"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 29 de julho de 2012

O reino de Cuxe

Rainha Amanitore 

"A palavra Cuxe aparece, pela primeira vez, num texto egípcio, por volta de 2000 a.C. Refere-se a um reino que se entendia ao sul de Semna. Ali, terminava o "Ventre das Pedras" e abria-se a paisagem mais suave e mais propícia do Abri-Delgo, com suas planícies cultiváveis junto ao rio, a anteciparem as terras férteis de Dongola, mais ao sul [...]" ¹


Ao sul do Egito, localizava-se a Núbia. Embora fosse banhada pelo rio Nilo, essa região era bastante árida e seu povo precisou criar sistemas de irrigação que facilitaram a criação de gado e o cultivo da cevada, trigo, sorgo, lentilhas, pepino, melão, tâmaras. Por volta de 2000 a.C. lá se formou o reino de Cuxe, que manteve intensa atividade comercial: caravanas chegavam pelo deserto carregadas de mercadorias da Ásia e das regiões próximas ao mar Mediterrâneo; pelo rio Nilo, os comerciantes cuxitas levavam e traziam produtos do norte e do sul da África, como peles de animais, marfim, madeiras, ouro.


Faraós núbios. 25ª dinastia
"A presença núbia era constante ao longo dos milênios da história do Império Egípcio e é atestada nas pinturas das paredes das pirâmides, nas ilustrações dos papiros e na rica estatuária." [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25]

Nas pirâmides onde foram enterrados os soberanos cuxitas, eram feitas oferendas de artigos de luxo, o que demonstra o rico artesanato daquele povo.

As principais cidades do reino de Cuxe foram Querma, Napata e Méroe. Dentre elas, Méroe se destacou por ter se tornado um importante centro urbano e por atrair grande número de pessoas interessadas na agricultura, no comércio e na metalurgia. Foi uma das capitais do reino de Cuxe. Escavações arqueológicas revelam que em Méroe havia uma área cercada por muralha de pedra, onde viviam o rei e a nobreza e ficavam os palácios, os prédios públicos e alguns templos religiosos.

"Tinha essa gente enorme apreço pelos vasos de alabastro, pelas estátuas, estelas e outros objetos egípcios - encontrados em tal abundância nos seus túmulos, que o primeiro arqueólogo que trabalhou em Querma, G. A. Reisner, chegou a considerá-la uma feitoria dos faraós. [...]" ²


Príncipe Arikankharer matando seus inimigos.
Arte meroítica em arenito

Os contatos com diferentes povos favoreceram a criação de uma cultura material rica e diversificada. Confeccionavam peças de cerâmica, jóias e estatuetas de ouro, prata e bronze, faziam instrumentos musicais, criavam objetos de madeira, produziam adornos de vidro, de conchas e de pedras preciosas.


Cerâmica meroítica
"Da Núbia provinha uma série de produtos apreciados em Mênfis ou Tebas, como peles de animais e temperos, mas sobretudo minerais preciosos e cativos que seriam empregados como escravos em serviços domésticos e nos templos. O próprio termo "Núbia" deriva de noub, que significava 'ouro'". [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25]

As fontes históricas sobre os cuxitas indicam que a sociedade estava dividida da seguinte forma: rei e nobreza; altos funcionários públicos e chefes militares; sacerdotes, comerciantes, artesãos e soldados; camponeses (também chamados felás).

As pessoas ricas vestiam roupas brancas de linho e algodão com bordados coloridos e usavam jóias. Os mais pobres usavam roupas simples de couro e andavam descalços. Em todas as camadas sociais as pessoas usavam colares, pulseiras, braceletes e tornozeleiras.

"A riqueza de Cuxe permitiu que suas elites copiassem o modelo egípcio. Da mesma forma que o faziam os hicsos. Trabalhadores egípcios serviam em Querma e transmitiam suas técnicas aos artesãos cuxitas. Qualquer objeto egípcio era tido em alta estima e bem cuidado. E também - pode-se supor - os modos de vida, a etiqueta e o protocolo." ³


Estátua meroítica encontrada no “Santuário da Água”, Méroe, Núbia, Sudão

Geralmente as casas eram feitas de tijolos e nelas havia fogão, camas de madeira, potes de barro, cestos e diversos objetos, como enxadas, facas e tesouras de ferro, além de vasos, taças, tigelas, caixas de bronze, prata, vidro ou madeira. Quanto maior fosse a casa e maior a variedade de objetos que ela tivesse, mais alta era a posição social de seu proprietário.

Relevo cuxita

O povo de Cuxe era politeísta e adorava deuses antropozoomórficos, como Marduk e Apedemek. Na cidade de Napata foi construído um templo em homenagem a Amon, deus do sol, também cultuado no Egito.


Pirâmide de Khartoum
"Do esplendor e prosperidade da civilização de Meroé restaram diversos monumentos, entre os quais pirâmides de pequena proporção, templos em homenagens aos deuses, túmulos e sarcófagos de granito [...]" [MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 26]

Os túmulos dos reis e da nobreza tinham formas de pirâmides. Mulheres e escravos eram enterrados com o morto para servi-lo na vida após a morte. Além disso, eram colocados junto ao corpo jóias, objetos e oferendas variadas. Nas demais camadas sociais, os mortos eram mumificados e enterrados em cemitérios.


Esta lâmpada representa um prisioneiro nu cativo, as mãos amarradas aos tornozelos. 

Para facilitar as atividades comerciais, os cuxitas utilizaram a escrita hieroglífica egípcia e, posteriormente, a alfabética, por influência dos fenícios e dos gregos.


Escrita cursiva meroítica

Cuxe tinha uma monarquia teocrática. Os estudos revelam que essa forma de governo foi comum em grande parte dos antigos reinos africanos que praticavam a agricultura como uma das principais atividades.

O reino de Cuxe começou a se enfraquecer por volta do século IV, devido a uma série de razões: o empobrecimento do Egito, que passou a comprar menos mercadorias cuxitas, a insegurança nas rotas comerciais, que dificultava a travessia do deserto. Além disso, Méroe, principal cidade na época, foi por diversas vezes atacada por tribos nômades e também por outro reino africano, Axum. Nesses ataques, os invasores saqueavam os estoques de alimentos e mercadorias, empobrecendo a cidade e dificultando ainda mais a prática do comércio naquele reino.

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 25-26.
PANAZZO, Silvia; VAZ, Maria Luísa. Navegando pela história. São Paulo: Quinteto Editorial, 2009. p. 78-81.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. p. 109 (citações ¹ e ²) e p. 111 (citação ³)

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