"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 31 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: O ciclo da vida

Uma mãe asteca ensina sua filha de 13 anos a fazer tortillas. Artistas desconhecidos, Codez Mendoza

O destino de cada um era considerado como rigorosamente predeterminado na data de seu nascimento, esta mesma decidida pelas duas divindades supremas: Ometecuhtli e Omeciuatl, "o senhor e a senhora da dualidade". Assim, um homem nascido sob o signo 2-tochtli se entregaria à embriaguez; uma mulher nascida em 7-xochtli seria pródiga em seus favores; o signo 4-itzcuintli prometia honrarias e prosperidade.

Era possível, contudo, corrigir uma predestinação nefasta, escolhendo um dia mais favorável para dar nome a um recém-nascido. Em princípio, não seria necessário esperar mais do que quatro dias após o nascimento de uma criança para batizá-la. O sacerdote-adivinho consultava os livros e fixava a data. Se, por exemplo, a criança tivesse nascido sob um signo designado pelo número 9 (nefasto), o nome lhe seria dado três ou quatro dias mais tarde, visto serem benéficos os números 12 e 13. A parteira que houvesse feito o parto procedia à lavagem ritual do bebê, pondo-lhe água sobre os lábios, cabeça e peito e, finalmente, sobre todo o corpo. Invocava a deusa da água e depois apresentava a criança ao Sol e à Terra. Essa cerimônia tinha lugar em presença de parentes e amigos da família. Quando se tratava de um menino, preparavam-se um escudo, um arco e quatro flechas, que eram presenteados aos deuses para invocar sua proteção ao futuro guerreiro. Para uma filha, preparavam-se fusos, uma lançadeira, um cofre, e se dirigiam preces à personificação da primeira infância, Yoalticitl, "a curandeira noturna". A festa terminava com um banquete, ao fim do qual velhos e velhas bebiam inúmeras taças de octli.

Durante os primeiros anos, a educação da criança estava a cargo da família. O menino aprendia a trazer água e lenha, ajudava nos trabalhos agrícolas ou no comércio, pescava e remava sob a direção do pai. A menina varria, iniciava-se na cozinha, fiação e tecelagem. Assim que a criança atingia a idade de seis a nove anos, porém, seus pais a confiavam a um dos dois sistemas de educação pública então existentes no México: o colégio do bairro, onde os "mestres de rapazes" e "mestras de moças" preparavam seus alunos para a vida prática; ou então o calmecac, colégio-monastério, onde a educação era ministrada pelos sacerdotes. Em princípio. somente os filhos de dignitários (pilli) tinham acesso ao calmeca. Os filhos de negociantes, porém, também podiam ser admitidos, bem como crianças das camadas populares, caso se destinassem ao sacerdócio.

Não se pode deixar de observar as profundas diferenças [...] que separavam esses dois sistemas educacionais. [...] os colégios de bairro visavam antes de tudo formar cidadãos dedicados ao cumprimento de seus deveres, principalmente de seus deveres militares. Os mestres eram escolhidos entre guerreiros reconhecidos. Os rapazes aprendiam o ofício das armas, participavam de trabalhos de interesse público e o cultivo das terras coletivas, sendo durante o dia submetidos a uma severa disciplina. À noite, porém, iam cantar e dançar, e os mais velhos mantinham ligações com as auianime. Ao contrário, os jovens admitidos no calmecac, sob a direção dos sacerdotes e a proteção de Quetzalcoatl, antigo rival de Tezcatlipoca, levavam uma vida austera, feita de trabalhos manuais e intelectuais, de jejuns e penitências. Ensinavam-lhe "boas maneiras", os rituais e a leitura de manuscritos hieroglíficos. Deviam aprender de cor os poemas mitológicos e históricos e iniciar-se nas funções para as quais estavam destinados: o sacerdócio ou altos cargos do Estado.

As "boas maneiras" revestiam-se de importância primordial perante a classe dirigente. Eram objeto de toda uma literatura didática, os ueuetlatolli ("preceitos dos antigos"). Neles se evidencia o ideal de autodomínio, de resistência às paixões, de moderação e de abnegação. A conduta a ser mantida em presença dos superiores ou dos inferiores à mesa, na rua, enfim, as atitudes a serem observadas em todas as circunstâncias da vida estão aí minuciosamente determinadas. Também os alunos dos colégios de bairro eram considerados vulgares e grosseiros porque "falavam com soberba e audácia".

O antagonismo entre esses colégios e os calmecac manifestava-se abertamente durante o sexto mês do ano, Atemoztli. Os alunos de bairros e monastérios entregavam-se então a combates sem complacência, invadiam os lugares uns dos outros, carregavam e destruíam móveis e utensílios e se infligiam trotes recíprocos.

Ao chegar à idade adulta, ou seja, 21 anos, o rapaz deixava o colégio ou o monastério, a menos que decidisse dedicar-se ao celibato e aos deuses. Da mesma forma, as moças podiam consagrar-se ao sacerdócio. A maioria dos jovens se casava. As famílias arranjavam as uniões por intermédio das "casamenteiras", mulheres idosas que conduziam as negociações. Quando se concluía o acordo, começavam os preparativos. Convidavam-se os parentes e amigos, e acumulavam-se as provisões. O sacerdote-adivinho indicava um dia favorável. A cerimônia do casamento tinha lugar na casa do noivo. A jovem, vestida e paramentada, se apresentava à noite na casa de seu futuro marido, acompanhada de um cortejo alegre conduzindo chamas. Sentados juntos diante do fogo, os jovens recebiam os presentes; em seguida, as "casamenteiras" enlaçavam o traje da noiva e o manto do jovem, após o que eles compartilhavam um prato de tamalli. Os dois jovens estavam casados a partir desse momento. Deviam, porém, permanecer orando durante quatro dias, não se consumando o casamento senão ao fim desse período. Daí a instituição da festa do quinto dia, que tendia a igualar ou superar em importância e luxo a cerimônia de casamento descrita acima, particularmente entre nobres e comerciantes. Essas festividades incluíam, segundo os recursos das famílias, repastos faustosos, acarretando grandes despesas. Também se viam jovens coabitarem, adiando a cerimônia oficial. Esses ritos celebravam o casamento de um homem com sua esposa principal. Mas a poligamia era frequente, sobretudo nas classes abastadas [...].

Quando uma mulher percebia estar grávida, todas as pessoas da casa, e frequentemente todo o bairro, manifestavam sua alegria por meio de repastos cerimoniais e "seções" de discursos pomposos e imaginosos. Uma parteira tomava firmemente aos seus cuidados a futura mãe, velava por sua higiene e também pelo respeito a certos "tabus" - por exemplo: não olhar para o céu durante um eclipse nem olhar para objetos vermelhos - e preparava tudo em relação ao parto. A mulher grávida era colocada sob a proteção das divindades femininas, da "Mãe dos Deuses", da "avó do banho a vapor" [...].

Os casamentos eram geralmente duráveis, embora homens e mulheres pudessem divorciar-se. Os tribunais proferiam decisões quanto à guarda das crianças e à partilha dos bens do casal. A mulher divorciada casava-se livremente. [...]

Ao chegar a certa idade, velhos e velhas tomavam seu lugar no grupo dos "anciãos", cujas advertências eram ouvidas com atenção; consagravam-se às devoções, frequentavam os banquetes e bebiam livremente o octli, sem temer sanções. [...]

A maioria dos mortos era incinerada. Envolvia-se o corpo, sentado, de joelhos flexionados em direção ao queixo, com muitas camadas de tecido, de maneira a formar uma "múmia" ou fardo funerário. As mulheres mortas no parto, entretanto, eram enterradas, assim como os que morriam afogados, atingidos por um raio ou em consequência de uma doença como a gota ou a hidropsia, afecções que se atribuíam a Tlaloc, deus da água e da chuva.

O destino de cada um no outro mundo dependia, acreditava-se, de sua morte. Os guerreiros mortos em combate ou sobre a pedra dos sacrifícios iam para o céu oriental, fazer companhia ao Sol desde a aurora até o zênite; ao fim de quatro anos retornavam à Terra sob a forma de colibris. Os que Tlaloc havia chamado conheciam eternamente a tranquila felicidade do paraíso chamado Tlalocan, maravilhoso jardim tropical. A maioria dos defuntos, porém, ficava "debaixo da terra divina", na obscura morada de Mictlan. Durante quatro anos, sofriam as provações de uma tenebrosa viagem ao mundo subterrâneo; depois, atravessando os Nove Rios, entravam na Nona Morada dos Mortos, e lá, totalmente aniquilados, desapareciam de modo definitivo. [...]

Para ajudar o morto durante a sua peregrinação, queimavam-se alimentos junto com ele; matava-se e incinerava-se um cão, pois não havia Xolotl, o deus com a cabeça de cão, irmão gêmeo de Quetzalcoatl, triunfado em um passado fabuloso das armadilhas de um mundo infernal? A família ainda queimava oferendas 80 dias (quatro meses) após os funerais, e depois, ao fim de um ano, dois, três e quatro anos. [...] Quando um personagem importante morria afogado [...] era enterrado em uma câmara sepulcral, sentado sobre um icpalli, cercado de suas armas e coberto de joias. Os homens - mesmo os mais humildes - que se afogavam no lago, eram tidos como tendo perecido entre as garras do monstro aquático Auitzotl. Seus cadáveres eram cercados de intensa veneração e enterrados solenemente em um santuário dos deuses da água.

SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 57-62. (As civilizações pré-colombianas)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Técnicas e conhecimentos

Xipe Totec no calendário Tonalamatl de 260 dias. Artistas desconhecidos, Codex Bourbon 

[...]


Sua arquitetura, derivada dos toltecas, demonstra uma mestria que pressupõe, por sua vez, amplos conhecimentos de geometria e cálculo. É muito provável que esses conhecimentos não estivessem explicitados de forma abstrata, mas sem eles teria sido impossível ter construído vastos conjuntos como os monumentos religiosos e profanos do centro do México. O mesmo se aplica a realizações como os aquedutos e diques.

A metalurgia do cobre, do bronze, do ouro e da prata penetrou no México tardiamente, no início do II milênio a.C. Alcançou o planalto Central, difundindo-se desde o litoral do Pacífico e das montanhas que se elevam na costa oceânica; pode-se também supor que essas técnicas tenham sido importadas do Peru. Como quer que tenha ocorrido, os astecas sabiam utilizar processos como a fundição do ouro e da prata. A perfeição de sua ourivesaria suscitou a admiração dos primeiros europeus que conheceram suas obras-primas [...].

A contemplação do céu e o estudo do movimento dos astros faziam parte dos deveres sacerdotais. Os sacerdotes astecas, astrônomos e astrólogos, ministros dos cultos astrais, tinham conhecimentos precisos quanto à duração do ano, a determinação dos solstícios, as fases e eclipses da lua, a revolução do planeta Vênus e diversas constelações, como as Plêiades e a Grande Ursa. Como todas as altas civilizações do México, também os astecas atribuíam importância primordial à mensuração do tempo, fundada sobre uma aritmética que tinha por base o número 20. Menos complexas e menos perfeitas que as dos maias, a aritmética e a cronologia astecas nem por isso constituíam um monumento intelectual menos extraordinário. Aspectos objetivos, juntamente com aspectos mágico-religiosos, aí estão inextrincavelmente fundidos. O ano dividia-se em 18 meses de 20 dias, mais cinco dias "ocos". Paralelamente a esse calendário solar, havia um calendário divinatório, o tonalpoualli, de 260 dias, baseado na combinação de uma série de 13 números (de 1 a 13) e de 20 nomes [...].

[...]

Os livros revestiam-se de grande importância aos olhos dos antigos mexicanos. Os templos, os calmecac e as casas dos dignitários possuíam ricas bibliotecas. A profissão de pintor-escriba (=(tlacuiloani) era particularmente valorizada. Muitos livros tratavam de assuntos religosos e de rituais, de adivinhação e interpretação de sonhos. Outros relatavam as migrações das tribos, a fundação de cidades, a origem e história das dinastias e as façanhas de determinados heróis. Os livros eram escritos, ou melhor, pintados sobre folhas feitas de fibras de agave ou cortiça batida, ou sobre tiras de pele de cabrito dobradas como um biombo. A escrita asteca representava um compromisso entre a ideografia e a notação fonética. Certos caracteres designavam ideias ou objetos, enquanto outros, ou os mesmos, denotavam sons. [...] A morte de um soberano era representada por uma "múmia" ou um carregamento funerário; a queda de uma cidade sitiada, por um templo em chamas atravessado por uma lança; um itinerário, por vestígios de passos religando os hieróglifos das localidades. No que concerne à notação numérica, a unidade era representada por um círculo, 20 por uma bandeira, o tzontli (400) por um signo bem semelhante a um arbusto e 8.000, por uma bolsa.

A confecção de livros astecas era fortemente influenciada pela técnica de povos da região de Puebla e Oaxaca, como os mazatecas de Teotitlán, especialistas em iluminuras religiosas, e os mixtecas, cuja história escrita remonta até o século VII d.C. O Codex Borbonicus, manuscrito ritual conservado na Assembleia Nacional de Paris, é um magnífico exemplar de livro asteca, e um dos raros que se conservaram até hoje. Milhares de manuscritos, com efeito, foram destruídos durante a conquista espanhola.

Dentro de uma ordem de ideias totalmente diversa, deve-se mencionar a extensão e precisão dos conhecimentos dos mexicanos quanto à fauna e sobretudo à flora de seu país. O médico de Felipe II, Francisco Hernández, pôde enumerar em torno de 1.200 plantas que os astecas utilizavam na terapêutica. Sem dúvida, empregava-se uma larga proporção de práticas mágicas e feitiços na medicina nativa da época: as doenças eram atribuídas a causas sobrenaturais, à vontade de certos deuses ou aos envolvimentos causados por bruxarias de feiticeiros malévolos. Também o ticitl (médico) asteca recorria à adivinhação e à contramagia, às preces e às imposições de mãos. Ao mesmo tempo, porém, eles sabiam reduzir fraturas, pensar feridas, colocar emplastros, aplicar sangrias e, principalmente, ministrar poções de plantas medicinais cujos efeitos - purgativos, diuréticos, antiespasmódicos, sedativos etc. - eram conhecidos e empiricamente verificados através de uma longa tradição.

SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 52-3, 55-7. (As civilizações pré-colombianas)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Os jogos

Guerreiros astecas. Artistas desconhecidos, Codex Florentine

Os astecas, herdeiros das grandes civilizações precedentes, se entregavam com paixão, da mesma forma que os maias e os toltecas, ao jogo de bola denominado tlachtili. Duas equipes defrontavam-se no campo, que tinha a forma de um duplo "T" maiúsculo, lançando uma pesada bola de borracha maciça. As regras do jogo exigiam que a bola fosse tocada apenas com os joelhos ou os quadris. Os jogadores esforçavam-se por fazê-la passar entre dois anéis de pedras fixados nas muralhas laterais. Embora estivessem protegidos por joelheiras, luvas e máscaras de couro, acontecia de frequentemente se contundirem, e às vezes até serem mortos pela bola. Dizia-se que o tlachtli representava o universo e a bola, o sol. O jogo tinha, portanto, uma significação esotérica. Era o esporte da elite e também pretexto para elevadas apostas.

O patolli, jogo de azar muito parecido com o jogo francês do pato, era praticado febrilmente por todas as classes sociais. Vítimas de sua paixão, alguns jogadores arruinados não tinham outro recurso senão vender-se a si mesmos como escravos.

Os astecas dedicavam-se também a distrações mais inocentes: a caça aos pássaros por meio de zarabatanas que projetavam balas de terracota; cantos de danças ao fim dos banquetes; declamação de poemas e espetáculos apresentados pelos acrobatas em casas principescas.

SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 51-2. (As civilizações pré-colombianas)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Vestuário e ornamentos

Trajes astecas. Artistas desconhecidos, Codex Mendoza

Os homens usavam uma tanga (maxtlat), cujas extremidades, frequentemente bordadas, desciam na frente e atrás até a altura dos joelhos, e se envolviam em um manto (tilmatli), peça de tecido retangular presa sobre as espáduas, debaixo do qual usavam, às vezes, algum tipo de camisa, ou túnica. A mulher se cobria com um corpete (huipilli) e uma saia (cueitl). Embora a roupa habitual dos homens fosse drapeada, as vestes militares eram costuradas e ajustadas, formando uma espécie de túnica estofada de algodão, que terminava em calças descendo até os tornozelos. O guerreiro recobria a testa com um capacete de madeira, plumas e papel, representando a cabeça de uma águia ou jaguar, mandíbulas de serpente etc.

Usava-se a fibra de agave ou ixtle na confecção de tecidos para os cidadãos mais modestos. Mas o algodão, importado das Terras Quentes, constituía a matéria-prima mais difundida. A pele de coelho, especialidade do artesanato asteca, era fiada e tecida para a fabricação de cobertores ou mantas de inverno. Tanto as mantas masculinas como os corpetes e as saias femininas testemunham a engenhosidade e o bom gosto dos tecelões: motivos geométricos ou figurativos, animais estilizados (coelhos, borboletas, peixes) e flores decoravam as vestimentas. A moda inspirava-se nas luxuosas criações das populações do leste - os totonaques em particular -, cujas mantas e saias policrômicas eram especialmente apreciadas no México. As grandes damas astecas, entretanto, demonstravam maior moderação em seus complementos que as dos povos vizinhos. Certas cores correspondiam a determinadas funções: o "manto de turquesa" verde e azul era exclusivo do imperador; o manto branco e negro, do Ciuacoatl. Os sacerdotes vestiam-se de preto ou verde-escuro. Embora muitos homens do povo andassem descalços, os dignitários usavam frequentemente sandálias (cactli) de fibra ou de couro, com salto e enriquecidas de ouro, pedrarias e peles de jaguar.

Trajes astecas. Albert Kretschmer

As mulheres utilizavam espelhos de pirita ou obsidiana, untavam o rosto com um unguento amarelo-claro denominado axin, ou com uma terra da mesma cor (tecozauitl), perfumavam-se com incensos aromatizados e penteavam os cabelos levantando dois bandôs de cada lado e um na frente. A julgar pela literatura de época, pelo menos uma parte da "boa sociedade" desaprovava a pintura do rosto, mas as auianime, jovens cortesãs oficialmente relacionadas aos guerreiros celibatários, se pintavam intensamente e até tingiam os dentes de vermelho com cochonilha, adotando uma moda originária das províncias tropicais.

Nos territórios onde a ourivesaria havia atingido alto grau de perfeição, homens e mulheres usavam inúmeras joias: brincos para as orelhas, colares e pendentes, pulseiras para os braços e tornozelos. Os homens, além disso, perfuravam o septo nasal e o lábio inferior para inserir ornamentos em metais preciosos ou pedras duras.

À medida que ascendiam na hierarquia, os homens adquiriam o direito de comparecer às cerimônias ou campos de batalha com penteados, penachos, emblemas e escudos cerimoniais com plumas, de um fausto e riqueza de colorido extraordinários. Os raros exemplares que se conservam dessas peças (especialmente um cocar de plumas e um escudo no Museu de Etnografia de Viena e um escudo no museu de Stuttgart), ilustram a mais alta ideia dessa arte tipicamente mexicana que era o mosaico de plumas. Emblemas como a "borboleta de zaquan" (o zaquan é um pássaro de plumas amarelas), o macuilpanitl ("cinco estandartes"), o quetzalapanecayotl ("ornamento de plumas de quetzal de pessoas da corte") não poderiam ser usados senão por um guerreiro ou senhor, simbolizando seu alto escalão.

SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 48-51. (As civilizações pré-colombianas)

segunda-feira, 18 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Meios de subsistência, culinária e refeições

Astecas fumando e bebendo pulque. Artistas desconhecidos, Codex Mendoza

Como todos os indígenas agricultores do México, os astecas, ao se tornarem sedentários, alimentavam-se essencialmente de milho (em cozidos, bolos, ou pequenos pãezinhos cozidos no vapor, os tamalli), feijão, abóbora, pimenta e tomate. Os grãos de huanhtli (amaranto) e de chian (sálvia) eram usados em mingaus. No México e em torno do lago, consumiam-se peixes, crustáceos, barráquios e até insetos aquáticos.

Os peixes e ostras do mar chegavam até o planalto Central para consumo exclusivo, é claro, das camadas mais elevadas. Os mexicanos podiam também consumir carne de animais domésticos: perus, patos, coelhos, uma espécie de cão sem pelo criado especialmente com essa finalidade, aves, porcos selvagens, lebres selvagens e cabritos. O povo mesmo, entretanto, os consumia muito raramente.

Devemos acrescentar a esta lista plantas selvagens comestíveis (quilitl), colhidas nos campos, das quais os astecas conheciam uma surpreendente variedade. Como bebida, somente os dignitários e comerciantes ingeriam o cacau, produto exótico originário das terras tropicais; bebiam-no geralmente ao final das refeições. O octli, bebida fermentada à base de suco de agave (atualmente pulque), não podia ser consumido senão em certas ocasiões rituais, e pelos homens e mulheres de idade avançada: a embriaguez era severamente reprimida.

Mayahuel, deusa do maguey, com um pote de pulque fermentado. Artistas desconhecidos, Codex Borboun 

Comumente, os astecas faziam três refeições diárias: pela manhã. uma pequena refeição frugal; uma refeição principal ao início da tarde (seguida de uma curta sesta, quando possível); e uma ligeira ceia à noite. Para a massa da população, a grande refeição resumia-se o mais das vezes a bolos de milho e feijão com molho de pimenta e tomate. Os dignitários, porém, podiam escolher entre as numerosas especialidades de uma cozinha rica e fortemente condimentada: acepipes, carnes assadas ou cozidas, tamalli com caramujos, peixes e batatas-doces.

Apresentavam-se diariamente a Motecuhzoma mais de 300 pratos, entre os quais ele fazia sua escolha. Comia sozinho, sentado sobre um icpalli, diante de uma mesa baixa, servido por "quatro mulheres belíssimas e limpas", que lhe traziam lavandas e guardanapos. Tinha frutas de sobremesa, bebia cacau e fumava, enquanto bufões, anões e acrobatas disformes executavam seus números para diverti-lo. Em seu palácio, preparava-se 1 milhão de pratos para as pessoas que lá se encontravam. O imperador e os dignitários tinham a seu serviço uma multidão de funcionários, sacerdotes e artesãos, aos quais forneciam alimentação.

Se o cidadão comum se deitava cedo, após ter ingerido uma tijela de bolo de milho ou de amaranto, os dignitários e negociantes frequentemente ceavam até a aurora. Consumiam-se imensas quantidades de pratos à base de peru e cachorro, bebia-se chocolate com baunilha e mel, fumavam-se inúmeros "cachimbos", isto é, bambus ricamente decorados e repletos de tabaco, carvão de madeira e aromatizantes. Em certos banquetes, oferecidos quando os negociantes se preparavam para partir em alguma expedição, distribuíam-se aos convivas cogumelos alucinógenos (teonanacatl: "cogumelo divino"), sendo as visões, felizes ou aterradoras, que esses cogumelos provocavam interpretadas como prenúncios do futuro.

Nas refeições em família - por exemplo, por ocasião de um casamento -, distribuía-se octli aos velhos e velhas, que se embriagavam copiosamente.

SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 47-8. (As civilizações pré-colombianas)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Vida rural e vida urbana

Homens astecas compartilhando uma refeição. Artistas desconhecidos, Codex Florentine

Tudo leva a crer que quando os “bárbaros astecas” (Azteca Chichimeca) do século XII iniciaram sua migração ainda não praticavam a agricultura. A caça, a pesca (dizia-se que Aztlán era uma ilha no meio de um lago) e a coleta constituíam a base da sua subsistência. Foi em contato com as populações sedentárias do planalto Central que os mexicanos, à semelhança de outros “bárbaros”, adotaram o modo de vida tradicional, com suas técnicas praticamente inalteradas desde o IV milênio a.C., isto é, a cultura de milho, vagens, plantas oleaginosas (amaranto e sálvia), abóbora, tomate e pimenta; a tecelagem (fibras de agave: ixtle) e a cerâmica. Essas técnicas subsistiram até hoje no essencial como base da vida rural de todos os povos indígenas, quaisquer que fossem as suas etnias. Fixando-se nas ilhas do lado, os astecas aí encontraram terras escassas demais para o cultivo. Seu modo de vida inicial também era semelhante ao das tribos ribeirinhas, que se denominavam atlaca chichimeca, “povos bárbaros da água” ou “selvagens lacustres”: os peixes, crustáceos e moluscos do lago, assim como os pássaros de água, em muito contribuíram para sua alimentação. É significativo que eles tenham adotado divindades próprias dos “selvagens lacustres” de Tláhuac e de Churubusco, e que tenham até mesmo cantado nos templos do México, hinos como o de Aminitl, o deus da caça aos pássaros aquáticos, expressos em “chichimeca”, ou seja, um dialeto bárbaro incompreensível para os astecas.

No apogeu do Império, essa situação já estava profundamente alterada. Graças às suas conquistas, a tribo dispunha de extensas áreas no vale e nas províncias. O culto de Tlaloc e dos deuses do milho desempenhavam um papel preponderante no ritual. Todavia, uma parcela importante dos recursos alimentares ainda procedia da pesca e da caça. Por outro lado, uma considerável proporção da população asteca consagrava-se inteira ou parcialmente a atividades não agrícolas: serviço militar, sacerdócio. Administração e artesanato. Os gêneros alimentícios provinham tanto de trocas, como dos impostos em espécie arrecadados nas províncias. Com os campos, hortas e jardins, as criações de perus e os bosques, os domínios atribuídos aos dignitários formavam unidades econômicas semelhantes às “vilas” romanas do Baixo Império. Ali se produzia toda a espécie de gêneros agrícolas; e as mulheres ou os escravos fiavam e teciam.

A cerâmica asteca, mais utilitária do que artística, parece ter sido produzida em massa nas oficinas. A cerâmica de luxo, maravilhosamente decorada com motivos policromados, era importada de Cholulá e do território mixteca. Foi por essa época que os astecas, à frente de um vasto império, adotaram a vida urbana. Sua capital, Tenochtitlán, ampliada em 1476 pela anexação de Tlatelolco, estendia-se então por um milhar de hectares de ilhas e terras pantanosas, que dois séculos de labuta gigantesca haviam transformado em uma rede geométrica de canais, ruas e praças, verdadeira Veneza ligada às margens por três passagens elevadas: Tepeyacac, ao norte, Tlacopan, a oeste, e Iztapalapan, ao sul. A cidade abrigava de 80 mil a 100 mil domicílios, ou seja, um total de mais de 500 mil habitantes. Essa população estava em via de se ampliar, como a dos subúrbios costeiros, que também tendiam a avançar sobre a lagoa com casas construídas sobre pilotis. Toda a população, incluindo a de cidades como Azcapotzalco, Chapultepec, Coyoacán etc., devia ultrapassar 1 milhão de habitantes.

[...]

O principal centro comercial da cidade situava-se em Tlatelolco. Sobre uma imensa praça rodeada de arcadas e próximo a uma pirâmide, existia um mercado, ao qual compareciam diariamente de 20 mil a 25 mil pessoas, e de 40 mil a 60 mil pessoas a cada cinco dias. Enormes quantidades de mercadorias, cada qual com uma localização determinada, eram aí trocadas: tecidos e vestimentas, plumas e jóias, peles e plumagens, milho, vagens, pimentas, legumes, frutas e ervas, pássaros e caça, peixes, rãs, vasos, utensílios de sílex, obsidiana e cobre, madeira, tabaco e cachimbos, móveis e esteiras. Havia lojas de boticários, cabeleireiros, vendedores de bolos de milho e guisados assados. Uma polícia especial zelava pela boa ordem do tianquiztli (mercado), e um tribunal composto de três magistrados estava permanentemente a postos para resolver os litígios.

A suntuosidade dos palácios dos poderosos maravilhou os conquistadores espanhóis. [...] Em Texcoco, o rei Nezaaulcoyotl ordenara a construção de um palácio com mais de 300 peças, com jardins ornados de fontes e chafarizes. Pássaros, peixes e outros animais eram aí conservados vivos ou representados em ouro ou pedra. Em Tetzcotzinco, o mesmo soberano criara um parque de extraordinária magnificência, irrigado por um engenhoso sistema de canais. Motecuhzoma dispunha de residências campestres, onde pássaros de toda espécie eram alimentados e tratados por uma multidão de serviçais.

Não é preciso dizer que as casas dos maceualtin eram muito simples. Cada casa, entretanto, possuía, em seu próprio terreno, um jardim e um banho a vapor (temazcalli).

Mesmo nas casas dos dignitários, o mobiliário reduzia-se a pouca coisa: esteiras (petlatl), cadeiras de espaldar em vime, mesas baixas, biombos ou para-ventos de madeira, cestos, pinturas em tecidos ou em peles. Nas casas populares, a lareira, cercada de três pedras, ocupava o centro da habitação. Cozinhava-se a lenha ou carvão vegetal. A iluminação se fazia por meio de tochas resinosas.

O México precisava de água potável, visto ser salobra a das lagunas. No início, os astecas puderam contentar-se com as fontes que brotavam entre os rochedos da ilha, onde se erigia o templo de Uitzilopochtli. Com o aumento da população, porém, tornou-se necessário construir, sob o reinado de Motecuhzoma o Antigo, o primeiro aqueduto para transportar até o centro da cidade a água das fontes de Chapultepec. Esse aqueduto, com cinco quilômetros de extensão, era formado por dois condutores, apenas um dos quais era utilizado de cada vez, enquanto se limpava o outro. No tempo de Auitzotl foi construído um segundo aqueduto entre Coyoacán e o centro. A água era distribuída por carregadores que circulavam de barco pela cidade. Vendiam-na também em jarros nos mercados.

Terríveis inundações devastavam periodicamente a cidade. Sob Motecuhzoma I, construiu-se, em 1449, um dique de 16 quilômetros de comprimento, destinado a proteger a cidade contra as inundações do grande lago. Auitzotl precisou fazer mergulhadores obstruírem a fonte da Acuecuexatl, cujas águas, jorrando com violência, haviam elevado o nível das lagoas, destruindo inúmeras casas. Nessa ocasião. Ele distribuiu à população esfaimada 200 mil carregamentos de milho, vestimentas e 32 mil barcos.

Equipes de trabalhadores, sob a direção das autoridades locais dos bairros, asseguravam a manutenção dos canais e aquedutos e a limpeza das ruas. Testemunhos da época são unânimes em reconhecer a higiene das vias públicas. De modo geral, Tenochtitlán era uma cidade organizada e salubre. Cortez, escrevendo a Carlos V, louvou intensamente a beleza das construções, a organização da vida coletiva e a “razão que os índios emprestam a todas as coisas”.


SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 42-3, 45-7. (As civilizações pré-colombianas).

terça-feira, 12 de maio de 2015

Desafios ambientais (1970 até os dias atuais)

Chaminés. Alfred Palmer


A atividade humana sempre afetou o meio ambiente natural, mas o surto de industrialização, urbanização e aumento populacional iniciado no começo do século XIX teve um impacto sem precedentes. Entre os efeitos visíveis, estão a poluição do ar e da água, a desertificação, o desmatamento e a extinção de plantas e animais. Menos visível até época mais recente, mas potencialmente mais grave do que todas as outras mudanças ambientais, é o aquecimento global.

* Industrialização. A industrialização trouxe muitos benefícios à sociedade humana, como oportunidade de emprego, melhor comunicação e um padrão de vida geralmente mais alto. Mas isso tem custo. A produção da energia que move a indústria, o consumo de produtos industrializados como os veículos motorizados e o descarte de resíduos domésticos e industriais levaram a um aumento maciço da poluição do ar e da água. Por exemplo, o aumento das emissões de enxofre e nitrogênio retorna à terra como chuva ácida, que prejudica árvores, vegetação natural, plantações e cardumes. A intensificação da agricultura, necessária para alimentar a crescente população urbana, transformou o habitat rural e pôs em risco plantas e animais.

* Crescimento populacional. A população global aumenta em cerca de 77 milhões de habitantes por ano. A grande densidade habitacional provoca mais poluição e maior destruição de habitats e consome mais recursos naturais. Embora hoje o crescimento da população dos países desenvolvidos seja muito mais lento do que no mundo em desenvolvimento, o povo desses países consome mais recursos per capita e, portanto, tem impacto ambiental maior do que o dos países subdesenvolvidos.

* Aquecimento global. Justificadamente, o maior desafio ambiental enfrentado pela raça humana no início do século XXI é o aquecimento global. Com base na tendência atual, muitos cientistas estimam que o aumento constante da temperatura média da superfície da Terra pode se tornar catastrófico para a sociedade humana e para grande parte da flora e da fauna do planeta. Os cientistas já observaram uma redução de 40% da espessura média do gelo do Ártico. Se o gelo polar continuar derretendo, pode haver uma elevação do nível do mar que inundaria muitas ilhas baixas e cidades litorâneas.

O aquecimento global é causado por uma camada de gases como o dióxido de carbono que, na atmosfera da Terra, absorve o calor dos raios do sol em um processo chamado de "efeito estufa". A maioria dos climatologistas acredita que a atividade humana é a principal força motriz por trás do aquecimento global. Desde a Revolução Industrial, os seres humanos queimaram uma quantidade imensa de combustíveis fósseis - carvão, petróleo e derivados - e aumentaram assim a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera.

* Cooperação internacional. Desde o final da década de 1960, há tentativas, em nível nacional e internacional, de proteger e conservar o meio ambiente. A primeira grande conferência global sobre o meio ambiente, realizada em 1972 em Estocolmo, na Suécia, levou à criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Um papel importante do PNUMA tem sido estimular o "desenvolvimento sustentável", ou seja, aumentar o padrão de vida sem destruir o meio ambiente.

Muitos acordos internacionais se seguiram à Conferência de Estocolmo, como a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Ameaçadas, em 1975, e a moratória de 1982 a toda caça comercial de baleias. Um dos tratados mais eficazes foi o Protocolo de Montreal, de 1987, sobre substâncias que destroem a fina camada de ozônio, na parte superior da atmosfera, que protege a Terra dos prejudiciais raios ultravioletas do sol. A Eco-92, no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992, foi a maior reunião de líderes mundiais da história e produziu dois importantes tratados entre países que reduziriam voluntariamente as emissões de dióxido de carbono e outro exigindo que os países protegessem espécies e habitats ameaçados. Em 1997, ficou claro que as metas voluntárias de emissão especificadas na Eco-92 não seriam cumpridas. Outra conferência em Quioto, no Japão, chegou ao acordo de reduzir em 5% o nível de emissões entre 2008 e 2012, com relação aos altos índices de 1990. Os EUA estavam entre os países que se recusaram a ratificar o acordo, mas em 2005 ele já foi ratificado pelos 55 países exigidos e passou a ter força legal.  Ainda assim, muitos cientistas acreditam que as exigências do protocolo de Quioto são modestas demais para afetar o aquecimento global, mesmo que sejam cumpridas. Alguns afirmam que é necessário uma redução mínima de 60% das emissões para estabilizar o clima do planeta. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2011, em Durban, África do Sul, líderes mundiais concordaram em um acordo jurídico sobre a redução de emissões de carbono, para 2020. Muitos cientistas e grupos ambientais advertiram que este calendário era muito lento para evitar o aquecimento global de 2º C até 2050.

* O movimento verde. Na década de 1970, desenvolveu-se um poderoso movimento "verde" para pressionar os líderes políticos e aprovar leis que protegessem o meio ambiente. Entidades como Greenpeace e Friends of the Earth fizeram campanha por mudanças, às vezes usando confrontos não violentos como meio de chamar atenção para a destruição ambiental. Em muitos países, formaram-se partidos políticos verdes: o Partido Verde alemão chegou a participar do governo nacional em 1998. Nos anos 2000. o ambientalismo se tornou oficial, e a maioria dos grandes partidos políticos do mundo ocidental tem uma política forte de defesa do meio ambiente.

* Cronologia.

1970 Milhões se reúnem nos EUA no primeiro Dia da Terra.
1971 Fundação do Greenpeace.
1972 Formação do PNUMA.
1975 Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção.
1982 A Comissão Baleeira Internacional impõe uma moratória a toda a caça comercial de baleias.
1987 Protocolo de Montreal sobre substâncias que destroem a camada de ozônio.
1989 Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Depósito.
1992 Conferência da ONU sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente (ECO-92) no Rio de Janeiro, Brasil.
1997 Negociado o Protocolo de Quioto.
1999 A população mundial chega a seis bilhões de pessoas.
2002 Rio + 10 ou Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em Johannesburgo, na África do Sul.
2011 Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, em Durban,

WOOLF, Alex. Uma Nova História do Mundo. São Paulo: M. Books do Brasil, 2014. p. 294-5.

sábado, 9 de maio de 2015

Reascensão da barbárie: violências e feitiçaria na Idade Moderna

A fraqueza do controle de si dá aos impulsos e à vontade de ultrapasse formas bem distanciadas dos ideais generosos do humanismo. A violência ocorre em toda parte, incontestavelmente mais surpreendente em populações que, de resto, teriam tendência em refinar-se. Nas relações sociais a força desempenha um papel importante mas tende a recuar no decurso do século XVII.

O duelo após o baile de máscaras, Thomas Couture

Os Grandes fazem-se acompanhar de um séquito armado, tão eficiente quanto ostentatório. Os castelos estão armados. Na Inglaterra, a bela época dos arsenais particulares vai de 1550 a 1620 (L.Stone). O século XVII assiste ao recuo das tropas senhoriais. Na França, a ordenança de Henrique III, que reserva ao rei o direito exclusivo de recrutar homens de armas (1583) é mal aplicada. Richelieu tem de destruir os castelos fortificados distanciados das fronteiras, mas os palácios nobiliários possuem salas de armas. De resto, é admitido garantir-se a segurança pessoal pelas armas na própria casa ou em viagem. Produz-se, todavia, uma mudança de que é testemunha a voga dos duelos, que representam um progresso na medida em que substituem a emboscada. As ordenações contra os duelos conseguem apenas reduzir-lhes a frequência. O duelo, forma nobiliária do combate singular, tem equivalentes em todos os escalões da sociedade.

A violência dos costumes manifesta-se também pelo número de raptos e retiradas pela força, que cresce quando afrouxam os laços familiais. O casamento contrário à vontade dos pais continua a ser feito. O concílio de Trento e o Estado outorgam ao padre, nos países católicos, um papel mais importante na celebração do matrimônio. A instituição dos registros paroquiais faz dele, igualmente, um verdadeiro oficial de estado civil.

Um último testemunho do retrocesso relativo da violência em meados do século XVII é o número crescente de processos nos Estados do Ocidente. Na Inglaterra, num século, multiplicaram-se de seis a dez (L. Stone).

Feitiçaria, Dosso Dossi

A feitiçaria e os processos dela decorrentes representam um mal endêmico cujo apogeu se situa entre o fim do século XVI e a metade do XVII. Embora certas regiões sejam mais atingidas do que outras (Lorena, Franco-Condado-Labourd), a feitiçaria constitui um fenômeno geral que atinge, simultaneamente, países católicos e países protestantes, regiões devastadas pela guerra e regiões poupadas.

É característico o fato de que os juízes e todos os espíritos superiores acreditem nas constantes intervenções do diabo. Jean Bodin, humanista, precursor das ciências políticas, escreve De la Démonomanie des sorciers (1580) e, em seu cargo de juiz, se revela um temível caçador de feiticeiras. As enormes lacunas do conhecimento científico deixam um lugar considerável ao sobrenatural. No domínio do inexplicável, tudo o que conduz ao bem é atribuído a Deus e tudo o que conduz ao mal, a Satã. Os que atuam por vias incompreensíveis: curandeiros, algebristas e, do mesmo modo, todos aqueles em que não se confia, passam por pessoas que obtêm do diabo o poder de praticar sacrilégios. O murmúrio público acusa a torto e a direito. Desde que a justiça civil dele se apodere, a sorte do acusado está quase fixada. Armado de um tratado de demonologia, o juiz faz perguntas que sugerem as respostas ao infeliz esgotado pelo cativeiro, pelos gravosos testemunhos e pela tortura. A Igreja, naturalmente, só deseja salvar o incriminado e curá-lo pelos exorcismos. Mas se ele confessa delitos, ela nada mais pode fazer em seu favor. Por fim, o acusado, alucinado, não deixa de denunciar numerosos cúmplices. Dessa maneira, centenas de infelizes são queimados na região de Labourd, em 1609, e vários milhares nas margens ocidentais do Império.

Um outro aspecto do mal é a possessão, o contrário do misticismo. A obsessão e a histeria são postas na conta do demônio e vêm de um filtro ou de um sortilégio.

O "possesso" faz-se exorcizar em público e acusa. Só alcança o repouso pela morte de seu "algoz". As vítimas dos processos de feitiçaria o mais frequentemente são mulheres, pastores, algumas vezes padres; as dos processos de possessão são amiúde padres. Entretanto, a publicidade dada a tais processos acabam por despertar a desconfiança de alguns médicos. O processo de Loudon no qual ursulinas, inclusive a superiora, se pretendem vítimas do Padre Urbain Grandier, que os juízes condenam à fogueira, suscita controvérsias. Começa-se a falar de doença do espírito. A partir de 1640, o Parlamento de Paris renuncia à perseguição da feitiçaria. Deve-se esperar por 1660 para que, na França, ocorra um refluxo e pela ordenança de 1682 para que a feitiçaria não seja mais considerada como um delito em si mesma. Mas continua a haver juízes retardados. Nos demais países, o recuo dos processos de feitiçaria é mais lento ainda.

O tímido refluxo da violência e dos processos de feitiçaria em meados do século XVII não deve fazer esquecer que todo o período de 1580-1680 se coloca sob o signo desses dois males. Wallenstein exprime bem a inquietação da época: alternadamente, ambicioso, violento, ligando finanças e política, herói de cruzada católica, personagem faustoso circundado de artistas e, ao mesmo tempo, presa derrisória dos adivinhos que, finalmente, lhes paralisam a ação.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 133-5.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Mundurucus: os grandes guerreiros da Amazônia

Índios mundurucus, Hércules Florence

Os mundurucus, como seus antepassados por centenas de anos, se pintaram para a guerra. Esses índios de porte altivo, considerados outrora como os mais belicosos dentre os que habitavam a Amazônia e que muito trabalho deram para os brancos que os tentaram subjugar, têm orgulho de seu passado guerreiro. "Se eles insistirem na construção de hidrelétricas nas nossas terras, vamos atacar", garantiu Josias Manhuary, um de seus líderes, à repórter Aline Ribeiro, da revista Época. O guerreiro das margens do Tapajós, revoltado com os planos de aproveitamento do potencial hídrico do rio que dá ao seu povo o peixe diário e a possível inundação das terras em que estão enterrados os seus antepassados, afirmou: "Somos cortadores de cabeças!".

E é fato. A captura de cabeças humanas era o motivo que levava os mundurucus, que, provavelmente, já habitavam a região do Tapajós mil anos antes da chegada dos europeus, a organizar sua sociedade em função da guerra, "Ainda hoje eles têm essa tradição de povos guerreiros, apesar dos constrangimentos da colonização, da catequese e da relação com o Estado", explica o antropólogo [...] Florêncio Almeida Vaz. Como ativista indígena da etnia maitapu e frade franciscano, frei Florêncio, como é mais conhecido, estuda o encontro dos povos indígenas no baixo e médio Tapajós com os colonos portugueses e como se deu o acordo que selou a paz entre índios e lusos no final do século XVII, mudando a história da região.

Uma rica fonte documental sobre os mundurucus foi deixada por cronistas e viajantes do século XIX, como os naturalistas alemães Spix e Von Martius, que visitaram a região do Tapajós entre 1817 e 1820. Em seus relatos, eles descrevem que os "mundurucus, mundrucus ou muturicus, antes do ano de 1720, mal eram conhecidos no Brasil pelo nome; mas, daí em diante, irromperam em numerosas hordas, ao longo do rio Tapajós, destruíram as colônias e tornaram-se tão temíveis que foi necessário mandar contra eles tropas, às quais se opuseram com grande audácia."


Guerreiro mundurucu com cabeça como troféu, Johann Spix and Carl Martius

Chamados pelos indígenas de tribos rivais de paiquicé, ou corta-cabeças, o povo mundurucu atribuía grande significado ritual às cabeças capturadas e cuidadosamente preservadas por um meticuloso processo de mumificação. Todos os inimigos homens adultos de uma tribo atacada eram mortos e suas cabeças, mantidas como troféus de grande valia. Os guerreiros acreditavam que, com isso, adquiriam poderes mágicos que garantiam a fartura e a sobrevivência de seu povo.

A cosmologia desse povo - pertencente ao tronco linguístico tupi -, responsável por sua atitude belicosa, levou à perseguição e ao extermínio de povos como os jumas e os jacarés, tendo influenciado também no deslocamento dos parintintins e dos kawahivas em direção aos rios Juruena e Teles Pires. Os mundurucus perseguiram ainda os muras e lutaram contra os maués, araras e apiacás. "A guerra fazia parte do cotidiano. Eles tiveram de adaptar esse valor para outras formas rituais, como o xamanismo e outras crenças que continuam associadas à guerra", diz frei Florêncio.

O primeiro relato que se tem acerca da existência do povo mundurucu remonta a 1542 e é do cronista e padre espanhol Gaspar de Carvajal, que integrou a expedição de Gonçalo Pizarro (irmão de Francisco Pizarro), de Quito à foz do rio Amazonas, passando pelo baixo Tapajós. "Ele já fala da característica de pintar o rosto de preto", conta frei Florêncio. "Guerrear, para esse povo, era afirmar-se como gente. Além de lutar contra outros povos indígenas, o inimigo passou a ser também os portugueses", diz Almeida Vaz.


Criança e mulher mundurucu, Auguste François Biard

Por volta de 1770, os mundurucus fizeram uma série de ataques aos povoados localizados à beira do Tapajós, ponto de exploração de colonos luso-brasileiros e aldeias missionárias que haviam sido estabelecidas pelos jesuítas. Em 1773, foram responsáveis pelo assalto à fortaleza do Tapajós, em Santarém.

"As incursões pela floresta em busca das cabeças-troféu eram longas. Há registros de que estes índios tenham chegado até o Xingu", destaca o historiador e indigenista André Ramos. [...] Ramos viveu uma década na aldeia Waro Apompo, no rio Cururu, um dos afluentes do Tapajós, na parte alta. "A guerra tem uma função de renovação de vida, as cabeças tinham um papel importante nessa organização", explica o pesquisador.

O padre português Manuel Aires de Casal, em 1819, chamava a área ocupada por esse povo de Mundurucânia, um território que comprrendia os rios Jurena, Amazonas, Madeira e Tapajós. Em razão da ocupação portuguesa dos brancos, os mundurucus acabaram se refugiando no alto Tapajós, onde permanecem até os dias atuais.

Os jesuítas cumpriram importante papel na ocupação do Tapajós. Para expandir a catequese, instalaram-se em aldeias como a de São José ou Maitapus, em 1772; a de Santo Inácio ou Tupinambaranas, em 1737; e, em 1738, as de Borani e Arapiuns, que se destacaram pelo desenvolvimento, todas localizadas no baixo e médio Tapajós.


Mundurucus, Auguste François Biard

Vendo o avanço do inimigo, os mundurucus passaram a atacar sem descanso os assentamentos dos colonos a partir da última década do século XVIII. Na tentativa de conter a ameaça indígena, o poder colonial enviou, em 1794, uma força com cerca de 500 soldados com a missão de atacar os mundurucus até em suas aldeias do alto Tapajós, no atual rio das Tropas.

Nesse momento, acontece a reviravolta. Índios e colonos passam a conviver em paz, no processo que ficou conhecido como a "pacificação dos mundurucus". Não existem ainda versões conclusivas sobre como isso se deu. André Ramos acredita que o contra-ataque perpetrado por tropas portuguesas no alto Tapajós tenha sido decisivo. "Os portugueses sobem o Tapajós, adentram o Jurupari e vencem a batalha. A partir de então, se estabelece uma relação apaziguada", diz.

Frei Florêncio defende a tese de que os próprios indígenas tomaram a iniciativa de estabelecer relações pacíficas com os colonos da região. Uma visita à Vila de Pinhel, em 1795, para encontrar-se com o tuxáua (chefe), quando foram acompanhados até a fortaleza de Santarém, teria selado um pacto de paz.

Em 1795, o governador Manuel da Gama lobo d'Almada adotou a estratégia de pôr fim às hostilidades. Uma vez que o poder colonial não contava com um contingente de homens suficientes para confrontar os termos indígenas, o mandatário enviou um grupo de soldados que capturou dois índios mundurucus, que ficaram por quatro meses na fortaleza da Barra do Rio Negro, na atual cidade de Manaus.

Cerca de 140 índios mudurucus se reúnem em Brasília com o ministro da Secretaria Geral da República, Gilberto Carvalho e representantes de outros órgãos do governo para discutir a suspensão de empreendimentos energéticos na Amazônia e outras reivindicações indígenas, em 4 de junho de 2013. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Ali, os índios teriam sido bem tratados e receberam inúmeros presentes. Reconhecendo a boa vontade dos raptores, os dois índios teriam se comprometido a retornar e avisar aos outros que os brancos não eram seus inimigos. A partir de então, os conflitos teriam cessado e os mundurucus tornaram-se aliados dos brancos, passando até mesmo a operar como força militar para "pacificar" outros grupos indígenas. "A primeira vila onde os mundurucus se voltaram para a vida colonial foi Pinhel, comunidade de onde venho. Eles estavam ficando enfraquecidos, era uma estratégia. Mas grupos isolados continuaram guerreando no alto Tapajós", comenta frei Florêncio.

Após selada a paz, os mundurucus começam a manter um estilo de vida sedentário nas vilas. "Eles passaram pelo processo de caboclização, que fez com que praticamente desaparecessem como etnia. Foram se tornando cada vez mais ligados e defendendo os interesses dos portugueses. Lutaram, inclusive, ao lado dos portugueses contra os cabanos (entre 1835 e 1840)", ressalta o antropólogo.

Os mundurucus são uma etnia que conseguiu preservar de alguma maneira a sua cultura, até mesmo pela dificuldade de acesso e pela própria belicosidade. Ramos diz que, para além da versão oficial construída pelas missões evangelizadoras ou pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), primeiro órgão indigenista brasileiro, fundado em 1910 sob uma ótica positivista, uma história indígena ainda está por se fazer. "O que predomina é a visão de que os mundurucus teriam sido atraídos para as margens dos rios pelas mercadorias dos brancos e benesses que chegariam com o contato. A versão dos mundurucus não é essa", argumentou. Frei Florêncio também segue nessa linha, ao salientar uma mudança de perspectiva. "Os indígenas deixam de ser vítimas que foram quase exterminadas. Hoje, eles se veem como povos florescendo", destacou.

Fabíola Ortiz. Os grandes guerreiros da Amazônia. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 127 / p. 40-43.

domingo, 3 de maio de 2015

Averróis: Ponte entre culturas

Debate imaginário entre Averróis e Porfirio. Ilustração. Manfredo de Monte Imperiati, Liber de Herbis, séc. XIV.

Seu nome é citado com frequência quando se defende a ideia, absolutamente moderna, de um "Islã das Luzes". A exemplo de Avicena (980-1037), ele encarna a imagem do sábio árabe, tolerante e aberto às trocas culturais, em contraste com aquela de uma expansão muçulmana guerreira e fanatizada. Se a sua notoriedade ultrapassa a de seu equivalente persa na Europa é porque ele contribuiu para a afirmação intelectual do Ocidente cristão.

Filósofo, teólogo, jurista, matemático e médico, Averróis (nome latinizado de Abu al-Wald Ibn Ruchd) nasceu em 1126, em Córdoba. Ele descendia de uma família de juristas que ocupavam a função de cadi, quer dizer, de juiz de paz e de notário. Seu avô tornou-se célebre por importantes trabalhos sobre a jurisprudência islâmica. A juventude de Averróis foi marcada pelo estudo rigoroso do Corão, ao qual se acrescentaram diferentes ciências, entre as quais a medicina, que ele exerceria paralelamente a seu cargo de cadi. Ele interessou-se igualmente pelo saber dos antigos. Abu Yaquib Yusuf, o segundo califa da dinastia dos almóadas (do Marrocos), encomendou-lhe um estudo das obras de Aristóteles. Como não dominava o grego, Averróis trabalhou com traduções que comparou exaustivamente, com o intuito de obter a fonte mais autêntica. Seus comentários de Aristóteles forjaram seu renome, que ultrapassou as fronteiras da Espanha muçulmana (Djazirat al-Andaluz) depois da sua morte. Eles atingiram a Universidade de Paris, onde foram debatidos com ardor. Falou-se até mesmo em uma "querela de Aristóteles", tão áspero foi o debate entre os partidários de Averróis e seus adversários. Tratava-se de determinar se a faculdade de pensar no homem era algo individual ou, como sugeria o andaluz, o reflexo de uma lógica universal. Refutando metodicamente os argumentos de Averróis, Tomás de Aquino lançou-se na batalha metafísica e, aos olhos da Santa Sé, levou a melhor. A partir desse momento, foi o pensamento tomista que animou a doutrina da Igreja.

Em cada um dos três monoteísmos em plena efervescência intelectual no século XIII, distingue-se uma grande figura: santo Tomás de Aquino (1228-1274) para o cristianismo, Moisés Maimônides (1135-1204) para o judaísmo e Averróis para o Islã. Entre todos os teólogos muçulmanos desse período, foi ele o que mais se dedicou a integrar a razão à religião, numa busca de equilíbrio entre o poder espiritual e o poder temporal. Ele distingue a verdade revelada e aquela que se pode atingir por meio da razão. Mas não para opor uma à outra e, sim, uni-las numa busca pela verdade. Em seu Discurso decisivo, ele chega a atribuir um papel indispensável nesse processo ao filósofo, mas reconhece seu caráter elitista.

Evoca-se Averróis para reavivar as cores do brasão do Islã em uma hora na qual as questões de identidade nacional, de laicidade e de integração se tornam outra vez temas ardentes. Sua obra ergue-se como um baluarte contra os fanáticos e abre uma porta ao diálogo entre religiões. Uma árvore que esconde a floresta? Os últimos anos do sábio mostram o quanto seria absurdo idealizar a idade de ouro de al-Andaluz. Se manteve boas relações com Abu Yaquib Yusuf, soberano apaixonado pela cultura, Averróis teve sérias diferenças com seu filho e sucessor, que adotou o integrismo - tendência que põe os princípios religiosos como modelo de vida política e fonte das leis do Estado - e chegou a proibir a filosofia. Ele foi condenado ao exílio em 1197, e seus livros queimados em praça pública. Colocada sob suspeita de heresia, sua obra encontrou melhor ressonância no mundo cristão. Os humanistas do Renascimento, tais como Giovanni Pico della Mirandola, lhe asseguraram um lugar no panteão dos pesquisadores da verdade, ainda que o pensador andaluz fosse condenado pelo papa em 1513.

Averróis continua a alimentar ardentes debates. Em 2008, sua influência esteve no cerne da polêmica suscitada pelo livro de Sylvain Gouguenheim, Aristote au mont Saint-Michel, que discute a forma como a cultura grega se transmitiu ao Ocidente, combatendo a tese da centralidade do papel do Islã nesse processo. A questão posta então era a seguinte: celebrar o papel de Averróis e Avicena significa admitir uma influência do Islã na matriz heleno-cristã que foi transmitida à Europa? É uma questão bastante atual diante dos conflitos políticos e culturais com que nos defrontamos.

Vincent Mottez. Ilustre desconhecido. Averróis. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 127. p. 62-63.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Paraná, sucursal do inferno

(Minha singela solidariedade aos professores-guerreiros do Paraná)


“PARANÁ, SUCURSAL DO INFERNO”

E o homem
circundou o espaço sideral
transplantou órgãos
criou máquinas inimagináveis
compôs poemas e canções
e criou belas obras literárias e artísticas!
(mas não domou sua ganância e sua sede de poder!)

E as mazelas seculares continuam
a matar
a escravizar
a humilhar
a vilipendiar o trabalhador
a dona de casa
o gari
o professor...

E o capitalismo selvagem
porco
imundo
sacana
representado pelos
partidos políticos fascistas
pelas mídias podres
pelas igrejas fundamentalistas
nos mata um pouco a cada dia
com discursos infundados
com gases lacrimogênios
bombas de efeito moral
jatos d’água
balas de borracha
cassetetes...

E em nome do Deus fundamentalista judaico-cristão
continua-se a matar milhões de fome
de sede
e do direito de viver
e de se expressar...

E o povo não toma mais vinho
e nem come pão!
Mas hóstias de ódio
regados a sangue de vingança
e intoleráveis intolerâncias...
oferecidos nos altares onde pregam
os representantes do diabo
em suas sucursais do inferno.
Fora os que alimentam esse sistema fascista!

Orides Maurer Junior é historiador e autor dos blogs "História e Sociedade" e "Private Life".

Ferreiros e agricultores dispersos nas savanas e florestas da África Central Ocidental

Lunda, 1854, Artista desconhecido

O primeiro problema nos estudos sobre África Central Ocidental é a questão da difusão da metalurgia e a grande expansão das línguas bantu. Sobre essas duas questões, têm-se construído grandes equívocos. Primeiro, as explicações são dadas como se a expansão dos povos de língua bantu fosse responsável pela propagação do uso de instrumentos de ferro e, somente a partir daí, esses povos tiveram condições de enfrentar a Floresta Tropical. Segundo, há uma tendência de se identificar o termo bantu como característica etimológica no estudo dos povos. Como se fosse uma etnia.

Na verdade, os trabalhos da arqueologia e da linguística têm informado que bantu significa um tronco linguístico, e não uma etnia propriamente. Porém, tem-se feito identificação de bantu como grupo cultural e etnológico, e não como povos que falavam línguas de origem comum. No Brasil, a confusão por conta disso tem sido grande. Quando os africanos chegaram ao Brasil, aqueles que vieram da região abaixo da Floresta Tropical passaram a ser designados de bantu. Pela dimensão dos diversificados agrupamentos humanos existentes na região abaixo da floresta, o termo não identifica esse africano. Ele pode ser luba, lunda, kongo, mbundo, ovumbundo, etc. Bantu designa povos falantes de uma língua, e não uma etnia. [...]

Para que não se mantenha a ideia de uma África como um grande caldeirão, em que todos que de lá saíam tinham uma única identidade, de um lugar difuso e distante, será necessário saber o que é ser um bantu. A maioria da população abaixo da região dos Camarões pertence aos povos de língua bantu, mas, apesar de hoje serem majoritários, os bantu, quando chegaram à região, encontraram outros povos, os koisans-sans ou bosquímanos. São caçadores, muitos dos quais, no encontro com agricultores e metalúrgicos, passaram pelo processo de integração ou tiveram que migrar para regiões inóspitas, como o deserto do Kalaari e onde vivem até hoje.

No início do segundo milênio, surgiram as chefias políticas de caráter mais centralizado nas regiões das savanas, onde hoje seria o sudoeste de Angola e Congo. Provavelmente oriundos de comunidades de caçadores e coletores, obtiveram instrumentos de ferro por meio de seus vizinhos. Os agricultores se fixaram nas terras férteis junto aos vales dos rios.

A descoberta, o uso e a expansão do ferro marcaram uma importante fase na história de todas as populações da África Central. O metal era mais versátil e eficiente para a agricultura e foi se expandindo, substituindo os instrumentos de pedra e madeira.

As migrações bantu integravam na sua civilização traços culturais provenientes dos autóctones. O fenômeno característico da primeira metade de nosso milênio foi a diferenciação étnica. Dois fatores contribuíram para isso: os povos autóctones assimilados linguisticamente e a fraca intensidade de comunicação entre as populações. Para o historiador Jean-Luc Vellut, o maior exemplo disso foi a trajetória dos imbangala, população com elementos da cultura lunda, luba, ovimbundo e mbundo, que  formou um conjunto étnico por volta do ano de 1600.

É possível que os diversos grupos cultivassem as diferenças linguísticas para traduzir uma maneira visível de sua vontade e individualização. Em zonas onde a vegetação e o relevo montanhoso tornavam a comunicação difícil, encontramos um só grupo regional com marcadas diferenças étnicas. Entretanto, onde o mapa linguístico obedeceu seguidos padrões, os traçados dos rios e da costa favoreciam as ligações laterais, constituindo grupos mais homogêneos. Na zona de savana, por conta da densidade populacional, foi preciso maior esforço para o isolamento.

Após transformações, como o crescimento da população e a eclosão das técnicas artesanais e do comércio, a sociedade tornou-se mais complexa. Os agricultores de língua bantu, em geral, organizavam-se em grupos matrilineares. O vínculo de parentesco de uma pessoa conta-se a partir da família da mãe. Naquela região da África, muitas vezes o parentesco era dessa maneira. Em outras sociedades, contava-se pelo pai e havia comunidades que contavam o parentesco por ambos os lados. Em matéria de descendência, predominava, portanto, o regime matrilinear. Assim, há uma influência grande desse regime nas questões de sucessão, herança, casamento e residência. Matrilinearidade e matriarcado são coisas distintas.

A matrilinearidade bantu era acompanhada, em geral, do princípio de que os homens tinham maior autoridade sobre as mulheres. A linhagem matrilinear ficou débil, enquanto a estrutura da aldeia achava-se reforçada. Essa autoridade da aldeia se fundamentava nos princípios territoriais e políticos.

PANTOJA, Selma. Uma antiga civilização africana: história da África Central Ocidental. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2011. p. 23-27.