ou animais, e que assim povoaram a sua imaginação, a exemplo dos mitos do paraíso terrestre, do reino de Gog e Magos, ou mesmo do Preste João. [...]

CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 111-8.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Cultura erudita na Baixa Idade Média

[...]


A Igreja monopolizava o mundo intelectual. Ela foi a representante da chamada cultura erudita, da cultura letrada. Os clérigos monopolizaram a cultura escrita, pelo menos até o século XII, com o latim, que se tornou a "língua oficial" da Igreja. Na Alta Idade Média, a cultura clerical teve grande impulso com a renovação cultural promovida por Carlos Magno, conhecida por Renascimento Carolíngio. Ampliou-se o sistema de ensino com a criação das escolas eclesiásticas, voltadas para a formação de futuros clérigos, e das escolas paroquiais. Gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música - as chamadas "sete artes liberais" - foram as disciplinas a partir das quais se organizou o ensino.

Também neste período os mosteiros tiveram um papel importante na preservação da cultura clássica. Através das mãos dos hábeis copistas, muitos autores da Antiguidade foram transcritos para as bibliotecas dos mosteiros, algumas até abrigando cerca de mil livros. A influência dos monges nas artes e na cultura medieval foi significativa [...].

A partir do século XII, em meio às novas transformações do mundo medieval [...] começaram a surgir escolas dentro das cidades. Foram as escolas urbanas, dentro das catedrais, originárias das escolas episcopais. Inaugurava-se um novo tipo de ensino, reunindo-se grupos de discípulos ao redor de um mestre, comentando e analisando textos e livros de algum ramo do saber. Aos poucos, estas escolas foram se tornando corporações de mestres e alunos, originando as universidades.


Detalhe de uma miniatura de um mestre e alunos. 
Gautier de Metz, 1464

Algumas surgiram espontaneamente, como foi o caso de Bolonha, na Itália, em 1158, congregando várias escolas existentes, e a de Paris, em 1200; outras nasceram de dissidências internas, como a de Cambridge (Inglaterra), surgida a partir de Oxford, em 1209, e por fim, aquelas que foram criadas por bulas imperiais ou papais, como foi o caso de Coimbra (Portugal), em 1290. Inicialmente, o aluno estudava por seis anos as artes liberais e depois escolhia uma das grandes áreas do saber: Direito, Medicina ou Teologia.

Num mundo onde a imensa maioria da população era iletrada, a arte, sob a forma de pintura, escultura, arquitetura, mosaicos e vitrais, foi uma forma ímpar de veiculação de ideias, valores e dogmas religiosos. A arte medieval era pedagógica, com a finalidade de incutir valores, e não pura e simplesmente pelo seu valor estético.

A arte românica, característica dos séculos XI e XII, surgida no sul da França e na Itália, era típica das ordens monásticas de início da Baixa Idade Média, particularmente da ordem de Cluny. Os edifícios eram de pedra, com poucas janelas, paredes grossas, arcos nas portas e teto em forma de abóboda. O estilo gótico, que sucedeu o românico, predominou dos séculos XII ao XV. Utilizado pela primeira vez pelo italiano Vasari, no século XVI, para designar esta nova estética, o termo "gótico" tinha uma conotação negativa, significando "bárbaro", "grosseiro", tal qual a concepção pejorativa da Idade Média característica do Renascimento europeu.

O gótico correspondeu às grandes mudanças que marcaram o Ocidente Europeu a partir do século XI: o crescimento populacional, o desenvolvimento do comércio, da circulação monetária e das cidades. Essa arte foi tipicamente urbana e sua expressão mais significativa se deu através da construção das catedrais.

A cidade era um mundo em efervescência, aglomerando novas profissões e dinheiro. Era lugar de abundância, de comércio. Embora tivesse gerado pobreza, miséria, a cidade se erguia imponente como o lugar do burguês, do mercador. No século XII, o cristão do mundo urbano se lembrou que os ricos tinham poucas chances de entrar no Reino dos Céus e salvarem sua alma, Por isso, era preciso dar pelo menos uma parte do que possuíam, e assim foram financiando as catedrais, com o dinheiro da burguesia nascente.

Uma das características mais marcantes da catedral gótica foi a luminosidade. A luz que a invadia tinha um sentido pedagógico e uma carga simbólica: demonstrar a presença de Deus. Afinal, Deus era a luz, e, em tudo que espelhasse luz, Ele lá estaria. A catedral gótica deveria refletir a irradiação divina, com a utilização de materiais brilhosos no seu interior. A decoração interna era rica, com imagens de santos, pinturas, esculturas, além dos objetos do rito litúrgico.

Os vitrais - vidraças coloridas ou pintadas - foram excelentes veículos para ensinar aos homens a glória do poder divino. Ali se materializavam a história de Jesus Cristo e seus apóstolos, da Virgem Maria, passagens bíblicas etc. [...]

[...]

A partir do século XII, o Ocidente medieval já desfrutava de várias traduções do grego e do árabe para o latim, tendo contato com obras clássicas, como a de Aristóteles e outros autores ligados às áreas da medicina, filosofia, matemática, química e astronomia. No século XIII, a geografia e a cartografia se desenvolveram em função das viagens empreendidas ao Oriente por homens como Pierre D'Ailly e Marco Polo.

No plano da filosofia o grande destaque foram Alberto Magno (1200-1280) e Tomás de Aquino (1224-1274), representantes da corrente filosófica denominada de Escolástica, que buscou uma harmonia entre a fé e a razão, com base no pensamento de Aristóteles.

CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 105-9 e 111.

domingo, 12 de junho de 2016

Heresias

Jan Huss sendo queimado na fogueira por heresia, Diebold Schilling, o Velho, 1485.

No ano de 325, na cidade de Nicéia, foi celebrado o primeiro concílio ecumênico da cristandade, convocado pelo imperador Constantino.

Durante os três meses que o concílio durou, trezentos bispos aprovaram alguns dogmas necessários na luta contra as heresias, e decidiram que a palavra "heresia", do grego "hairesis", que significa escolha, passava a significar "erro".


Ou seja: comete erro quem escolhe livremente e desobedece os donos da fé.

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 171.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Brinquedo perigoso

O restaurador, William Hemsley 

“Diga-me com o que brincas e dir-te-ei quem és.” Aproveito o mote para falar mal de Barbie, boneca feita, por incrível que pareça, em uma fábrica de brinquedos dirigida por uma mulher e introduzida nos Estados Unidos por outra. São 29 centímetros de plástico que contém a desmesura do mundo. O modelo incomoda, tanto mais quanto conhecemos a história das bonecas. Encontradas em tumbas egípcias ou em ruínas romanas, as pequenas miniaturas tiveram, por muito tempo, sentido mais religioso do que lúdico. Foi em finais do século XVII, que a preocupação com a educação feminina levou, na Europa, à valorização das primeiras bonecas. Na forma de bebês, elas deviam incentivar os cuidados com a prole, reproduzindo os valores familiares. Brincar de boneca foi, até ontem, um exercício para desenvolver os instintos maternos. Bons tempos em que as bonecas tinham sentido educativo.

Qual o sentido de um arquétipo plastificado em pin-up loura, fria como as neves do norte europeu, num país de mestiços, afogados em suor? Nada além de sublinhar o modelo da juventude americana numa sociedade que já engole lixo cultural suficiente, vindo dos Estados Unidos. Para começar, trata-se de impor um estilo de vida “cor-de-rosa” a toda uma geração de meninas, na sua maioria, pobres: roupas, jóias, maquiagem, tudo de mais supérfluo e descartável. A boneca traduz a ideia de que a mulher deve ser tão improdutiva quanto dispendiosa. Seus saltos altos parecem martelar impiedosamente a necessidade de opulência, de despesas desnecessárias, sugerindo ao mesmo tempo a exclusão feminina do trabalho produtivo e, por conseguinte, a dependência financeira do homem. Nossas filhas são precocemente empurradas para o mundo da riqueza. Barbie ensina-lhes a serem consumidoras e consumíveis pelos homens. Na interação da boneca com a criança, a atenção dada ao aspecto exterior reforça a ideia de que a beleza física é a chave da popularidade e, consequentemente, da felicidade: pernas longas, cintura de pilão, traços delicados, cabelos sempre lisos e louros, seios fálicos como foguetes. Preciso lembrar quantas meninas ficam absolutamente frustradas por não serem assim?

O universo de Barbie, sua casa, seu guarda-roupa, seu carro etc. remete à imagem de uma sociedade que é microcosmo de competição e comparação. Seu mundo é feito de valores materiais, do culto ao dinheiro, das compras sem fim. A caricatura étnica da boneca “morena” só faz acentuar o ideal normativo, em que os traços raciais e outros atributos são apagados. Christie, a amiga negra, não representa a diferença, mas alguém que, diante da loura, está fora da norma. Norma que só satisfaz, sublinhe-se, no narcisismo, no cuidado com a aparência, numa feminilidade sem falhas. Pior: Barbie faz pensar numa geração de mulheres clonadas, perfeitas, incompatíveis com a realidade social, o que, do ponto de vista da ilusão, deve confortar muita mãe inconseqüente.

Falo mal da Barbie para lembrar a mães, educadoras, psicólogas e professoras que somos responsáveis pela construção da subjetividade de nossas meninas. Mas a futilidade de Barbie não exclui a sua utilidade de lembrar-nos que temos de lutar por valores melhores do que o dinheiro ou de desejarmos para nossas filhas outra coisa que tornar-se simples mulheres-objeto.


DEL PRIORE, Mary. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 46-7.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Diabo é vermelho

Destruição em Granollers após a incursão 
alemã em 31 de maio de 1938. 
Foto de Winifred Bates

Melilla, verão de 1936: desata-se o golpe de estado contra a república espanhola.

O pano de fundo ideológico será explicado, depois, pelo ministro de Informação, Gabriel Arias Salgado:

- O Diabo mora num poço de petróleo, em Baku, e de lá manda instruções aos comunistas.

O incenso contra o enxofre, o Bem contra o Mal, os cruzados da Cristandade contra os netos de Caim. É preciso acabar com os comunistas, antes que os comunistas acabem com a Espanha: os presos têm um vidão, os professores expulsam os padres das escolas, as mulheres votam como se fossem varões, o divórcio profana o matrimônio sagrado, a reforma agrária ameaça o poder da Igreja sobre as terras...

O golpe nasce matando, e desde o começo é muito expressivo,

Generalíssimo Francisco Franco:

- Salvarei a Espanha do marxismo ao preço que for.
- E se isso significa fuzilar meia Espanha?
- Custe o que custar.

General José Millán-Astray:

- Viva a morte!

General Emilio Mola:

- Qualquer um que seja, aberta ou secretamente, defensor da Frente Popular, deve ser fuzilado.

General Gonzaço Queipo de Llano:

- Preparai as sepulturas!

Guerra Civil é o nome do banho de sangue que o golpe de Estado desata. A linguagem põe, assim, o signo da igualdade entre a democracia que se defende e o golpe militar que a ataca, entre os milicianos e os militares, entre o governo eleito pelo voto popular e o caudilho eleito pela mercê de Deus.


GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 270-1.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Dos descobrimentos à colonização - Parte 6

["Não existe pecado do lado de baixo do Equador"]

Os invasores, Antônio Parreiras

"Não existe pecado do lado de baixo do Equador" - diz um verso do vibrante frevo de Chico Buarque, inspirado em um provérbio português do período quinhentista (século XVI).

Além do Equador, tudo era permitido - ou quase tudo - em nome de El-Rei!

Nossa História, para começar, não foi tão pacífica, como afirmam alguns autores. Ao contrário, ela se fez à custa de muitos e sangrentos conflitos sociais. Foi mair (francês) contra peró (português). Branco contra índio e negro. Senhor x escravo. Colono combatendo padre. Dono de terras se opondo a mascate. Donatário brigando com Governador Geral. Emboaba expulsando paulista. "Vida difícil em uma terra fértil", como previu o escrivão Caminha...

Caraíbas (homens brancos) de várias nacionalidades - portugueses, franceses, espanhóis, holandeses -, negros africanos de diversos grupos étnicos - bantos, jejes, nagôs -, indígenas de vários troncos linguísticos - tupis, aruaques, jês, caribas -, foi essa a diversificada fauna humana que fez da Terra dos Papagaios um lugar chamado Brasil.

Mas a nossa Colonização foi sobretudo obra dos portugueses.

"Dominando vasto território e suas populações, assumiram o controle e a direção de tudo, aqui atuando em forma dominadora durante três séculos, deixando-nos como herdeiros daquilo que realizaram e que constitui o nosso passado colonial."

Era do Brasil que saía a tinta que coloria os tecidos e servia para escrever; o açúcar e o cacau que a Europa consumia; o couro com que se faziam os calçados e o algodão com que os ingleses se vestiam; o ouro que adornava os palácios e igrejas; o tabaco e aguardente para a África...

E para aqui vinham o azeite, o vinho, o bacalhau, as louças e pratarias, os móveis, os tecidos finos, as armas de fogo... sobretudo estas últimas, com que os portugueses erguiam nos trópicos uma original Civilização, baseada no latifúndio, na monocultura e na escravidão - a nossa pesada herança colonial.

"Ao integrar-se no ciclo comercial, a América luso-hispana recebeu um formidável enxerto africano. A mão-de-obra indígena e a outra, de procedência africana, foram os pilares do trabalho colonial americano. América e África - destilado seu sangue pelos alquimistas do comércio internacional - foram indispensáveis ao deslumbrante florescimento do capitalismo europeu."

A História da Colônia está profundamente ligada às diretrizes do Mercantilismo. A Colônia existia para satisfazer os apetites da Metrópole, atendendo aos interesses coloniais portugueses e da política europeia. E o instrumento do Mercantilismo foi o Pacto Colonial, isto é, o direito exclusivo de comerciar com a Colônia.

"Estava, nessas circunstâncias, traçado o sentido da Colonização portuguesa no Brasil: explorar as riquezas naturais da terra recém-descoberta, apropriar-se do que ela possuía de comerciável no mundo civilizado, despojá-lo de tudo o que pudesse proporcionar lucro à metrópole. Nada mais do que isso interessava. E essa foi, com efeito, a política posta em prática durante os três séculos de domínio português no Brasil."

Assim, o pretexto de expandir a fé e o comércio, a Metrópole portuguesa subordinou e explorou durante 300 anos uma terra e seu povo. Afinal, na visão do colonizador, o centro do mundo era a Europa - o resto eram "terras d'além-mar" e gente que vivia nesse tal "lado de lá do Equador"...

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli.]. Fazendo a História: As Sociedades Americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 88-9.