"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de setembro de 2012

A Europa do pão e do vinho e a Europa da carne e da cerveja

O casamento camponês (detalhe), Pieter Bruegel

Os hábitos alimentares são importantes para definir os grupos humanos. A Europa dos romanos, povoada por camponeses que habitavam regiões de clima e de vegetação mediterrâneos, era uma Europa do pão e do vinho. Os recém-chegados, caçadores e criadores, se alimentavam de carne e bebiam mel fermentado, o hidromel. Quando se tornaram sedentários, passaram a fabricar e a beber cerveja. A cultura dos cereais fez de todos os europeus consumidores de pão, diferentemente dos asiáticos, comedores de arroz, dos africanos, comedores de mandioca, e dos índios, comedores de milho. Mas, apesar da circulação das bebidas em todo o continente, há ainda hoje, ao norte e ao leste, uma Europa da cerveja, e a oeste e ao sul, uma Europa do vinho. Assim como o pão, a carne tornou-se um alimento habitual para os europeus, salvo para os mais pobres.

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 58.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Habitações populares em São Paulo no início do século XX

Crianças engraxando sapatos, foto de Vincenzo Pastore

Sabemos que muito antes dos técnicos realizarem suas pesquisas como forma de qualificar o baixo padrão de vida dos operários e de propor a construção de moradias econômicas em São Paulo, estes já haviam se cansado de reivindicar o direito a melhores condições de vida na cidade. Lembramos que muitos operários e trabalhadores moravam em cortiços porque seus salários reduzidos não pagavam o alto aluguel exigido pelos proprietários da cidade. [...]

Na década de 1920, o Brás, a Mooca, o Bom Retiro, Belém, Belenzinho, Pari, Barra Funda, Água Branca, Cambuci, Ipiranga, Penha e Pinheiros constituíam os principais bairros operários de São Paulo. Neles, ao lado dos operários, habitavam outras categorias de trabalhadores, entre eles, os vendedores de leite de vaca e cabra, de lenha, de castanha, batata-doce, vassoura, amendoins, os tripeiros, pizzaiolos, alfaiates, amoladores de faca, pipoqueiros, compradores de ferro-velho, garrafas, sacos vazios, chumbo, metal e cobre.

Com os operários e os vendedores ambulantes viviam também os comerciantes, isto é, os donos de cantinas, padarias, sapatarias e chapelarias. Alguns comerciantes moravam com suas famílias em sobrados cuja parte térrea era utilizada para fins comerciais, tais como padaria, armazéns e lojas. A parte superior era utilizada como moradia para a própria família. Contudo, não eram os comerciantes a categoria que mais sofria com os altos aluguéis, dado que, muitos deles conseguiram comprar suas casas logo no início da formação dos bairros. O Brás foi um dos bairros populares que atraía vários imigrantes pela facilidade dos transportes, pelas oportunidades de trabalho e, sobretudo, pelo baixo preço dos terrenos, considerados insalubres devido às inundações. Mesmo sendo bairros novos, não estavam contudo isentos dos porões e cortiços. No Bexiga, até as décadas de 30 e 40, as famílias usavam o mesmo pátio, compartilhavam do mesmo vaso sanitário, a alimentação era feita nos seus próprios aposentos. Muitos cortiços possuíam: "... um corredor central onde se abriam as portas e janelas dos quartos que se alinhavam de ambos os lados".

Ao retratar as condições insalubres dos cortiços, seus moradores não esqueciam de enfatizar a existência de redes de solidariedade como forma de suportar a miséria em que viviam.

"Naquele tempo, o Bexiga já era o bairro dos cortiços. Num dos quartos dormíamos os seis irmãos, era apertado, havia ratos e baratas, mas não sentíamos a miséria, éramos no bairro uma grande família, onde todos se ajudavam. [...]"

CARPINTEIRO, Marisa Varanda Teixeira. Imagens do conforto: a casa operária nas primeiras décadas do século XX em São Paulo. In: BRESCIANI, Stella (org.). Imagens da cidade - séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/Fapesp, 1994. p. 141-142.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"O homem: as viagens"



O homem, bicho da terra tão pequeno

Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.

Lua humanizada: tão igual à terra.

O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.

Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.

O homem funde a cuca se não for a júpiter

Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.

O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para te ver?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.

Restam outros sistemas fora

Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De conviver.

[Carlos Drummond de Andrade]

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O velho novo casamento

"Até pouco tempo atrás se pensava que a devassidão era uma exclusividade das cortes francesa ou inglesa. Esse é um mito que vem desaparecendo". 
(Rubim Santos Leão de Aquino, historiador)

No jogging diário, cruzo com três senhoras encantadoras: chapeuzinho protegendo do sol, roupas coloridas e uma pergunta no ar: como se casava no passado? Existia casamento, véu, grinalda, noiva virgem e tudo o mais? Respondo à mais curiosa delas: dona Conceição, viúva e agora "noiva", prestes a se casar novamente. Durante muito tempo - explico-lhe - não era óbvio que o casamento fosse obrigatoriamente monógamo e fundado no consentimento de duas pessoas.

Primeiro, dona Conceição, o casamento cristão é tão antigo quanto o cristianismo. Invenção medieval, casar-se na igreja só tornou-se corrente entre os séculos XII e XIII, progressivamente, unificando costumes muito diferentes.

No Velho Testamento, narrativas sobre a criação fecham-se com cenas emblemáticas sobre essa questão. Deus criou para o homem uma companheira, "carne de sua carne", para que fizessem "uma só carne", multiplicando-se sobre a Terra. E o Novo Testamento parece querer privilegiar o celibato. Os homens deveriam fazer-se "eunucos voluntários", diz Mateus, enquanto Paulo insiste sobre o valor superior da castidade. A continência - não na teoria, mas na prática - é, ainda, glorificada pelo celibato exemplar de Cristo e a virgindade de Maria.

Santo Agostinho, no entanto, deu uma definição positiva do casamento e ajudou a Igreja a sair do impasse: o casamento é um bem pois foi instituído por Deus desde o início do mundo e elevado por Jesus Cristo ao papel sublime de representar sua própria união com a Igreja.

Desde o século VI, dona Conceição, benzia-se o casal à porta ou no quarto nupcial, primeiro sentados e depois deitados na cama. Bênção precedida de um rito de purificação. Os noivos eram aspergidos com sal e proibidos de manter relações sexuais de três a trinta dias. A liturgia refletia a doutrina: a sexualidade era abençoada mas devia sofrer, antes, uma "limpeza". Contudo, nos dez primeiros séculos do cristianismo, a bênção nupcial não era uma obrigação para os cristãos.

O casamento era, em princípio, um engajamento civil e, como tal, dependente de diferentes tradições jurídicas ocidentais. No Direito Romano, retomado pelos canonistas do século XII, era o consentimento entre esposos que fazia o casamento. No Direito Germânico, havia pelo menos dois tipos de matrimônio. Um, no qual o esposo recebia do pai ou da família a tutela de sua esposa, tutela que era retribuída pela entrega de um dote. O ritual era obrigatoriamente público e fazia-se de acordo com um cerimonial cuidadoso. E existia, ao mesmo tempo, outro tipo de união, também reconhecida pelo Direito, na qual não havia nem transferência da tutela nem a doação de dote. Marido e mulher podiam, pois, separar-se sem problemas.

No final do século XI, os ritos familiares celebrados em casa transferiram-se para a entrada da igreja, podendo ou não ser seguidos da missa romana. O papel do padre foi se modificando, dona Conceição. De juiz da liberdade com o qual os esposos se escolhiam, ele passou também a entregar a jovem esposa ao futuro marido - antes, uma obrigação do pai, que os incitava a manter as mãos unidas. Já o padre dizia: "eu vos uno etc..." Foi quando apareceu o anel como símbolo da fidelidade e do amor, laço de unidade conjugal.

Em finais do século XII, o ritual do casamento era praticado em toda a Europa cristã. Justificado pelo Direito Canônico e pela teologia cristã, tinha sua própria liturgia, que reservava ao padre um papel muito importante. O consentimento válido não era mais o das famílias mas o dos noivos.

Como é que se casava no Brasil, há 300 anos, dona Conceição? Pelas leis da Igreja, aos 14 anos os rapazes podiam se casar; as meninas estavam aptas a partir dos 12 anos. Mas essa não era a regra. Estudos comprovam que, no Sudeste, a idade média era de 21,6 anos para os homens e 20,8 para as mulheres. Casamentos e batizados numa mesma família costumavam realizar-se no mesmo dia, sobretudo no interior. O padre ia à capela da fazenda e, num só dia, realizava as duas cerimônias.


Casamento de negros de uma casa rica, Debret. [Uniões formais eram frequentes, mas sem "mistura de raças"]


Ao voltar para casa, os noivos eram recebidos com tiros de mosquetão, foguetes e cantorias que louvavam a comezaina e o baile que se seguiriam. Uma semana depois, um almoço ou "boda" encerrava as festas, que tinham farta distribuição de rapadura, aguardente e eram animadas por batuques e repeniques de viola. As pessoas evitavam casar-se no dia de Sant'Ana (26 de junho), pois acreditava-se que a noiva estaria fadada a morrer de parto. A superstição impedia ainda que as noivas vissem ou provocassem sangue, matando ave ou ajudando na cozinha, ou que saíssem de casa ou olhassem para trás no caminho da igreja.

Entre ciganos, no século XIX, após realizada a cerimônia na igreja, o casal dirigia-se à casa da esposa para a bênção paterna. Ali, a noiva recebia do parente mais velho uma camisa recoberta de bordados, que lhe era cobrada no dia seguinte com as marcas de sua virgindade. Espécie de "troféu do hímem", segundo um viajante estrangeiro de passagem pelo Brasil.

A propósito, dona Conceição, virgindade não era o forte das noivas no período colonial, época em que muito poucas tinham condições financeiras de pagar um vestido nupcial para ir à igreja e em que a maioria entregava-se ao noivo nas redes e quintais das casas em troca de "promessa de casamento". O vestido, o buquê e a valorização da castidade feminina só chegaram no século XIX com o crescimento do modo de vida e dos valores burgueses.


Costumes no Rio de Janeiro, Rugendas. [Alcoviteira: o sexo antes do casamento era mais comum do que se imagina]


Logo, em sua condição de viúva, posso assegurar-lhe que "historicamente" a senhora não representa novidade! Não se preocupe com grinalda, nem véu branco... e muitas felicidades, dona Conceição!

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 33-36.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Novo Império egípcio e o monoteísmo do faraó Akhenaton

Faraó Akhenaton, XVIIIª dinastia. A revolução religiosa de Akhenaton ainda hoje fascina os historiadores. Aqui ele é retratado com sua esposa, Nefertiti, e com sua filha sentada no colo. O disco solar, representando o deus Aton, avulta acima.

O Novo Império começou em 1579 a.C. com a guerra de libertação contra os hicsos. Essa guerra deu origem a uma militância intensiva, que encontrou expressão na construção de um império. Faraós de espírito militar conquistaram territórios que se estendiam para o leste até o rio Eufrates. O Egito obteve tributos e escravos de seus Estados súditos. As conquistas levaram à expansão da burocracia, à criação de um exército profissional e ao fortalecimento do poder dos sacerdotes, cujos templos partilhavam dos espólios de guerra. A formação do império pôs fim ao isolamento egípcio e acelerou o intercâmbio comercial e cultural com outros povos. Durante esse período, a arte egípcia, por exemplo, mostrou a influência de formas estrangeiras.

O cosmopolitismo crescente encontrou paralelo num movimento pelo monoteísmo durante o reinado do faraó Amenófis IV (c. 1369-1353 a.C.), que buscou substituir o politeísmo tradicional pelo culto a Aton, um deus único, representado como o disco solar. Amenófis adotou o nome de Akhenaton ("o que apraz a Aton") e transferiu a capital de Tebas para uma cidade sagrada recém-construída, chamada Akhetaton. A cidade tinha palácios, centros administrativos e um conjunto de templos em honra a Aton. Akhenaton e sua esposa Nefertite - que teve papel destacado em sua corte -, devotaram-se a Aton, o criador do mundo, mantenedor da vida, o deus do amor, da justiça e da paz. Akhenaton também ordenou que os nomes de outros deuses fossem apagados das inscrições nos templos e monumentos. Era com um temor respeitoso que ele glorificava Aton:

Como são múltiplas as tuas obras
Estão ocultas aos olhos do homem.
Ó Deus único, sem igual,
Fizeste a terra segundo teu desejo.

O "monoteísmo" de Akhenaton teve reduzido impacto entre a maioria dos egípcios, que conservou suas crenças antigas, e encontrou resistência entre os sacerdotes, que se ressentiram das modificações introduzidas pelo faraó. Pouco depois da morte de Akhenaton, o novo rei mandou destruir os monumentos a Aton, bem como as inscrições e os registros com o nome de Akhenaton.

As questões históricas mais significativas relacionadas com Akhenaton são: sua religião era um monoteísmo autêntico, que impulsionou o pensamento religioso numa nova direção. Se assim foi, teria influenciado Moisés, que liderou os israelitas para fora do Egito, cerca de um século mais tarde? Essas perguntas provocaram controvérsias entre os historiadores. A principal limitação ao caráter monoteísta do atonismo está no fato de que, na realidade, havia dois deuses na religião de Akhenaton - Aton e o próprio faraó, que ainda era adorado como divino. Não existe tampouco nenhuma evidência de que Akhenaton tenha influenciado o monoteísmo de Moisés. Além disso, os hebreus nunca identificaram seu Deus com o Sol ou qualquer outro elemento da natureza.

Mais tarde, no século XIII a.C., os líbios, procurando provavelmente instalar-se na terra mais fértil do Egito, atacaram-no a partir do oeste, e os Povos do Mar, como eram chamados os salteadores nômades da área do mar Egeu e da Ásia Menor, lançaram uma série de ataques ao Egito. Enfraquecido, o país abandonou seu império. Nos séculos que se sucederam, o Egito caiu sob o domínio dos líbios, núbios, assírios, persas e, finalmente, dos gregos, para os quais perdeu sua independência no século IV a.C.

MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 18-19.

sábado, 22 de setembro de 2012

Culturas Hohokan, Mogollon e Anasazi: o "povo Pueblo"

Pueblo Anasazi: Mesa Verde

Texto 1

O espaço natural. [...] o sudoeste norte-americano é uma área de terras altas de cerca de quatro milhões de quilômetros quadrados, compreendendo a maior parte do Novo México, Arizona, sul de Utah e sul do Colorado, nos Estados Unidos, e o norte de Sonora e Chihuahua, no México. Entre seus emblemáticos elementos geográficos, estão as Montanhas Rochosas, ao sul, e o Planalto Colorado, ao norte, uma faixa vulcânica de terras altas que se estendem de leste a oeste e que incluem o Mogollon Rim, na área central, e dois desertos ao sul - o deserto norte de Sonora, de um modo geral a oeste da divisão continental -, e o deserto norte de Chihuahua, de um modo geral a leste da divisão. Dois sistemas fluviais drenam a região: o Colorado, a oeste da divisão, flui em direção ao Golfo da Califórnia e o Rio Grande, confinado ao Novo México pelas lavas de uma profunda falha geológica, flui para leste do Golfo do México. A elevação varia de cerca de 600 metros, no Deserto de Sonora, a mais de 4.000 metros, ao sul das Montanhas Rochosas. A precipitação anual varia de cerca de 15 a 30 centímetros nos desertos, de 25 a 45 centímetros no Planalto Colorado e de 45 a 76 centímetros nas terras altas. Dito isso, existem pelo menos sete zonas ecológicas diferentes separadas mais por distâncias verticais do que horizontais, sendo que cada uma delas possui seu próprio clima, geologia e vida animal e vegetal. Da perspectiva humana, cada uma é um habitat potencial com suas próprios oportunidades e perigos, exigindo soluções muito particulares para a sobrevivência em um ambiente árido.

O Planalto Colorado, com 1.500 a 2.300 metros acima do nível do mar, é uma terra visualmente espetacular, com um planalto escarpado de arenito colorido e plano no topo, cortado por profundos cânions e interrompido por intrusões vulcânicas. Chamamos os antigos criadores de cerâmica da região e partes adjacentes ao norte do Rio Grande de "Anasazi" (ou Pueblo pré-histórico). O Mogollon Rim apresenta uma queda súbita de cerca de 2.400 a 1.000 metros e é envolto pelo Planalto Colorado, ao norte, e por cadeias montanhosas vulcânicas, rios de lava, crateras e cones vulcânicos, a leste. Identificamos as cerâmicas antigas dessa área e áreas adjacentes aos dois grandes desertos ao sul como "Mogollon". O Deserto de Sonora também foi o lar de outros ceramistas que chamamos de "Hohokan", enquanto que no Deserto de Chihuahua haviam outros, chamados "Casas Grandes". Outros elementos geográficos regionais, como o Tonto Basin, no Arizona, e o Planalto Pajarito, ao norte do Novo México, definiam áreas de tradição cerâmica local que associamos com diferentes sociedades, chamadas "Salado", "Sinagua", "Mimbres Mogollon" e assim por diante.

Parque Nacional: Chaco Canyon


Fontes históricas. Relata-se pela tradição oral que muitas pessoas viveram no sudoeste norte-americano por pelo menos 10.000 anos, mais conhecemos os primeiros habitantes apenas de forma indireta, já que a história escrita teve início apenas no ano 1540 d.C., quando escrivões hispânicos registraram as primeiras observações da região feitas por europeus. Nós podemos apenas especular sobre os primórdios baseados nesses registros burocráticos, nas tradições orais dos índios Pueblo, registrados a partir dos anos 1880 e, principalmente, em uma crescente quantia de detalhadas evidências arqueológicas. A arqueologia do sudoeste depende de escavações sistemáticas de antigos sítios e da observação de perto de fragmentos do passado que são recuperados, incluindo inúmeras peças de cerâmica quebradas. Recipientes inteiros recuperados por arqueólogos são um pouco mais informativos que cacos, mas aqueles com contexto de descoberta desconhecido têm pouco valor, em termos de informação, para arqueólogos ou qualquer outro. O conhecimento mais certo que temos do passado vem de sítios que estão essencialmente intactos. Ironicamente, embora aprendamos a coletar mais e mais informações causando menos e menos dano, centenas de sítios arqueológicos estão sendo destruídos de forma ignorante para satisfazer uma fome contemporânea por belas cerâmicas.

Mesa Verde: pesquisa arqueológica


Modo de vida. O passado antigo é um território que, na melhor das hipóteses, apresenta limites ao conhecimento. Por exemplo, nunca saberemos qual das pioneiras tradições cerâmicas, se alguma, representou um grupo ou uma "cultura" consciente de sua identidade, tampouco o que esses grupos ceramistas se chamavam, nem qual língua eles falavam. O que sabemos é que em 1540 d.C., talvez cerca de meio milhão de pessoas tenha vivido no sudoeste, a maioria composta de agricultores cujas vilas variavam em tamanho, de pouco menos de cem pessoas a duas ou três mil. Os exploradores chamavam esses lugares e as pessoas que lá viviam de "pueblos" ("povoado" em espanhol) e seus descendentes desde então são o "povo Pueblo". Os Pueblo falavam pelo menos oito idiomas diferentes na época do contato e viviam em comunidades que eram essencialmente igualitárias, teocráticas e autônomas. Seu modo de vida era muito parecido de lugar para lugar e cerâmicas pintadas e moldadas a mão eram produzidas na maioria dos pueblos, se não em todos, em quantias relativamente grandes.

A maioria dos vilarejos Pueblo se agrupava em vales estreitos de rios, em estilo de oásis, ao longo do alto-médio Rio Grande e seus afluentes e a sul e a oeste do Planalto Colorado. Outros eram agricultores nas esparsas "rancherías" nos desertos do sul. A compreensão de que o universo Pueblo, historicamente conhecido, data em sua maior parte apenas do século XIV tornou-se mais ampla após o desenvolvimento de métodos de datação durante o século XX. Com o tempo, tornou-se amplamente aceito que vários das centenas de vilarejos, talvez a maioria deles, que foram abandonados há tempos no Planalto Colorado e nas terras altas Mogollon e abaico delas, foram de alguma forma ancestrais aos Pueblo pós-1300 d.C.

Produção de cerâmicas. A produção de cerâmicas teve início na região por volta do ano 100 d.C., nos desertos do sul, com contêineres de tom vermelho e marrom sem pintura, feitos de argilas vulcânicas locais ricas em ferro. Por volta de um século mais tarde, louças semelhantes, mas cinzas e brancas, eram produzidas no Planalto Colorado, onde a geologia local fazia com que a maior parte das argilas fosse pobre em ferro. Em ambas as áreas, a cerâmica florescia à medida que a população aumentava. Por volta dos anos 700 d.C., no sul, o povo Hohokan havia criado uma tradição de pintura em cerâmica em vermelho sobre marrom. Enquanto isso, muitas louças regionais em preto sobre branco eram produzidas em quantias crescentes no Planalto Colorado. Até os anos 1300, a maior parte das tradições cerâmicas do sudoeste, produzida por diferentes grupos praticando estilos de vida semelhantes, compartilhava de uma gama relativamente pequena de motivos e criava sutis variações dos poucos temas básicos. As tigelas tinham pintura na parte interna, as jarras na parte externa. As composições eram simétricas e organizadas de forma geométrica. Os padrões lineares predominavam. Eram comuns as inversões de figuras da base, o que resultava em ambíguos motivos positivos-negativos. Hoje em dia, essas variações são marcas que distinguem as tradições ancestrais de outras.

As secas e as variações climáticas rompiam a vida em toda a região, findando por causar enormes re-povoamentos durante os séculos XIII e XIV. Como as antigas terras foram abandonadas, o vale do Rio Grande e as terras fronteiriças Mogollon se tornaram os locais preferidos para novos povoamentos. As distinções entre as regiões de louça branca do norte e de louça vermelha no sul foram ofuscadas por uma explosão criativa de estilos de pintura em cerâmica inspirados por ambas as tradições, do norte e do sul. Novos e dinâmicos desenhos, que podiam ser assimétricos, novos motivos, combinações de cor e novas tintas, tudo parecia ser uma resposta visual ao fato básico de que esses ancestrais do povo Pueblo estavam criando um novo universo a partir dos fragmentos do velho. Enquanto isso, nos desertos do sul, outros Hohokan, Mogollon e Casas Grandes se dispersavam para pequenas rancherías e para vilarejos ocupados sazonalmente.

Cena de um pueblo: fotografia de Edward S. Curtis


A descoberta da cerâmica dos pueblos. A cerâmica do sudoeste norte-americano era virtualmente desconhecida antes dos anos 1880, quando os recém-chegados fazendeiros, criadores de gado e lojistas euro-americanos fizeram as primeiras escavações em sítios antigos, por curiosidade ou por diversão. Logo, alguns deles começaram a exibir seus achados em feiras industriais regionais e nacionais, onde eram vendidos como raridades e exemplares científicos. Até os anos 1890, os saques movidos pelo comércio formaram uma indústria no sudoeste, levando à proteção das terras nacionais pela legislação, em 1906. Meio século depois, houve pouco comércio de cerâmicas saqueadas, mas a bem-vinda transformação intelectual nos anos 1960, de "raridade" e "exemplar científico" para "arte", teve consequências inesperadas.

Cerâmica, cultura Anasazi


Uma nova e esclarecida audiência de colecionadores de arte cerâmica, e até mesmo alguns museus, começou a surgir. A admiração por essa maravilhosa arte estimulou uma nova geração de saqueadores. Hoje vemos a destruição mecanizada e em ataque de sítios arqueológicos por "caçadores de potes", bem capitalizados e ávidos por enriquecer com o fornecimento de beleza para o mercado da arte. Contudo, para cada sítio que se perde, perdemos conhecimento do passado Pueblo, bem como a perspectiva de nos aproximarmos mais de uma melhor compreensão dos artistas antigos como seres humanos e da sua arte como uma expressão da humanidade compartilhada. Nós devemos a eles, e à sua arte, um futuro melhor.

ANTIGAS ORIGENS DO SUDOESTE AMERICANO: 600-1600 AD. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2008.

Texto 2

No sudoeste da América do Norte, três civilizações pré-históricas - Hohokan, Mogollon e Anasazi - floresceram no período entre os séculos I e XV. As três foram influenciadas pelas civilizações mexicanas.

Os Hohokan eram agricultores habilidosos que irrigaram as planícies do sul do Arizona. Foram os primeiros a desenvolver uma técnica decorativa que usava o suco de cacto, um ácido suave, para gravar desenhos em conchas. 

Os Mogollon tinham sua base nas montanhas do Novo México, onde viviam em casas subterrâneas. Produziam uma cerâmica típica, conhecida como mimbers, com puncturas rituais, possivelmente para permitir que o espírito do dono escapasse do corpo, ao morrer. Em cerca de 1500, a civilização Mogollon foi absorvida pela civilização mais sofisticada dos Anasazi, que dominou a região onde os estados de Utah, Arizona, Colorado e Novo México se encontram.

Cerâmica, cultura Mogollon

O maior empreendimento dos Anasazi foi a construção de pueblos - assentamentos complexos compostos de fileiras de quartos adjacentes, frequentemente com diversos andares. O maior, Pueblo Bonito, no cânion de Chaco, no Novo México, continha 800 cômodos. Outros pueblos, como Mesa Verde, foram construídos nos rochedos do cânion. 

Cada pueblo tinha algumas kivas - câmaras semi-subterrâneas onde os homens da comunidade reuniam-se e celebravam cerimônias. A rede de estradas a partir do cânion de Chaco sugere que era um importante centro comercial.

ANTIGAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Ática, 1995. Série "Atlas Visuais".

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Os condenados da Terra

Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem, Salvador Dali.

Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o "numerus clausos"; uma vez que ninguém  pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assentam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade. A coisa é conduzida a toque de caixa, por peritos: não é de hoje que datam os "serviços psicológicos". Nem a lavagem cerebral [...] E não afirmo que seja impossível converter um homem em animal; digo que não se chega a tanto sem o enfraquecer consideravelmente; as bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição. É o tédio com a servidão. Quando domesticamos um membro da nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por por pouco que lhe damos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem, nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem ele, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força.

Extraído do Prefácio de Jean-Paul Sartre à obra: FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 9-10.

Tumba de Mahu

O chefe de polícia Mahu se ocupa do abastecimento de seus subordinados - Tumba de Mahu, Tell-el-Amarna.


Na tumba do chefe de polícia Mahu, em Akhetaton (Tell-el-Amarna), que data do século XIV, vemos um mural representando tal funcionário ocupando-se da distribuição de víveres aos seus subordinados. À primeira vista, o que chama a atenção são as convenções da arte egípcia: as personagens de alta hierarquia (registro superior direito) são representadas em tamanho bem maior do que os homens comuns; as figuras humanas aparecem de perfil (embora com os olhos e os ombros de frente); inexiste qualquer efeito de perspectiva. E, no entanto, se observarmos mais de perto a parte direita do mural, no registro superior, entre Mahu e o outro dignitário (espécie de primeiro-ministro, acompanhado por um de seus altos funcionários) que, vestido de uma longa túnica, dá ao chefe de polícia a autorização para retirar os víveres dos depósitos do rei, notaremos no chão um braseiro, o que indica que a cena tem lugar de manhã cedo e no inverno. Logo abaixo, o transporte dos alimentos inspira um quadro pitoresco de grande vivacidade. E no último registro, sempre à direita, estando as vitualhas já entregues, vemos, entre outras figuras, uma camponesa confortavelmente instalada sobre um grande cesto, gesticulando e conversando com um tropeiro... É realmente fascinante tal mistura de convenção e naturalismo, a coexistência, que podemos seguir ao longo de milênios, de solenes cerimônias religiosas e monárquicas com cenas de felicidade doméstica, trabalho agrícola e artesanal, esportes e jogos - enfim, mil detalhes da vida quotidiana de nobres e plebeus.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 9-11.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O tempo da natureza, o tempo da guerra e o tempo cristão no medievo

A vida cotidiana era marcada pelo tempo da natureza, pelo tempo da guerra e pelo tempo cristão.

É difícil para nós, acostumados a ordenar o nosso cotidiano pelo relógio, entender a vida cotidiana medieval.

A ideia de fim de mundo não atormenta os nossos espíritos. Mas, na sociedade medieval, essa preocupação aumentava de intensidade por ocasião das grandes catástrofes naturais, sociais ou políticas. O pessimismo, no entanto, era acompanhado de uma esperança no triunfo do reino de Deus.

A fronteira que separava as três ordens sociais era rígida, praticamente insuperável. No entanto, os três cotidianos, o do camponês, o do nobre e o do clérigo estavam intimamente ligados.

As tensões e os conflitos sociais podem ser deduzidos por meio das três concepções de tempo que conviveram na Idade Média.

Apesar do esforço da Igreja, os camponeses mantinham-se presos a uma maneira pré-cristã de conceber o tempo. Para o camponês o tempo era cíclico, tudo voltava ao ponto de partida, numa eterna rejeição. Era um tempo natural, biológico e, portanto, não histórico. A cristianização não conseguiu abolir o tempo cíclico do camponês. A sociedade, nessa época, era predominantemente agrária, por essa razão a referência cronológica mais evidente era o tempo agrícola. Tempo do preparo da terra, do plantio e da colheita; tempo da espera e da paciência. Um tempo lento, repetitivo, e doloroso porque era espreitado pela fome. O mundo rural medieval, por ser cíclico, não tinha necessidade de ser datado.


Tempo da natureza: Colheita. Artista desconhecido. Iluminura.

O tempo cristão, do clero, era linear. O passado não tinha retorno. O Gênese (criação do mundo por Deus) e a Encarnação (vinda de Cristo) pertenciam ao passado. Para o futuro aguardava-se o Juízo Final (o final dos tempos com a segunda vinda de Cristo e o julgamento dos homens).


Tempo cristão: Alas exteriores do Altar do Juízo Final, c. 1450. Rogier van der Weyden

Dessa forma, a história caminharia para um final já anunciado pelas Escrituras Sagradas (o Apocalipse), um final terrível, com grandes calamidades. Seria o tempo da salvação, mas também o do terrível acervo de contas. O Apocalipse era ameaçador porque não se sabia quando viria - o sinal podia ser uma calamidade natural ou social.

O tempo novo era o período que se iniciou com a vinda de Cristo. O tempo novo era o período que se iniciou com a vinda de Cristo. O tempo antigo era o anterior a essa vinda. Vivia-se, então, um tempo intermediário entre os tempos antigos e a nova era a ser inaugurada com a volta do Messias.

A liturgia cristã relembrava os eventos dessa história no seu calendário anual. O tempo que conduzia a vida cotidiana era determinado por esse calendário religioso controlado pelo clero. O tempo linear cristão convivia com o tempo cíclico tradicional do camponês. Um acabou interpenetrando o outro.

O tempo senhorial, por sua vez, era um tempo militar, marcado pelas conquistas e pela guerra. A memória do passado era constituída pelos feitos militares dos antepassados, que honravam e enobreciam o nome familiar, exemplos que deviam ser seguidos pelos seus descendentes.

Tempo da guerra: Batalha de Muret, 1213. Artista desconhecido. Manuscrito francês.

Esse tempo militar se adequou ao tempo cristão administrado pelo clero. A época das campanhas militares devia se harmonizar com o calendário litúrgico, respeitando os dias santificados pela Igreja.

O tempo da nobreza senhorial também se confrontava com o tempo camponês. Isso ocorria na exigência das obrigações, na cobrança das taxas e prestações.

Assim, na vida cotidiana, os homens da Idade Média usavam referências cronológicas variadas, as quais revelam as estruturas econômicas e sociais da época.

As medidas de tempo são instrumentos de dominação social de grande importância. Quem dominava o controle do tempo reforçava o seu poder sobre a sociedade. A variedade de tempos medievais é, portanto, uma imagem das lutas sociais da época.

PEDRO, Antonio; SOUZA LIMA, Lizânias. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 313-314. V. 1.

domingo, 16 de setembro de 2012

Os deuses da Grécia e sua mitologia

Posêidon

Os poemas homéricos contribuíram para fixar a aparência física dos deuses gregos e suas atribuições. O universo se organiza entre os deuses do Alto (o Céu) e os deuses de Baixo (os Infernos). Os doze deuses principais que vivem no Olimpo têm, cada um, um domínio de ação privilegiado. Todos têm um elemento físico característico (a barba de Zeus e de Posêidon, os longos cachos de Apolo) e atributos distintivos (o raio de Zeus, o arco e a flecha de Ártemis, o caduceu de Hermes). Os gregos estão familiarizados com a representação dos deuses, cujas estátuas cultuais ornam os templos. Ao lado dos doze deuses estão os "heróis", homens que, por suas brilhantes ações, se tornaram iguais aos deuses, como Hércules que realiza doze trabalhos para eliminar os monstros da Terra, Teseu que mata o Minotauro, Jasão que conduz a expedição dos Argonautas em busca do Tosão de Ouro etc. Os diferentes episódios das lendas relativas aos deuses e aos heróis bem como os poemas homéricos, a Ilíada e a Odisseia, forneceram aos artistas um repertório inesgotável de motivos para os vasos e os baixo-relevos.

SALLES, Catherine. (dir.) Larousse das antigas civilizações: da Babilônia ao Exército Enterrado Chinês. São Paulo: Larousse, 2008. p. 142.

sábado, 15 de setembro de 2012

Das trilhas às autoestradas: a humanidade construída sobre primórdios humildes

Presente passado: caçadores bosquímanos

Os primeiros seres humanos eram caçadores. Deve haver alguma chance de que você ainda viva desta forma - gastando  todo seu tempo e toda sua energia tentando obter comida a partir da natureza ao seu redor. Mas eu duvido muito. Em vez disso, você é estudante, funcionário de um escritório, construtor de casas, instalador de TV a cabo, ou desempenha uma dentre as milhares de tarefas imaginadas pela humanidade. Você utiliza ferramentas como telefones celulares e computadores portáteis - coisas com as quais as pessoas nem sonhavam quando eu nasci, em meados do século XX, que dirá no início da civilização. Mesmo assim, aqui estou eu, digitando em um teclado de computador, verificando meus investimentos online e ouvindo meu iPod, como qualquer ser humano moderno. E, de certa forma, aqui também estão as pessoas de 30 mil anos atrás, os meus ancestrais e os seus.

Eles devem ter se preocupado bastante com raízes comestíveis, frutas silvestres, sementes,, provavelmente insetos e lagartas, mariscos da estação, carne quando havia disponível e tutano rico em calorias das caças frescas ou encontradas. Eles literalmente precisavam se sacrificar para obter o que necessitam para sobreviver. Nas áreas de clima quente, onde os primeiros membros da espécie viviam, a sobrevivência pode não ter sido terrivelmente difícil. Eles possuíam o mesmo equipamento mental de que dispomos hoje. Tinham o cérebro grande, animais que usavam ferramentas e, após dezenas de milhares de anos vivendo do que encontravam para matar, alguns deles decidiram que devia haver outro jeito.

Impelidos pelas circunstâncias (mudança do clima, por exemplo) ou, de alguma forma, inspirados pelos pensamento de novas possibilidades, eles partiram das florestas, savanas e dos litorais da África para enfrentar os desafios de praticamente todos os ambientes da Terra - montanhas, desertos, estepes congeladas e ilhas remotas. Chegou um momento em que eles trocaram as pontas de pedra de suas lanças por ferramentas e armas feitas de cobre, depois de bronze, depois de ferro... e, por último, objetos como microcircuitos e sondas da NASA em Marte. Essas pessoas viajaram, se adaptaram e inovaram até chegar ao presente. Essas pessoas somos você e eu. De um jeito estranho, o depois é o agora.

Em algum ponto há aproximadamente 10 mil anos, não muito tempo depois do término da última Era do Gelo, algumas pessoas, cuja tecnologia ainda era amplamente composta por paus e pedras, se assentaram. Elas descobriram que, se colocassem sementes no chão, as plantas cresceriam. Era muito melhor do que sair por aí procurando as plantas. Esta percepção deu início à agricultura.

Os historiadores apontam para uma área que chamam de Crescente Fértil como o berço da agricultura. Com o formato parecido com o de um croissant mordido, o Crescente Fértil se estendia do que atualmente é o oeste do Irã, passando pelo oeste da Turquia, e também ao sul, ao longo da costa mediterrânea e do Rio Jordão, pelos territórios da Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina, chegando ao norte da África e ao Vale do Nilo, no Egito. Em minha analogia do croissant mordido, o leste do Mediterrâneo é a parte faltante.

O crescente também é o local onde os arqueólogos encontraram algumas das cidades mais antigas do mundo. O mantra dos primórdios da civilização é mais ou menos assim: a agricultura significa uma fonte de comida confiável. Muita comida também traz a comodidade das trocas à população. As trocas levaram a mais trocas, o que levou a mais mercadorias e riqueza. Nem todos precisam trabalhar nos campos. Algumas pessoas se especializam no envio de mercadorias, por exemplo. Outros podem se especializar na construção - sejam eles trabalhadores pagos ou escravos - ou talvez se concentrem no uso de armas, seja para proteger sua própria riqueza, seja para roubar a riqueza alheia. Os artesãos criam joias e transformam objetos mundanos (armas, potes e cestas) em afirmações estéticas. A sociedade recebe mais camadas. Os prédios crescem. As cidades surgem. As trocas precisam manter um registro de quantidades e valores, o que exige um meio para registrar as informações. Diversos sistemas são inventados. Surge a escrita. Livros são escritos. Ideias surgem. Há mais trocas, surgem as influências interculturais, e assim por diante.

Em seguida, uma mulher que fala inglês em Los Angeles, cujos ancestrais falavam espanhol, celta e japonês, está sentada em seu carro sul-coreano, presa no trânsito da autoestrada, um estilo de estrada de acesso limitado inventado na Alemanha. Ela bebe café colhido em El Salvador, preparado no estilo italiano em uma máquina fabricada na China com especificações da Suíça. 

No rádio por satélite do carro, uma voz que vem de Toronto está apresentando as notícias de repórteres da Índia, Afeganistão e Ucrânia. Ela estica o braço e troca para uma estação que toca um estilo de música inventado na Jamaica, por pessoas que falam inglês, mas são descendentes de africanos.

HAUGEN, Peter. História do mundo para leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2011. p. 13-15.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Agradecimento indígena [Prece maia-quiché]

Mural maia em Calakmul

Damos-te graças, Senhor,

Porque fomos conquistados, mas não vencidos;

Porque tiraram nossos rios, mas somos os rios e as veias de nossos povos;

Porque nos esmagaram, mas não acabaram conosco;

Porque nos espremeram como fruta, mas continuamos a ser poços de água viva;

Porque continuam a nos perseguir, porém nunca nos apanham;

Porque nos arrancam os olhos, mas nós já enxergamos o novo dia;

Porque nos esquartejam como bois, mas nós permanecemos inteiros;

Porque nos matam, mas não nos destroem;

Porque nos enterram vivos, nós, porém, ressuscitamos!

Autor anônimo maia quiché

GUARANI, Emerson; PREZIA, Benedito. A criação do mundo e outras histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011. p. 53.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Um novo deus: o Cristo

Crucificação, Grünewald

Os romanos veneravam inúmeros deuses, e sua religião consistia principalmente na realização de ritos, mas do Oriente chegam novos deuses que se dirigem especialmente ao coração e aos sentimentos íntimos. Um desses deuses, adorado primeiro pelos judeus, seduz cada vez mais homens e mulheres. É o Deus dos cristãos que, segundo seus fiéis, encarnou-se em um homem-Deus, Jesus, o Cristo, isto é, o ungido do Senhor, e que morreu na cruz em Jerusalém sob o reinado do Imperador Tibério (por volta do ano 30 d.C.).

Depois de terem perseguido os cristãos, os imperadores fazem, no século IV, do cristianismo a religião oficial do Império. Nessa época de angústias, ele prometia aos seus fiéis a ressurreição no final dos tempos, a salvação eterna para aqueles que tiveram uma vida virtuosa e a reparação das injustiças e das desigualdades da sociedade terrestre. Os bons iriam para o paraíso e os maus para o inferno.

Novos chefes espirituais aparecem na Europa: os padres e os monges, dirigidos pelos bispos. Entre estes, o bispo de Roma pretende ser o chefe supremo, o papa, ou seja, o pai. Um segundo aspecto da Europa aparece, o da cristandade.

No Oeste do Império Romano, falava-se latim; no Leste, grego. Como o Oeste está em crise, o poder imperial desloca-se para Leste. O Imperador Constantino estabelece sua capital, Constantinopla, na extrema ponta da Europa em contato com a Ásia. Nessa parte oriental do Império, a Igreja cristã - cuja língua é o grego e não o latim, e que depende não do papa e sim do patriarca de Constantinopla - apresenta-se como a herdeira da "verdadeira" fé cristã: a ortodoxia.

A Igreja Cristã Latina, que se pretende universal (esse é o sentido da palavra "católica"), não cessa de se distanciar da Igreja Cristã Grega Ortodoxa. Em 1054, as duas igrejas cristãs declaram oficialmente sua ruptura; é o cisma. O cristianismo tem doravante duas cabeças: a latina é Roma; a grega, Constantinopla. Os povos ainda pagãos que se tornarão cristãos ao longo da Idade Média serão convertidos a oeste por Roma, e a leste por Constantinopla.

Dessa forma se estabelece na Europa uma ruptura, essencialmente religiosa, mas que corresponde sem dúvida às diferenças mais gerais e mais profundas entre os europeus do Oeste e os europeus do Leste. Outras diferenças virão, ao longo da história, agravar essa ruptura, mas, dos dois lados, somos cristãos. 

[...]

Pouco a pouco, todos esses "bárbaros" se convertem ao cristianismo. Na Europa medieval, a conversão ao cristianismo romano é o sinal de que um povo torna-se uma nação e passa a ser civilizado. É como, hoje em dia, ser admitido na ONU.

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 49-52, 61.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Cotidiano na corte de Elizabeth I

Cena do filme Elizabeth: A Era de Ouro, direção de Shekhar Kapur, 2007.

A loja do barbeiro era o centro dos mexericos. Lá se juntavam os jovens elegantes que vinham não só cortar o cabelo, mas principalmente para saber as novidades do dia. O estabelecimento estava bem fornecido de divertimentos. Enquanto esperavam a sua vez, os fregueses podiam ouvir música [...].

O barbeiro desempenhava também as funções de dentista. De vez em quando lá entrava na loja alguém com dor de dentes e se sentava numa cadeira à espera da vez. O mestre barbeiro costumava conservar os dentes que arrancava, pendurando-os na loja. [...]

As mulheres inglesas [da nobreza] estavam completamente sob o poder dos maridos, que, no entanto, não tinham sobre elas direito de morte.

[...] Não tinham de viver fechadas em casa. Eram mais livres que em qualquer outro país; envergavam fatos [roupas] extremamente belos e dedicavam a maior atenção às suas golas e ao tecido dos vestidos. Muitas delas para ir à rua cobriam-se de veludo, não tendo em casa um bocado de pão seco para comer. [...] Entretinham-se a passear, a montar a cavalo, a jogar as cartas e a fazer visitas às amigas, a conversar com os vizinhos, a assistir aos nascimentos, batizados e funerais, e tudo isto com licença dos maridos. [...] Entre as pessoas da mesma condição [social], o beijo era uma forma de saudação muito frequente. Mesmo nas estalagens, a patroa e toda sua família recebiam os clientes com um beijo. Beijar era uma forma de saudação tão corrente como o aperto de mão nas outras nações.

LEMONIER, Leon. A vida quotidiana em Inglaterra no tempo de Isabel I. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p. 188, 202-203.

sábado, 8 de setembro de 2012

Os libertários: anarquistas e socialistas

Dona Luzia Ferreira ainda não tinha dez anos de idade e já trabalhava na Fábrica de Tecidos Bangu, no Rio de Janeiro. A velha Europa nessa época estava em plena 1ª Guerra Mundial (1915-18). O Brasil industrializava-se. E o trabalho da menina Luzia começava às seis da manhã só terminando às cinco da tarde.

Nos primeiros meses, ela trabalhava de graça:

- Aprendiz não recebe nada, disseram-lhe na fábrica.

Alguns anos depois dona Luzia ganhava dez tostões. Melhor do que nada. Salário de verdade só quando se tornasse uma completa tecelã, mas isso bem que demorou.

Muitos anos depois, com mais de 70 anos de idade, Dona Luzia guardava na lembrança a vida na fábrica:

- Não tínhamos lugar para comer. As refeições eram feitas junto às máquinas. A roupa de trabalho era a mesma do caminho. Os operários usavam uma roupa chamada "carne-seca" ou "pau-de-água". O apelido tinha origem no fato de ser a roupa feita com panos manchados pelas anilinas e com fios rebentados. Não tínhamos onde tomar banho. Apenas uma bica sobre um tanque imundo servia-nos de bebedouro e pia.

Dona Luzia falava de situações ainda piores:

- Certa vez, o Euclides, mais conhecido por Donga, foi colhido por uma máquina e morreu. A família não recebeu um centavo, nem mesmo para o enterro. O dinheiro das contribuições dos companheiros e uma ajuda da associação de Socorros Mútuos, organizada pelos operários, pagou as despesas do funeral. Noutra ocasião foi Idalina, uma linda moça, que perdeu o braço na máquina. Tudo que conseguiu foi que a deixassem trabalhar com um braço apenas, depois de recuperada. Vi apanharem e apanhei: puxões de orelha, safanões... sofri as maiores ofensas. Vi crianças serem esmurradas! (O depoimento de dona Luzia está no livro de Edgar Rodrigues, Alvorada operária. p. 212-214.)

Mais ou menos na mesma época, dona Alice trabalhava numa oficina de costura, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Com dez anos de idade, ela varria a sala, juntava os alfinetes do chão, arrumava as linhas nas caixas. Ganhava cinco mil-réis por mês.

- Era pouquíssimo! ela relembra.

Aos quinze anos, dona Alice estava numa outra oficina. Entrava de manhã e não saía antes das oito horas da noite. Para chegar à oficina tinha que caminhar muito. Quando faltava, a dona da oficina perguntava:

- Ô Alice, por que você faltou ontem?

- Eu não vim ontem porque chovia, molhou meu sapato, meu vestido, meu casaco estava pingando, não tinha condição de vir, nem vou mentir para a senhora. Não tenho mais do que a senhora me vê na oficina. É a roupa que eu cuido no domingo. (O depoimento de dona Alice está em Memória e sociedade: lembranças de velhos, de Ecléa Bosi.)

A história da menina Alice não era a única. Nessa época crianças de até cinco anos trabalhavam, inclusive durante a noite! Em muitas fábricas foram instaladas máquinas bem pequenas só para aproveitar o trabalho da gente miúda.


Dois pequenos jornaleiros cariocas (1889)

O trabalho de mulheres como Luzia e Alice era o que mais tinha. Nas indústrias têxteis, por exemplo, mais de 60% dos operários eram mulheres.

O momento de folga era o da refeição. Junto às máquinas ou nas calçadas, centenas de trabalhadores abriam suas marmitas frias. Em todas elas arroz, feijão e macarrão. Carne, leite, ovos era uma raridade. Ainda assim os operários não perdiam o humor:

- Bom, seu moço, já é melhor que "almoço de assovio"!

- Café com leite e pão com manteiga. Quem não traz a bóia de casa tem que se safar é com isso!

"Seu" Manoel Alves da Rocha, metalúrgico aposentado, também se lembrou de muitos acontecimentos de sua vida de trabalho, iniciada aos dez anos de idade:

- O trabalho mais perigoso e mal pago era na indústria de fundição. Os acidentes ocorriam quase que diariamente. A jornada de oito horas, conseguimos depois de muitas greves: mesmo assim, a cada passo era burlada pelos patrões. Nos casos de acidentes e de doença, a Santa Casa de Misericórdia prestava alguns socorros aos trabalhadores. Mas... era caridade humilhante. Ofendia!

Para "seu" Manoel, o pior trabalho era o dos caldeireiros:

- Só os da profissão podiam avaliar o que passavam os caldeireiros! Os navios chegavam com defeitos nas caldeiras. Os operários caldeireiros, para fazerem os reparos, tinham que enrolar-se em sacos de juta molhados. Conseguiam, deste modo, entrar na caldeira, atenuando a temperatura. Dificilmente escapavam de uma enfermidade, tendo alguns morrido, sem que lhes fosse dada a menor assistência por parte das empresas ou de quem quer que fosse. (Depoimento transcrito em Alvorada Operária, de Edgar Rodrigues.)

Dona Luzia, Dona Alice e "Seu" Manoel também foram pioneiros da nossa indústria. Afinal de contas, sem o trabalho de gente como eles, não haveria produção. Mas sua situação era diferente da dos Matarazzo, dos Crespi, dos Siciliano: eles eram simples trabalhadores que viviam apenas de seus salários.


Operários de uma tecelagem em São Paulo. Início do século XX

Os trabalhadores das fábricas, em sua grande maioria, não tinham frequentado colégios. Também não moravam em mansões de ruas calçadas e com luz elétrica. No Rio de Janeiro, eles habitavam os cortiços existentes no centro da cidade e em bairros como Gamboa, Saúde, Glória, Catete, Gávea e Laranjeiras: outros iam morar nas favelas, que começavam a se formar nos morros da cidade, ou nos subúrbios da Zona Norte, que também cresciam estimulados pelo movimento das ferrovias. Em São Paulo, a população trabalhadora concentrava-se nos bairros do Brás, Bexiga, Barra Funda, Mooca, Bom Retiro e Belenzinho.

As dificuldades da vida operária vinham desde o final do século XIX, quando surgiram as primeiras indústrias. Os operários não tinham nenhuma lei que os protegesse.

Os patrões, que nem passavam perto dos empregados, não se interessavam por essas leis. E os primeiros governos da República achavam que não tinham a menor obrigação de dar assistência aos necessitados.

- Cada pessoa deve cuidar de si com seus próprios recursos e com seus próprios méritos. Nossa sociedade é uma sociedade livre, onde todos têm as mesmas oportunidades. Vencem os mais capazes - costumava afirmar a elite intelectual daquela época, inclusive aqueles que haviam lutado pela República.


Mas não eram todos os republicanos que pensavam assim. Logo nos primeiros anos da República, Lopes Trovão, um republicano radical, põe o dedo na ferida:


- Quem com olhos observadores percorre a capital da República vê, com pesar, que é na rua que boa parte da nossa infância vive, às soltas, ao abandono... Quantas crianças temos nós encontrado, isoladas ou em grupos, seminuas, maltrapilhas... acocoradas ou deitadas, durante o dia, no limiar das casas particulares? Ou a dormirem, à noite, nas escadarias dos edifícios públicos ou nos canos destinados à rede de esgotos? Quantas crianças temos encontrado a fumarem com o desembaraço que só o hábito confere? A beberem até o abuso... a jogarem a dinheiro nos passeios? A assaltarem, misturando-se com vagabundos, mendigos, ladrões que infestam a nossa cidade?


Quintino Bocaiúva, outro republicano histórico, também se preocupava com as crianças pobres. Um dia, ele perguntou num discurso:


- Onde encontra socorro nessa cidade a criança até os sete ou oito anos de idade? Quais as leis que possuímos para proteger, no melindroso estado de gravidez, as mulheres na indústria? Quais as leis que entre nós garantem a vida e a saúde dos recém-nascidos? Que leis protegem as crianças abandonadas? (As declarações de Trovão e Quintino estão no livro de A. Moncorvo Filho, Histórico da proteção à infância no Brasil, 1500-1922.)


Muitos trabalhadores achavam que toda essa pobreza era causada pela injustiça social. Por isso fizeram o mesmo que os proletários de outros países: começaram a se organizar por conta própria e a lutar para defender os seus direitos.


Uma das primeiras coisas que fizeram foi fundar associações para se proteger: no início, eram associações de socorro mútuo; depois, associações de resistência, de luta: as uniões operárias, as ligas e os sindicatos. A própria experiência ensinava aos trabalhadores que só lutando eles conseguiram melhorar os salários e as suas condições de trabalho. Na primeira década do nosso século, quase todos os trabalhadores - tecelões, gráficos, costureiras, metalúrgicos etc. - já tinham sua associação.


Naquela época, os principais líderes operários eram anarquistas e socialistas. Para eles, a miséria dos trabalhadores existia por causa da propriedade privada, que só uma minoria privilegiada possuía. O que fazer para acabar com a miséria e a injustiça social? Socialistas e anarquistas tinham a mesma resposta: passar as indústrias, o comércio e as fazendas para as mãos dos trabalhadores. Não são os trabalhadores que as fazem funcionar? Pois a propriedade coletiva - isto é, dos trabalhadores - daria a garantia de que os bens produzidos seriam distribuídos igualmente entre todos.


Os anarquistas não queriam a desordem e a bagunça [...]. Os anarquistas queriam uma sociedade sem governantes e governados. Sem Estado, portanto. E também sem exploradores e explorados. [...]


- A anarquia é a suprema expressão da liberdade e da justiça!


- A anarquia é uma sociedade livre sem senhores nem escravos. Nela o bem-estar e a felicidade, a terra e a riqueza, a ciência e a arte são patrimônios de todos!


Para os anarquistas, até a escola devia ser diferente. Muda a sociedade, muda tudo.


Queriam que elas fossem mistas, sem exames, sem castigos e privilégios. Ao invés da competição, a cooperação. ao invés de prêmios aos "superiores", a solidariedade e o bem-estar para todos; no lugar da obrigação, o prazer de estudar, a liberdade de pensar e criar. A velha ideia de que "com sangue a letra entra" não frequentava a escola dos anarquistas.


Muitos dos líderes anarquistas e socialistas eram europeus, como o pintor italiano Luigi Damiani, o "Gigi" Damiani, e o advogado português Neno Vasco, que escreveu várias peças teatrais. Outros eram filhos de imigrantes, como o tipógrafo Edgard Leuenroth.


As ideias revolucionárias eram pregadas também por brasileiros como o operário Everardo Dias, o professor José Oiticica e os jornalistas Astrogildo Pereira e Otávio Brandão.


Os anarquistas e socialistas fundaram jornais e revistas, criando uma imprensa operária. A polícia sempre arranjava um jeito de fechar esses jornais. mas eles sempre arranjavam um jeito de reabri-los.


Em todos os estados havia jornais operários: em São Paulo tinha A Plebe; A Terra Livre; O Livre Pensador; Aurora; O Amigo do Povo; La Barricata; A Rebelião; A Luta Operária. No Rio de Janeiro: A Greve; O Despertar; A Voz do Povo; O Libertário; Spartacus; Crônica Subversiva.



Apreensão do jornal Spartacus. Rio de Janeiro, 1919

A Nova Era e o Progresso Operário eram publicados em Minas. O Operário e O Regenerador, no Ceará. No Rio Grande do Sul tinha O Eco Operário. Em Pernambuco, O Homem Livre. No Pará, O Semeador. Em Santos, cidade de operários e de trabalhadores do porto, uma publicação muito lida chamava-se A Dor Humana.


RIBEIRO, Marcus Venício; ALENCAR, Chico. Brasil vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 68-73.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Independência... para quem?

José Bonifácio, a fundação da Pátria, Eduardo de Sá
[Obra idealizando as "três raças" na formação do Brasil]

D. João VI retornou a Portugal mas deixou para governar o Reino do Brasil um príncipe-regente. Era seu filho, um jovem português de 21 anos, D. Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon.

Uma das missões de D. Pedro era evitar que o Brasil se separasse de Portugal. Pouco a pouco, no entanto, D. Pedro foi se ligando aos fazendeiros do Sudeste, que tinham progredido com a vinda da Corte e com a abertura dos portos.

Estes fazendeiros, mais alguns funcionários do Reino do Brasil e grupos influentes do Rio de Janeiro e de São Paulo - padres, doutores, jornalistas e oficiais - organizaram um movimento para lutar contra a recolonização do Brasil: era o Partido Brasileiro. Não era um Partido como os de hoje, com ideias colocadas no papel, pessoas filiadas e dirigentes eleitos. Era mais um grupo de pressão que, com o tempo, foi se agarrando a um desejo maior: a independência.

Dentro do Partido Brasileiro havia dois grupos. O mais forte, formado por fazendeiros do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais: era chamado de grupo aristocrata. Seu líder era José Bonifácio. O outro grupo, com menos influência, era o dos democratas. Para esses, a independência só seria completa se o povo pudesse participar no novo governo. Um dos seus maiores líderes era Gonçalves Ledo.

As preocupações com os rumos do Brasil cresciam em Portugal. Afinal de contas, a rebeldia tomava conta do próprio representante do governo português aqui, o príncipe-regente D. Pedro...

- D. Pedro está se perdendo! Ele precisava vir a ilustrar na Europa, pois tem nome comprido e ideias curtas! Está se envolvendo com aventureiros, Majestade!

Corria o ano de 1822: os conflitos cresciam. De um lado, D. Pedro e o Partido Brasileiro. De outro, D. João VI e as Cortes de Lisboa, que desejavam a recolonização do Brasil.

As Cortes não davam sossego ao príncipe-regente: queriam seu retorno imediato, mandaram tropas para cá, substituíram os governos das províncias que não eram fiéis a Portugal. Fizeram de tudo para submeter o Brasil.

Na tarde do dia 7 de setembro essa luta teve o seu desfecho. Quando descansava de uma viagem às margens do riacho Ipiranga, perto da cidade de São Paulo, o príncipe recebeu um ultimato das Cortes. Elas exigiam, mais uma vez, o seu regresso. Influenciado pelo Partido Brasileiro de José Bonifácio, D. Pedro desobedeceu e preferiu romper de vez com o governo de sua terra natal:

- Laços fora, soldados! As Cortes perseguem-me, chamam-me com desprezo de "rapazinho" e "brasileiro". Pois verão agora quanto vale o "rapazinho"! De agora em diante, nossa divisa será: "Independência ou Morte"!

Independência e mortes, que fique bem claro. Depois do grito do príncipe, algumas de nossas províncias transformaram-se em sangrentos campos de batalha. No Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Bahia e Província Cisplatina (atual Uruguai) as tropas brasileiras, com a ajuda de muita gente do povo, tiveram que expulsar, com armas na mão, as forças portuguesas que não aceitavam a independência.

Ao príncipe, porém, não interessava que o rompimento fosse total. Afinal, quem governava Portugal era seu pai... E era preciso ter cuidado com os republicanos, que queriam a independência e a cabeça do rei! Era necessário, pois, formar um governo moderado, que confirmasse a separação, mas garantisse a "ordem" e a autoridade.

O homem forte do país que nascia era José Bonifácio, mas ele não tinha as mesmas ideias de Tiradentes, nem dos revolucionários baianos:

- Nunca fui nem serei realista puro, mas nem por isso irei me abrigar debaixo das esfarrapadas bandeiras da suja e caótica democracia.

Assim nascia o país Brasil. De um lado, homens como José Bonifácio, ligado aos "aristocratas". Eles formavam o grupo de maior influência no governo do imperador D. Pedro I, pois tinham conseguido enfraquecer mais ainda os democratas, muitos dos quais foram presos ou expulsos do país. De outro, a numerosa massa de trabalhadores escravos e livres, sem voz nem vez. A independência não mudou a vida desses milhões de brasileiros!

A independência também não acabou com o domínio inglês por aqui. Maria Grahan, uma inglesa que visitou a nova nação, comentou em seu livro sobre o Brasil: "Os habitantes em geral, mas especialmente os comerciantes estrangeiros, estão bem satisfeitos por verem as tropas de Lisboa despedidas".

As mercadorias chegavam do Reino Britânico em grande quantidade. Em cada porta de loja, o anúncio:

SUPER FINO DE LONDRES:
algodão estampado, panos largos,
louças de barro, ferragens de Birmingham.

Assim nascia o Brasil independente...

E a escravidão acabou? Os governantes seriam eleitos pelo povo, como já acontecia nos regimes republicanos? Terminaram os latifúndios, que deixavam muita terra nas mãos de uns poucos donos? A produção aumentou, alimentando melhor o povo ao invés de ficar no açúcar e ouro para exportação? Surgiram fábricas e manufaturas? A vida cultural se dinamizou, com o surgimento de artistas nossos, que levassem para todos a arte popular?

Ou ficava tudo como dantes no quartel de Abrantes?

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 83-84.