"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O "problema negro" nos Estados Unidos após a Guerra Civil

Marcha pelos Direitos Civis, Washington

O problema negro - a escravidão - não foi o cerne da Guerra de Secessão. Lincoln, apesar de ter horror à escravidão, era reticente quanto à igualdade de direitos entre brancos e negros, chegando a dizer que: "Se pudesse salvar a União, sem libertar nenhum escravo, o faria."

Os negros, libertados durante a guerra civil, ficaram sem propriedade porque não houve reforma agrária nos EUA, e nem a União cumpriu o que havia prometido: 40 acres de terra e uma mula para cada família.

Quando o exército nortista abandonou o Sul, os negros que haviam obtido o direito de voto, sem nenhuma propriedade, ficaram sem respaldo e se espalharam pelos Estados Unidos à procura de trabalho, migrando para Norte e Oeste, onde havia escassez de mão-de-obra.

O sucessor de Lincoln, Andrew Johnson, procurou restabelecer no Sul governos estaduais semelhantes aos que ali existiam antes da guerra. Os líderes confederados foram anistiados e quase nada mudou politicamente nos estados do Sul. É necessário dizer que, logo após a vitória, a ocupação militar do Sul implicou a alforria de todos os escravos e a proibição do direito de votar a todos os ex-líderes confederados. Os governos sulistas passaram a ser dependentes dos votos negros e dominados por brancos favoráveis à União. A partir de 1877, o governo federal foi retirando a sua força militar do Sul, e as comunidades brancas foram recuperando seu poder. Nesse mesmo ano, os sistemas político, social e econômico do Sul eram semelhantes aos de antes da guerra, com uma única diferença: o negro era agora um trabalhador sem terra e não mais um escravo. No dizer de McKitrick "no esforço geral para reconstruir a estrutura desmantelada pela guerra civil e pela restauração, até as pequenas conquistas do negro - para não falarmos nos direitos sociais mínimos que ele adquirira  [...]. - lhe foram sistematicamente retiradas". Os estados sulistas começaram a impor sistemas de segregação social e de abolição dos direitos civis dos negros. Mais ou menos no início do século XX, o processo de segregação do negro estava completado.

Os negros, quando queriam lutar por seus direitos civis, eram ameaçados pelas organizações terroristas que agiam implacavelmente no Sul, como a Ku-Klux-Klan.

Nos princípios do século XX, a mecanização da agricultura expulsou grandes massas de trabalhadores rurais negros para as cidades do Norte. Nessas cidades, ficavam segregados nos chamados guetos negros e ocupavam os serviços rejeitados pelos brancos. Os negros eram discriminados nos seus locais de trabalho, nos jardins públicos etc. Mas assim mesmo a vida nas cidades do Norte era melhor do que do Sul, onde eram surrados e ate linchados.

A situação dos negros nos guetos do Norte foi magistralmente descrita por Hughes, um poeta negro, nos seguintes versos:

"Que fazer?
Aqui ao lado do inferno
Está o Harlem
Que recorda as eternas mentiras
As eternas patadas no traseiro
O eterno sed pacientes
Que nos disseram tão amiúde
Por certo que o recordamos
Porém quando o garoto do bazar da esquina
Nos diz que o açúcar voltou a subir dois centavos
E o pão um centavo
E que há novas taxas para o cigarro...
Então recordamos o emprego que jamais tivemos
Que jamais podemos ter
E que agora não temos
Porque somos gente de cor
Então ficamos aí
Ao lado do inferno
No Harlem
E olhamos de costas o mundo
E nos perguntamos o que vamos fazer
Com todas estas recordações aí
Diante de nós."

Com a Primeira Guerra Mundial, que mobilizou toda a economia e força de trabalho americanas, o negro teve a sua primeira oportunidade de ascensão "à condição de operário e de cidadão". Não como eleitor, mas como soldado.

Finda a guerra, o negro perdeu todas as posições conquistadas.

Durante a grande crise econômica de 1929, devido ao desemprego em massa, os brancos passaram a ocupar os postos subalternos que antes recusavam. Os negros foram maciçamente desempregados e o número de negros desocupados era proporcionalmente maior ao de brancos.

A Segunda Guerra Mundial deu ao negro uma nova chance mais igualitária na luta e no trabalho. O negro comportou-se bravamente na guerra. Era a única forma de recuperar a dignidade que lhe haviam tirado. A Divisão Búfalo do exército americano, composta somente de negros, foi uma das melhores da Segunda Guerra Mundial.

Nos anos do pós-guerra recrudesceu a violência contra o negro altivo, que havia participado da guerra e trabalhado na grande indústria. A partir daí, os negros americanos se organizaram melhor do que nunca, para a conquista da igualdade social e dos direitos civis. Os negros e muitos brancos também haviam tomado consciência da injustiça que significa a segregação racial.

O novo negro, que lutava em grandes manifestações pelos seus direitos civis em 1960, tinha como motivação a independência das ex-colônias africanas, onde os negros derrotaram os ex-colonizadores brancos. O negro americano, com isso, sentiu-se forte para lutar contra a segregação. Segundo Darcy Ribeiro, "o negro americano passou a constituir a vanguarda do movimento revolucionário mais ativo dos Estados Unidos de nossos dias. Toma, desde então, em suas mãos, a luta pelos seus próprios direitos..."

Durante a década de 70 houve uma série de insurreições negras contra a segregação racial. Mas não só de insurreições passou a ser feita a luta dos negros. Utilizaram-se também de passeatas e boicotes às empresas que promoviam a segregação racial.

Devido à luta dos negros pelos direitos civis, o governo federal americano em 1966 elaborou e colocou em prática a Lei dos Direitos Civis, proibindo a segregação racial. Mas, na verdade, os direitos civis dos negros ainda não estão assegurados. No Sul a lei praticamente não é cumprida, e no Norte a comunidade negra é marginalizada econômica e socialmente.

CÁCERES, Florival. História da América. São Paulo: Moderna, 1986. p. 113-115.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Chiapas, nome de dor e de esperança

Zapatistas

O estado de Chiapas, no sudeste do México, é uma região marcada pela pobreza e violência. Em 1994, o grupo guerrilheiro autodenominado Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) tomou de surpresa seis cidades da região e declarou guerra ao governo mexicano e ao Nafta (acordo de livre comércio entre Canadá, México e Estados Unidos).

Os zapatistas, inspirados em Emiliano Zapata, herói da Revolução Mexicana (1910), afirmam lutar pela causa indígena e pela reforma agrária. A permanência de rebeldes impede a tranquilidade política do país, ao mesmo tempo que denuncia a luta de parte da população mexicana por justiça social.

Leia um trecho do artigo publicado na Folha de S. Paulo, 7 de junho de 1998, do escritor português José Saramago, que nos incita a compreender "este rio infindável de vivos e mortos, este sangue perdido, esta esperança ganha, este silêncio de quem leva séculos protestando por respeito e justiça, esta ira represada de quem finalmente se cansou de esperar".

Quando [...] as alterações introduzidas na Constituição mexicana [1992] vieram pôr termo à distribuição agrária e reduzir a nada a possibilidade de os camponeses sem terra disporem de uma parcela de terreno para cultivar, os indígenas acreditaram que poderiam defender os seus direitos [...], organizando-se em sociedades civis que se caracterizavam e assim se continuam a caracterizar, singularmente, por repudiar qualquer tipo de violência, começando pela que poderia ser a própria. Essas sociedades tiveram, desde o princípio, o apoio da Igreja católica, mas essa proteção de pouco lhes serviu. Seus dirigentes e representantes foram sucessivamente metidos na cadeia, cresceu a perseguição sistemática , implacável, brutal por parte dos poderes do Estado e dos grandes latifundiários, mancomunados à sombra dos interesses e privilégios de uns e outros, prosseguiram as ações violentas de expulsão das terras ancestrais, e as montanhas e a selva tiveram de ser, muitas vezes, o derradeiro refúgio dos deslocados. Aí, entre as névoas densas dos cimos e dos vales, iria germinar a semente da rebelião.

Os índios de Chiapas não são os únicos humilhados e ofendidos deste mundo: em todas as partes e épocas, com independência de raça, de cor, de costumes, de cultura, de crença religiosa, o ser humano que nos gabamos de ser soube sempre humilhar e ofender aqueles a quem, com triste ironia, continua a chamar seus semelhantes. Inventamos o que não existe na natureza, a crueldade, a tortura, o desprezo. Por um uso perverso da razão viemos dividindo a humanidade em categorias irredutíveis entre si, os ricos e os pobres, os senhores e os escravos, os poderosos e os débeis, os sábios e os ignorantes, e em cada uma dessas divisões fizemos divisões novas, de modo a podermos variar e multiplicar à vontade, incessantemente, os motivos para o desprezo, para a humilhação e a ofensa. [...]

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 291.

domingo, 27 de janeiro de 2013

L' État c'est moi [O absolutismo monárquico]

Retrato mitológico da família de Luís XIV, Jean Nocret. Luís XIV, o "rei-sol", a quem se atribui a frase célebre, síntese do absolutismo: L'État c'est moi.

Acontecimento marcante da Era Moderna, o surgimento dos Estados nacionais na Europa se deu sob a forma da monarquia absoluta. A longa crise econômica e política dos séculos XIV e XV havia enfraquecido o poder local dos senhores feudais e das cidades que gozavam de certa autonomia, permitindo que fossem combatidos com crescente eficácia pelos reis, especialmente na França, Inglaterra, Portugal e Espanha.

Por "absolutismo", entretanto, não se deve entender um regime no qual o monarca governo sozinho, como se detivesse nas mãos a força política total e plena. Além de ouvir seus conselheiros, geralmente de origem nobre, os reis eram obrigados eventualmente a convocar Parlamentos ou assembleias gerais de representantes das várias camadas da sociedade, de acordo com a tradicional divisão em três "estados" ou "ordens" sociais: o clero, a nobreza e a burguesia. Essas assembleias tinham o direito de estabelecer leis ou de revogar as promulgadas pela Coroa e, principalmente, de aprovar aumentos de impostos ou a criação de taxas especiais, imprescindíveis para financiar as constantes guerras e outros empreendimentos custosos.

Para não ter de fazer as inevitáveis concessões em tais casos, os reis preferiam usar recursos do próprio tesouro ou criar outras fontes, como a venda de cargos administrativos e nobiliárquicos ou do direito a arrecadar impostos. Embora conseguissem deste modo permanecer às vezes muitos anos ou até décadas sem convocar os órgãos representativos, alguma circunstância de crise econômica ou nas finanças do Estado acabava obrigando-os a fazê-lo, o que podia inaugurar um período de conflito, como ocorreu na Inglaterra de 1640 ou na França de 1789.

Em que sentido, então, essas monarquias podem ser chamadas de "absolutas"? O termo refere-se basicamente à centralização do poder realizada nesta época em diversas dimensões da vida pública. Em primeiro lugar, tratava-se de formar um território unificado por onde se fizesse cumprir a autoridade real, combatendo, como já foi dito, as senhorias feudais e as cidades relativamente autônomas, ambas ciosas por preservar sua parcela de independência. Embora fossem vassalos do rei, conforme o ordenamento jurídico medieval, na prática elas se valiam das imensas dificuldades de transporte e de comunicação para desconhecer a vontade do suserano e continuar exercendo o poder local que o mesmo ordenamento feudal lhes outorgava. Só uma política tenazmente perseguida ao longo dos séculos, através de guerras internas e concessões habilmente feitas e depois retiradas, é que permitiu aos reis a obtenção gradual do controle de regiões mais distantes do núcleo original, no qual sua autoridade era reconhecida.

Além do enfrentamento direto de seus rivais, a estratégia para realizar a centralização variava conforme a situação. No caso da luta contra a aristocracia, porém, predominou uma espécie de aliciamento. Por um lado, a nobreza rural foi perdendo a capacidade militar de opor-se aos levantes camponeses de crescente envergadura, contando para isso com o auxílio das tropas reais, numa aliança fundamental para a sobrevivência feudal. Por outro lado, o fenômeno persistente da inflação durante o século XVI, associado ao afluxo de metais preciosos da América recém-conquistada, levou muitas casas aristocráticas de tradição medieval à falência, obrigando-as a vender seus domínios à baixa nobreza em ascensão ou a elementos da burguesia urbana, desejosa de enobrecimento pela posse de terras.

Tal processo revelou-se ainda mais forte na Inglaterra, onde as terras confiscadas da Igreja Católica pela Reforma Anglicana foram vendidas pela Coroa, numa forma de evitar a convocação do Parlamento. Surge aí uma nova aristocracia, a "gentry" (os gentis-homens), de origem frequentemente burguesa, iniciando um tipo capitalista de exploração de suas propriedades rurais e influenciando com essa mentalidade os remanescentes da velha aristocracia tradicional. Os títulos de nobreza necessários para o reconhecimento do status desse grupo eram concedidos ou vendidos pelo monarca, que gradativamente consolidou sua posição de fonte única do enobrecimento - privilégio que até então ele dividia com os senhores mais importantes, de acordo com os códigos de suserania da Idade Média.

Mesmo na França, onde era bem menor a relevância dos gentis-homens, também ocorria a venda de títulos nobiliárquicos e a ascensão de funcionários da Coroa, chamados justamente de "nobreza de toga". Com isso tudo, enfim, os reis concentram ao seu redor a aristocracia, em Cortes significativamente ampliadas. O exemplo mais brilhante desse movimento é a construção do palácio de Versalhes por Luís XIV em 1682, para onde levou os nobres, que passaram a gravitar alegremente em torno do "rei-sol". Consequência disso e de toda a reestruturação militar foi o progressivo desarmamento da aristocracia, que perde a função distintiva por ela possuída na tradição feudal. Ao processo de monopolização do enobrecimento pelo monarca, segue-se então o de monopolização da violência, isto é, o direito exclusivo do uso da força pelo Estado.

Quanto às cidades e suas burguesias de mercadores e mestres artesãos, a centralização do poder implicou retirar delas a autonomia para determinar a qualidade e a quantidade dos bens produzidos e comercializados. Essa autonomia, garantida na Idade Média pela fragmentação da autoridade, contraria a necessidade concentradora do Estado moderno e levou a um longo confronto de interesses entre este e os patriciados urbanos, às vezes muito poderosos. É quando se inicia o chamado "mercantilismo", política de regulamentação governamental da economia, que passa a ser concebida também como esfera política e não apenas privada. Paralelamente à integração política do território, acontece, portanto, a formação de mercados "internos" maiores, no âmbito de regiões cada vez mais amplas até configurar um todo nacional.

Contudo, deve-se observar que o poder central não extingue simplesmente as fronteiras e barreiras existentes; antes, ele as domina e mantém, passando a controlá-las e coordená-las em seu próprio benefício. É este o sentido dos "Regulamentos" das manufaturas francesas, por exemplo, instituídos em 1633 por Colbert, superministro da economia de Luís XIV. Mantidos por mais de um século, tais regulamentos conservaram as limitações típicas das antigas corporações de ofício e de comércio, estabelecendo a forma de produção, o número de mestres, aprendizes e assalariados de cada manufatura, bem como o tipo e a quantidade de cada produto e a esfera de sua comercialização.

E outros Estados europeus atravessaram processo semelhante de criação de "guildas" nacionais, às quais era acrescentado o enfraquecimento do poder econômico local e regional dos senhores feudais. Se tradicionalmente estes tinham o direito a cunhar moedas, a fixar pesos e medidas, a estabelecer taxas e a cobrar pedágio sobre a passagem de mercadorias por seus domínios, esses direitos são paulatinamente deles retirados e concentrados pela monarquia. Assim como a cunhagem de moeda e a fixação de medidas vão se tornando monopólio do Estado central, também isso ocorre com os pedágios, que continuam a existir, só que agora explorados pela Coroa, como é o caso mais claro da Alcabala na Espanha.

GRESPAN, Jorge. Revolução Francesa e Iluminismo. São Paulo: Contexto, 2012. p. 22-25.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Poder jovem


Jovem oferecendo uma flor para o policial, 1967

Na segunda metade do século XX, a ação da juventude foi marcada por uma palavra: protesto. Manifestando-se individualmente ou em grupo, os jovens contestaram os valores do mundo "adulto", ou seja, as normas, regras e instituições estabelecidas, bem como concepções e comportamentos determinados pela tradição cultural. O protesto jovem ocupava todos os espaços: a casa (família), a escola, as ruas e as praças.

Na década de 1960, o protesto jovem concretizou-se em dois movimentos que, mesmo articulados, tinham características e propósitos diferentes: o movimento estudantil e o movimento hippie. Ambos tiveram origem nos Estados Unidos e estenderam-se a quase todos os países.

A primeira grande manifestação estudantil ocorreu na Universidade de Berkeley (Califórnia), reivindicando a reforma dos cursos e estudos universitários. A movimentação logo se expandiu, e os estudantes passaram a organizar protestos contra a participação norte-americana na guerra do Vietnã.

Foi, porém, em Paris que o movimento estudantil se caracterizou como protesto político, contestando não só a universidade, mas a ordem social geral.

O movimento estudantil de caráter eminentemente político estruturou-se principalmente nos países que viviam sob regimes ditatoriais. A contestação transformou-se em movimentos que organizavam a luta armada. Em todos os lugares a repressão foi arrasadora, e os jovens foram suas principais vítimas.

O movimento hippie, em contrapartida, pregava paz e amor. Representou uma espécie de alternativa para a contestação estudantil, trocando o engajamento político dos estudantes por uma proposta genérica de liberdade. Os hippies não se propunham a mudar o mundo, mas pretendiam viver como bem entendessem.

Nesse sentido, o movimento hippie levava à alienação, ao desligamento das questões sociais que geravam o descontentamento da juventude. No entanto, em relação a valores, visão de mundo e comportamento, era profundamente contestador.

Os hippies criaram uma nova cultura, baseada na vida em comunidades (nas quais a antiga estrutura familiar estava ausente), na produção artesanal, na prática de uma religiosidade esotérica, no cultivo da música que se identificou com a juventude (o rock 'n' roll e todas as suas variantes) e na liberação do sexo, dos sentimentos, das emoções e (o que foi trágico para a juventude) do uso de drogas.

Depois de ter se imposto como uma nova força no mundo, a juventude, a partir de meados da década de 1980, parece ter sofrido um recuo conservador. Líderes estudantis radicais e hippies deram lugar a yuppies, jovens executivos preocupados apenas com o próprio sucesso.

O "poder jovem" tornou-se um componente da sociedade, na medida em que a juventude passou a ser idealizada, tornando-se símbolo e sinônimo de saúde, vitalidade e, principalmente, beleza - um dos mitos mais importantes do século XX. A juventude ficou na moda e tornou-se, ela própria, moda.

Os jovens continuaram formando grupos específicos que os distinguissem da grande massa, mas sem nenhuma proposta de renovação ou mudança. Mais do que formação de grupos, tornou-se comum o aparecimento de gangues, como os punks e os skinheads.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 516-517.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A arte fenícia

Não há uma arte fenícia propriamente dita, mas existem múltiplas obras fabricadas nos portos do Oriente e espalhadas pelo mundo mediterrâneo. Com muita frequência, os artesãos adaptam suas técnicas aos gostos de seus compradores e combinam diferentes influências estéticas. Utilizam motivos à moda egípcia, como o ankh (sinal que representa vida), o uraeus (serpente real) e a esfinge. A influência mesopotâmica encontra-se na representação do deus Baal Hamon e Melqart. O mundo grego fornece aos fenícios os heróis e sua mitologia, como Héracles. Contudo, essa arte cosmopolita não se contenta em plagiar a dos outros povos. Pelo domínio de sua execução, seja com pedra, metal ou marfim, os artistas fenícios produziram obras originais. As numerosas joias encontradas em todo o entorno da bacia mediterrânea testemunham sua habilidade no trabalho do ouro em filigrana ou em granulação. Os fenícios são os grandes especialistas dos objetos de vidro, vasos decorados de faixas coloridas em ziguezague ou pérolas de massa de vidro. Os rostos apresentados aqui mostram realmente as numerosas influências exercidas sobre os artistas fenícios.

SALLES, Catherine. Larousse das civilizações antigas: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse, 2008. p. 104-105.

Galeria de imagens:

Máscara cartaginesa. Cartago, norte da África.

Estátua adornada da deusa Tanit, necrópole de Puig des Molins (século V a.C.), Ibiza, Espanha. O desenho dos olhos e do cabelo atado dessa mulher (deusa) traduz uma influência oriental. O nariz particularmente proeminente é de inspiração local. 

Cabeça de homem barbado, vidro, séculos IV-III a.C. Necrópole de Cartago. 

Detalhe de sarcófago em estilo grego. Cemitério de Antarados, norte do Líbano, 480-450 a.C.

Estatueta de bronze, Biblos.

Dama de Galera. Figura fenícia que provavelmente representa uma divindade oriental, a deusa Astarte. Século VII a.C.

Colar de ouro e contas de cornalina. 
Arte cipriota com inspiração micênica. Ca. 1400-1200 a.C. 
Foto: Jastrow

Máscara de terracota. Os cartagineses colocam junto dos mortos essas máscaras pintadas de vermelho. A boca deformada, os lóbulos das orelhas distendidos e as rugas entalhadas no rosto devem afastar as forças do mal. Cartago (Tunísia, século VII-VI a.C.)

Placa votiva: dedicada por um homem que sofre de dor nos olhos e um pé deformado. Artista desconhecido. Período romano. 
Foto: Jastrow

Cerâmicas púnicas. 
Foto: Sémhur

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Redescoberta da antiga Mesopotâmia

Até o século XIX, o conhecimento da história das sociedades antigas era dado pelos textos greco-romanos. Entretanto, com a conquista político-militar e a exploração econômica realizadas pelo imperialismo do século XIX, os europeus despertaram seu interesse pela região.

Para a redescoberta da antiga Mesopotâmia, as referências bíblicas foram as principais pistas e despertaram grande curiosidade. As primeiras pesquisas foram promovidas por funcionários da Companhia das Índias, importante companhia de comércio do Império Britânico.

Da combinação do interesse científico com a exploração econômica da Ásia Ocidental resultou a assiriologia, nome pelo qual se tornou conhecido o campo de estudo de história antiga dedicado à imensa área que se caracterizou pelo uso dos diferentes tipos de escrita cuneiforme.

Os primeiros resultados arqueológicos positivos foram obtidos em 1812, com a descoberta de Nínive, antiga capital do Império Assírio. Sucederam-se, então, a descoberta da Mesopotâmia, de monumentos e construções da antiga Nínive e da biblioteca particular do rei assírio Assurbanípal (669-631 a.C.), com um acervo de 30 mil tabuinhas de argila com inscrições, que foi desenterrada em 1854.


A escrita cuneiforme é assim chamada porque se usavam cunhas para imprimir sinais em placas ou cilindros de argila que, depois, eram postas para secar. Placa com inscrição sobre cerveja, British Museum, Londres, Inglaterra.


Era preciso entender o que se descobria nas escavações, e para isso era necessário decifrar a escrita cuneiforme. Essa tarefa acelerou-se quando foram encontradas, nas escavações de Kuiundjek (localidade próxima da antiga Nínive), cem tabuinhas, que constituíam um verdadeiro "dicionário", com uma lista de sinais isolados e seus correspondentes significados em escrita alfabética. Para completar, descobriu-se depois uma espécie de "enciclopédia" que continha, em três fileiras, lado a lado, os desenhos de objetos de uso cotidiano e os termos sumerianos e semítico para designá-los. Com esse material o trabalho de decifração avançou, em toda a Europa, de modo que, em 1867, foi publicada a primeira gramática elementar da língua assíria.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 67.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Redescoberta do Egito Antigo

Quando os europeus, na época moderna, começaram a se interessar pelo passado remoto da humanidade, da antiga civilização egípcia havia apenas as imprecisas, fragmentadas e, muitas vezes, incorretas informações gregas e romanas, conhecidas apenas de uns poucos eruditos, e alguns monumentos que as areias do deserto e o tempo haviam poupado.

Grande parte desse passado começou a ser desvendado a partir do século XVIII, quando Napoleão Bonaparte [...] pretendeu conquistar o Egito.

A expedição napoleônica fracassou do ponto de vista militar, mas registrou-se uma grande conquista para a história.

Além de soldados, a expedição, que invadiu o Egito em 1798, levava também cientistas e artistas. Um deles, Vivan Denon, era um excelente desenhista e reproduziu tudo o que viu. O resultado foi uma preciosa coleção de desenhos que retratavam a cultura egípcia em todos os seus aspectos materiais: arquitetura, obras de arte e, principalmente, inscrições em hieróglifos. Essa coleção foi base para a primeira grande obra sobre o Egito - A descrição do Egito -, escrita por integrantes da expedição da expedição e publicada entre 1809 e 1813, dando início à egiptologia - estudo da história egípcia -, um dos mais importantes campos de estudos históricos.

Além disso, membros da expedição napoleônica descobriram a célebre Pedra de Roseta, uma estela com três tipos de inscrições: hieroglífica, escrita egípcia empregada em textos oficiais e religiosos; demótica, escrita egípcia simplificada, de uso popular; e grego antigo, língua conhecida pelos eruditos europeus que serviu de chave para a decifração das outras.


Por força de exigências estabelecidas na Capitulação de Alexandria, ocorrida em 1801, quando a esquadra inglesa derrotou a francesa no Mediterrâneo, a Pedra de Roseta e os demais objetos recolhidos pelos franceses no Egito foram enviados para a Inglaterra e incorporados ao acervo do Museu Britânico. Pedra de Roseta, British Museum, Londres, Inglaterra.


Mas o encontro com a civilização egípcia efetivou-se somente quando foi possível entender sua escrita e sua língua, o que permitiu a comunicação mais explícita e direta com o passado.

O francês Jean François Champollion, trabalhando com uma cópia da inscrição trilíngue da Pedra de Roseta, conseguiu decifrar os hieróglifos egípcios em 1822.

As inscrições em hieróglifo (literalmente, escrita sagrada) - gravadas nos monumentos, principalmente os religiosos (templos e túmulos) e na enorme quantidade de rolos de papiro -, encontradas pelos pesquisadores e reproduzidas nos desenhos de Denon, foram intensamente estudadas por especialistas e curiosos europeus, sobretudo a partir de meados do século XIX.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 50-51.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Descoberta do Mundo Antigo

Os trabalhos de erudição e as pesquisas arqueológicas resultaram em coleções de documentos e objetos que deram origem aos arquivos e museus europeus, os quais se tornaram os mais importantes depositários da cultura antiga.

Os acervos assim formados enriqueceram-se com os resultados das pesquisas arqueológicas, a partir do final do século XVIII e, particularmente, do século XIX em diante, quando às expedições científicas ou artísticas se somaram os butins.


A preservação do mundo antigo se dá, na maioria dos casos, fora deles - nos museus! Os principais museus, os que detêm a maior parte do que restou do mundo antigo, estão na Europa e nos Estados Unidos. O preço da preservação foi uma nova conquista, acompanhada de voracidade de saque. Porta de Ishtar, Museu de Pérgamo, Berlim, Alemanha.


No século XIX os locais das antigas civilizações, agora chamados Oriente Próximo, tornaram-se alvos da expansão militar e político-econômico das nações e impérios europeus. Um dos resultados disso foi um verdadeiro saque ao patrimônio cultural e artístico representado por monumentos e objetos antigos, que foram simplesmente tomados pelos conquistadores.

Os europeus que a partir do Renascimento [...] começaram a ver no passado remoto da humanidade o início da sua própria história, arvoraram-se em salvadores das culturas antigas ameaçadas. Assim, o Ocidente "moderno" apresentou-se como protetor do mundo oriental antigo, "civilizado", enquanto dominava e explorava o mundo oriental atual, "atrasado" e "bárbaro".

Mas, a partir do século XX, com a independência dos países do Oriente Próximo, há uma tendência em manter o patrimônio antigo nos seus locais de origem, seja em museus nacionais, seja nos próprios locais de sua construção. Uns e outros representam ricos espaços para estudos e pesquisas e para o turismo.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 41.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A sujeira nas cidades do Brasil colônia


Rua Direita, Rio de Janeiro, Rugendas

[...]

Em um livro delicioso, o historiador Emanuel Araújo, já revelou que, no Brasil, "a sujeira é um hábito". Na época colonial, as Câmaras ordenavam que os moradores calçassem a testada de suas casas numa largura de cinco palmos para atenuar o efeito das chuvas tropicais que corriam dos beirais dos telhados. Os cuidados contra as copiosas "águas" esbarravam, entretanto, no fato de que o lixo já era atirado, sem cerimônia, à rua por onde andavam, pachorrentamente, os animais domésticos.

Alexandre Ferreira, naturalista e viajante do século XVIII, chegou a registrar que, em algumas cidades da Colônia, as ruas não eram capinadas para "não privar o gado da erva de que se sustentavam". Uma série de determinações aplicadas, então, pelos vereadores, tentava dar conta da relação pouco respeitosa que os moradores tinham com sua cidade.

Em 1625, ordenava-se, em Salvador, que toda a pessoa que tivesse casa nesta cidade, onde se fizessem esterqueiras, as mandasse limpar com pena de 16 mil réis e de se lhe taparem às suas custas, e que toda a pessoa que tivesse casa que botasse cano na rua pública, o tivesse sempre limpo, com a mesma pena; e assim mais varresse suas ruas e as tivesse limpas, com pena de 2 mil réis.

As determinações, segundo Araújo, eram pouco obedecidas ou em definitivo não o eram, pois, em julho de 1692, os vereadores voltavam a reiterar as mesmas ordens de 1625. Chegava-se a pensar que "a malignidade dos ares corruptos" de Salvador devia-se "às imundícies que de noite e de dia" se lançavam nas ruas. Padre Manoel da Nóbrega queixava-se do desprezo dos habitantes, anotando, sisudo: "Não querem bem à terra".

Já o marquês de Lavradio notava em relatório, alguns anos depois, que os pobres escravos desembarcados no Rio de Janeiro andavam pelas ruas "cheios de moléstias e nus [...] e ali mesmo faziam tudo que a natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido [...] mas até sendo o espetáculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos".

Andando pelas ruas de Salvador, entre 1802 e 1803, Thomas Lindley registrava em seu diário que "as ruas são apertadas, estreitas, miseravelmente pavimentadas, nunca estão limpas, apresentando-se sempre repugnantemente imundas". Dez anos depois, outro inglês queixava-se, fleumático, "do aroma penetrante que emana de todas as fendas das ruas" ironizando que, ali, a cloaca se transformara em divindade "e seus devotos mostram-se tão sinceramente seus admiradores que as oferendas nunca são retiradas, exceto sob a influência combinada do sol, do vento e da chuva".

Diferentemente da colonização portuguesa, os holandeses enquanto estiveram em Pernambuco exigiram um comportamento bem diferente dos cidadãos: proibiram desde logo que se jogasse lixo nas ruas, que os animais circulassem à solta, obrigando a varredura das ruas e o aterro destas em caso de alagamento. Algumas ruas de Recife foram pavimentadas com tijolos holandeses e, para não estragar a pavimentação, proibiu-se o tráfego de carros de boi.

Vistas pelo olhar desses argutos observadores, as cidades brasileiras pareciam não ter aprendido as lições que, segundo Gilberto Freyre, teriam sido transmitidas por nossos ancestrais indígenas: o banho frequente que escandilizava o mal-asseado europeu e toda uma liturgia sanitária e profilática que ia do uso higiênico da folha de bananeira à lavagem da rede de algodão no rio.

[...]

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 57-59.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A domesticação do feijão e os primeiros vilarejos na América Central

O nascimento das civilizações é geralmente associado ao cereal que as simboliza: o trigo ao Médio Oriente e à Europa, o arroz à Ásia, o milho à América Central. Não se poderia negar a importância dessa planta alimentadora que, de acordo com múltiplas preparações, ocupa na cozinha um lugar comparável ao trigo na Europa: tortillas, tamales, pozoles, são alguns exemplos dessa riqueza culinária. Numerosos pesquisadores tentaram, com sucesso, determinar as modalidades da domesticação desse cereal. Mas as escavações demonstraram também a presença de outras plantas cultivadas, algumas das quais, como a abóbora, foram domesticadas em datas anteriores (8000 a.C. no vale de Oaxaca).

É graças às espécies complementares, como o pimentão, o abacate, o amaranto, o sapoti branco e preto (árvore frutífera) ou o tomate, que o milho pôde assegurar a base alimentar suficiente para a sedentarização. Além disso, a presença de certas árvores, como o abacateiro ou o sapotizeiro, que necessitam de grande quantidade de água, foi registrada em regiões áridas como o vale de Tehuacán, em épocas anteriores à domesticação do milho. Isso já implica práticas agrícolas elaboradas.

Os primórdios da agricultura na América Central. Desde os primórdios da agricultura, a trilogia alimentar da área mesoamericana - milho, feijão, abóbora - foi objeto de um cuidado particular por parte dos agricultores, e os milpas (campos) permitiam uma exploração simultânea das três plantas. Se as primeiras espigas de milho tinham originalmente alguns centímetros, em poucos séculos atingiram seu tamanho atual. Nesse lapso de tempo, múltiplas variedades de milho e de feijão são criadas pelas sociedades pré-hispânicas. Códice florentino.


Uma exploração organizada dos recursos marinhos, lacustres ou terrestres permite a pequenos grupos ocupar seu território de modo permanente. Outros processos de sedentarização, sem domesticação vegetal, foram também constatados em meios favoráveis, como a costa do Belize e a bacia lacustre do México, onde a sedentarização ocorre entre 5500 e 3500 a.C., bem antes do aparecimento da agricultura.

A passagem para o sedentarismo, com o aparecimento de vilarejos de cinco a dez casas, só é, com efeito, estabelecida por volta de 3000 a.C., em regiões como a bacia do México, o vale de Oaxaca ou a costa do Pacífico de Chiapas. Essa mudança ocorreu pouco depois das primeiras manifestações da domesticação do feijão, por volta de 3500 a.C. O feijão aparece realmente mais tarde, por volta de 2300 a.C., em Tehuacán e, por volta de 2000 a.C., em Oaxaca. A partir do momento em que a trilogia alimentar mesoamericana - milho, feijão, abóbora - está disponível, os homens têm recursos suficientes para se estabelecer. A presença abundante, em certos locais, de mós e almofarizes, objetos frequentemente pesados e difíceis de transportar, confirma o sedentarismo, e as primeiras cerâmicas aparecem, na costa de Guerrero ou em Tehuacán. Por volta de 2300 a.C., por fim, um esboço de estatueta feminina em Zohapilco marca o início da nova etapa de formação das sociedades aldeãs.

Os excedentes agrícolas obtidos pelos camponeses facilitam, com efeito, o desenvolvimento das outras atividades artesanais e permitem o surgimento, dentro de uma sociedade igualitária, de responsáveis religiosos que assumem um papel de dirigentes nas comunidades.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse, 2008. p. 17.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Bossas Novas

Helô Pinheiro, a musa inspiradora de Garota de Ipanema, de Tom Jobim

A euforia desenvolvimentista do governo Kubitschek provocou, além de suas consequências econômicas, novas condições para a criação cultural brasileira. Foi um período fértil para o surgimento das chamadas "vanguardas" artísticas: poesia concreta, neoconcretismo, poesia práxis... E, na música, surgiu um movimento que, já a partir do seu próprio nome, funcionou como uma síntese e um lema dessa época - a bossa nova:

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical.
Eu, mesmo mentindo, devo argumentar
Que isto é bossa nova
Que isto é muito natural.
O que você não sabe, nem sequer pressente,
É que os desafinados também têm um coração
[...]"
(Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça)

Todo esse desenvolvimento, evidentemente, não se processou sem traumas. [...] a inflação e as tensões sociais iriam produzir grandes mudanças no cenário político. Os artistas brasileiros tomaram parte ativíssima em todas essas transformações; e não só como indivíduos, mas também através de sua produção intelectual.

O movimento da bossa nova evoluiu rapidamente na direção da chamada "canção de protesto", que correspondia à poesia engajada ou participante:

Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não.
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor,
Estou pertinho do céu.
(Opinião, de Zé Kéti)

Surgiram também autores que colocavam em suas peças a problemática social urbana (como o caso de um Nelson Rodrigues, que já estreara na década de 40) ou rural (como Jorge Andrade e Dias Gomes). O cinema começava a se firmar: em fins da década de 50 e início da de 60, começaram a aparecer os filmes de diretores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rui Guerra e outros - o "cinema novo".

Todas essas novidades refletiam, no plano da arte, a crise da sociedade e do regime populista. Os artistas assumiam posições muitas vezes meramente doutrinadoras ou paternalistas em relação ao povo que queriam retratar na sua arte. Um jovem dramaturgo - Oduvaldo Viana Filho - dava, por exemplo, a uma de suas peças o título de "A mais-valia vai acabar, Seu Edgar"... Chocavam-se as tendências nacionalistas com as "entreguistas" na política e, na arte, a polêmica refletia, acirrada. A televisão começava a se tornar o grande veículo de massas que é hoje em dia.

Em tudo isso é importante assinalar o papel desempenhado por um grupo que foi dissolvido por força do movimento político-militar de 64: o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Esse grupo representou uma síntese da ideologia populista na área cultural e sua influência estendeu-se até depois da mudança do regime, tanto na música popular (a canção de protesto) como no cinema e na literatura. Na impossibilidade de modificar a realidade através da ação política, essa ideologia acabaria por tomar como um de seus caminhos aquele que foi, depois, chamado ironicamente de "esquerda festiva"...

Com suas diferentes tendências esses intelectuais permanecem participando, de uma maneira ou de outra, na tentativa de dar novos rumos à cultura brasileira. Seja com flores, barquinhos ou violões da bossa nova; seja com amanhãs e liberdades da música de protesto; seja com cangaceiros e marginais do cinema novo:

Dia de luz
Festa de sol
E um barquinho a deslizar
No macio azul do mar
[...]
Sem intenção
Nossa canção
Vai saindo desse mar
[...]
(O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)

Sei
Ninguém deve chorar
Ninguém deve sonhar
Tanta coisa perdida
Sei que esta vida se faz
Só a gente é capaz
De mudar nossa vida
Não sei quanto tempo é preciso esperar
Paz, igualdade, amor, liberdade
Vida que vai nascer
[...]
(Manhã de Liberdade, de Nélson Lins de Barros e Marco Antônio)

- Se entrega, Corisco!
- Eu não me entrego não.
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
[...]
(Perseguição, de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol)

Além do mais, a fusão da arte erudita com a popular é cada vez maior. Poetas "literários" fazem parceria com compositores do povo. E, na prosa de ficção, surgiu nessa época um autor que viria recuperar para a literatura os personagens da marginalidade: João Antônio, com seu livro de contos intitulado Malagueta, Perus e Bacanaço (1962).

ALENCAR, Chico et alli. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 372-374.

domingo, 13 de janeiro de 2013

O controle da Igreja sobre a moda e a beleza feminina na Baixa Idade Média

Moda medieval da nobreza. Livro de Horas do Duque de Berry, cerca de 1410


O ideal de beleza das heroínas medievais, descrito nos romances, era: pele clara, rosto alongado, cabelos louros, boca pequena, olhos azuis e sobrancelhas bem desenhadas.

Com exceção do rosto, as partes do corpo feminino raramente foram descritos. A maioria dos autores omitiu castamente tudo o que se encontrava abaixo do pescoço. Conclui-se, apenas, que os homens do século XII gostavam de mulheres de corpo delgado, linhas delicadas, pernas longas, seio alto e pequeno.

Porém, a mulher que cuidava da aparência era criticada pelos escritores e pregadores da época, que chegavam a afirmar:

Mulher aposta naturalmente na aparência porque se sabe deficitária na substância; a sua tradicional falta de racionalidade e de firmeza leva-a a privilegiar os bens caducos e imperfeitos da exterioridade, incapaz como é de perseguir sozinha os bens perfeitos e duradouros da virtude. (VARAZZE, Tiago. Chronica.)

A dama medieval dos séculos XI e XII foi impelida ao uso de boa roupa porque as transformações econômicas e sociais da época estavam ligadas aos tecidos, que eram mercadoria essencial no comércio europeu e um produto industrial básico nas novas cidades.

O vestuário, portanto, tornou-se uma marca da posição social, como também um meio que possibilitava distinções políticas, o que originou a lei sumptuária, publicada por Filipe, o Belo, em 1294. Essa lei proibia à burguesa a indumentária distintiva da aristocracia e era, na realidade, uma concessão à nobreza ressentida com a proteção régia a essa classe influente e versátil.

As mulheres mostraram-se particularmente vulneráveis à modelação social que o vestuário permitia porque as roupas que lhes eram destinadas simbolizavam os direitos dos maridos sobre elas. Quando rainhas se casavam com estrangeiros, muitas vezes faziam questão de continuar usando a moda de sua terra de origem como que rejeitando ao mesmo tempo um selo conjugal e um selo nacional. Mulheres burguesas que mudavam de vestuário segundo os caprichos da moda ameaçavam desenvolver uma personalidade que desafiava a autoridade dos maridos e enfraquecia a identidade coletiva de uma linhagem.

Outras mulheres, que possuíam convicções espirituais, consideravam que o valor social do vestuário era uma ameaça para a integridade de sua alma, como acreditava uma mãe do século XIII que alertou sua jovem filha sobre o perigo das roupas finas: "Odeia, portanto, bela filha, e despreza, no teu íntimo, as roupas e as elegâncias do mundo, visto que as tens por vezes que usar". (HUGUES, Diane Owen. As modas femininas e o seu controle.)

Outro exemplo é o da esposa de Jacopone da Todi, que, apesar de usar os adornos como símbolo da posição da família, vestia por baixo uma camisa de crina para proteção do seu espírito. Para ela, a camisa de crina constituía um modo secreto de impedir que as marcas coletivas e públicas do vestuário queimassem a sua carne e corrompessem a sua alma. Somente após sua morte, essa sua prática foi descoberta, servindo para conversão de seu esposo.

As mulheres daquela época também gostavam de parecer delgadas; para isso, as damas da nobreza usavam uma comprida camisa de linho, sobre a qual punham um manto guarnecido de pele, muito justo, ao qual acrescentavam uma blusa também justa. Elas usavam cintos cravejados de joias, bolsas de seda e luvas de pelo de camelo. Adornavam de flores os cabelos ou prendiam-nos com fitas de seda cobertas de joias. "Algumas irritavam o clero e, sem dúvida, o marido, com o uso de chapéus altos em forma de cone, enfeitados com chifres. Houve um tempo em que uma mulher ficava sujeita a cair no ridículo se não tivesse chifres no chapéu". (BUTLER, P. Women of medieval France.)

Tronou-se moda nos últimos tempos da Idade Média o uso de sapatos com solas altas. Os moralistas queixavam-se de que as mulheres sempre achavam pretexto para levantar os vestidos uma ou duas polegadas e mostrar os finos tornozelos e os belos sapatos. Também criticavam a maquiagem nas mulheres, afirmando:

A mulher maquiada e vestida com sumptuosidade privilegia, contrariamente à ordem querida por Deus, a vil exteriorização do seu corpo em relação à preciosa interioridade da sua alma; o excessivo agrado que mostra por uma roupa que lhe envolve o corpo, pela cor de um tecido que a valoriza ou por um penteado que lhe fica bem, trai um interesse todo voltado para o cuidado exterior do corpo, que não deixa espaço nem tempo para o cuidado amoroso da virtude. A cosmética, em especial, revela uma soberba sem limites: a mulher que pinta suas faces de vermelho ou que altera a cor dos cabelos ou que esconde os sinais de envelhecimento sob cosméticos e perucas é uma mulher que, a par de Lúcifer, contesta e pretende melhorar a imagem que Deus lhe deu, chegando até a se julgar capaz de intervir nas leis da temporalidade governadas por Ele. (CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia.)

O autor anônimo de um texto do século XIII, denominado Ornatus mulierum (O ornamento das damas), discordando do discurso moralista anterior, afirma que escreveu seu livro para ajudar as mulheres a encontrarem os meios para preservar corretamente os traços físicos e aprender a melhorar a aparência, pois:

[...] quando Deus criou a mulher, deu-lhe a enorme beleza da juventude, mas Eva a perdeu por causa do diabo, depois que comeu a maçã (sic). As damas de sua época, herdeiras do castigo imposto a Eva, continuavam a pagar pelo pecado praticado no Paraíso: quando jovens tinham a pele delicada, clara e rosada, mas perdiam a beleza após o casamento; outras, em nenhum momento da vida gozaram de tal qualidade. (RUELLE, Pierre. (ed.) Ornatus mulierum.)

Para ele, a beleza feminina devia ser valorizada, e não ocultada. Recuperando e mantendo a beleza, a mulher poderia livrar-se da culpa ancestral herdada de Eva. Seu manual de beleza contém 88 indicações de cosméticos e remédios destinados aos cuidados femininos.

[...]

Para os religiosos da Idade Média, o cuidado excessivo com a aparência constituía um grave defeito moral. A vaidade era considerada um defeito que devia ser evitado. Os escritores cristãos, principalmente os vinculados ao clero regular, trabalharam arduamente para restringir a difusão de ideias de valorização dos traços físicos e da aparência.

Tomás de Aquino orientava a tratar o amor ao vestuário como um pecado venial, quando era induzido pela vaidade mais do que pela luxúria; já os pregadores mendicantes posteriores o consideravam um pecado mortal.

Os cardeais elaboraram até algumas leis sobre o comprimento dos vestidos e decretaram que as mulheres deveriam usar véus. Então, elas mandaram fazer véus de musselina e seda muito fina com fios de ouro, com os quais se mostravam mais belas e provocavam ainda mais os olhares dos homens.

Os eclesiásticos tentaram, no século XIII, criar uma categoria visual de honra feminina insistindo no véu como um sinal de mulher convenientemente casada - uma moda expressamente recusada por muitos governos urbanos a prostitutas públicas, que tinham de andar na rua com o rosto descoberto. Essa iniciativa fracassara com a invenção de véus de seda transparente que nada ocultavam e com a de outros véus mais complicados que escondiam demais, dissimulando perigosamente a identidade e o estatuto de uma mulher. (HUGHES, Diane Owen. As modas femininas e o seu controle.)

O monge Guyot de Provins queixava-se de que as mulheres usavam tanta pintura no rosto que nada sobrava depois para colorir as imagens; preveniu-as de que, ao usarem cabelos postiços ou ao aplicarem no rosto cataplasmas de feijões moídos e leite de vaca para melhorar a sua cútis, estariam, com isso, prolongando por muitos séculos o seu sofrimento no purgatório.

[...]

As mulheres laicas viviam debaixo de assídua vigilância e repressão também em relação a seus gestos e movimentos, condenados a fixidez e imobilidade [...].

Além disso, os religiosos condenavam mulheres que dançavam e cantavam, chegando a afirmar: "A mulher que dá início ao canto é a capelã do diabo, e aqueles que a acompanham, os sacerdotes". (VITRY, Tiago de. Ad virgines.)

Recomendações feitas às mulheres, por parte dos leigos, eram menos rígidas, permitindo a dança, mas com compostura, sem deixar, porém, de acrescentar outras normas a serem observadas: não ficar debruçadas na janela ou postadas à porta [...], não se divertir demasiado, não comer muito e mover-se com contenção.

As mulheres de vida secular dispensavam cuidados com sua aparência, apesar de criticadas pelos religiosos, porém as monjas, que eram consideradas quase santas pela vida reclusa e espiritual, tornavam-se mais belas pelo uso de adornos simbólicos [...].

ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina calada pela Inquisição. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 63-72.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

"À espera dos bárbaros"

Regra de ouro, Norman Rockwell

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Konstantínos Kaváfis (1863-1933), poeta grego nascido 
na colônia helênica na cidade egípcia de Alexandria

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A "questão indígena" na América Latina

Camponeses guatemaltecos (1978), foto de Steve Richard

Quanto à questão indígena, podemos falar de duas Américas Latinas: uma habitada por milhões de indígenas, geralmente mestiços, e outra que se construiu com base na quase eliminação destes povos e de suas culturas. Em alguns países, como México, Peru, Guatemala, Paraguai e Bolívia, a presença indígena, através da mestiçagem, é muito grande. No Brasil e nas Antilhas esta situação é quase nula.

* O indígena da América espanhola na época colonial. Quando os espanhóis chegaram à América, encontraram povos em distintos graus de "evolução cultural". [...]

Maias, astecas e incas, por exemplo, eram grandes impérios teocráticos [...].

[...]

Ao lado de maias, incas e astecas, existiam na América espanhola indígenas que viviam ainda na comunidade primitiva, onde a propriedade da terra era coletiva [...].

A princípio, os espanhóis, pura e simplesmente, lançaram-se ao saque dos metais preciosos acumulados pelos indígenas. Ao acabar os estoques, foi necessário organizar a produção, e os espanhóis passaram a utilizar a mão-de-obra nativa, sob várias formas de trabalho compulsório, como a mita e a encomienda.

A absorção da mão-de-obra indígena foi facilitada naquelas regiões, onde as comunidades já produziam um excedente para os seus senhores: incas, maias e astecas. Nos locais onde as populações indígenas não estavam acostumadas ao trabalho compulsório, foi mais difícil aos conquistadores organizar o sistema produtivo. As populações indígenas dessas regiões, para fugir ao trabalho compulsório, deslocavam-se cada vez mais para o interior.

Era violenta a exploração do excedente que os indígenas produziam. Do seu trabalho excedente sustentavam-se os encomenderos, mineradores coloniais, companhias monopolizadoras do comércio, burocracia estatal, além da burocracia da Igreja católica.

O rei Filipe II, da Espanha, dá-nos uma ideia da exploração da mão-de-obra indígena. Em 1581, esse monarca afirmou que um terço dos indígenas da América já haviam sido exterminados e que os vivos eram obrigados a pagar pelos mortos. Em outras palavras: os sobreviventes foram mais explorados para compensar a lacuna dos mortos.

A própria Coroa espanhola, preocupada com a extinção brutal da mão-de-obra nativa, começou a legislar sobre o assunto: surgiram as Leis das Índias, que protegiam a organização comunitária da propriedade e do trabalho indígena. Mas essas leis ficaram apenas no papel. A prática do sistema colonial espanhol encarregou-se de destruir a eficácia delas: o encomendero era o encarregado de cobrar os tributos das comunidades e de cristianizar os indígenas. Mas na realidade era um proprietário de terras e de vidas, que dispunha dos indígenas da forma que bem entendesse. Quando estes morriam ou se ausentavam, o encomendero apossava-se legal ou ilegalmente de suas terras. As propriedades comunais transformavam-se em imensos latifúndios de propriedade individual, cultivados pelos indígenas como se fossem servos medievais.

As Leis das Índias também acabaram proibindo o trabalho forçado dos indígenas nas minas (mita). Mas as leis foram feitas para não serem cumpridas, pois admitiam o trabalho forçado dos indígenas, caso declinasse a produção. E a mita continuou existindo e matando milhares e milhares de indígenas.

As Leis das Índias, mais tarde, também passaram a admitir - só formalmente - a igualdade de direitos entre indígenas e espanhóis na exploração das minas. Na verdade, os espanhóis e seus descendentes continuaram sendo os proprietários, e os indígenas os trabalhadores forçados [...].

A exploração dos indígenas era justificada pela própria Igreja católica. No dizer dos teólogos, os índios eram inocentes crianças que deveriam ser levados à fé cristã. Portanto, era benéfica a atuação dos encomenderos, que,  explorando o trabalho excedente das comunidades indígenas, estavam encarregados de cristianizá-los. Mas, em determinadas regiões do império espanhol como no atual Paraguai, a Companhia de Jesus passou a assumir a defesa direta dos indígenas contra os encomenderos. Nesses casos, mantendo a estrutura comunitária das aldeias indígenas, a própria Companhia encarregou-se da organização da produção, da extração do excedente econômico e da cristianização dos gentios.

Mas não foi apenas a Igreja que via preconceituosamente o indígena. Mesmo os iluministas do século XVIII, pensadores mais revolucionários da época, também tinham uma visão preconceituosa em relação aos indígenas. Para Voltaire, "A América era habitada por índios preguiçosos e estúpidos", Montesquieu recusava-se a reconhecer no indígena um seu semelhante. Até Rousseau não viu no indígena mais do que o bom selvagem que a sociedade não havia corrompido.

* Os indígenas da América espanhola e a independência. [...] ocorreram muitas revoltas de indígenas e mestiços contra o domínio espanhol. Só que esses movimentos não eram dirigidos apenas contra o monopólio espanhol sobre o comércio exterior das colônias; opunham-se, também, à apropriação das terras comunais pelos grandes proprietários, à encomienda e à mita. Por isso, não tiveram apoio dos aristocratas criollos, que se beneficiavam dessa estrutura econômica. Sem apoio nenhum das camadas dominantes, os rebeldes foram dominados pelo exército espanhol.

Os criollos na luta pela independência, contra peninsulares e sistema colonial espanhol, lideraram um exército composto de indígenas e mestiços, a quem fizeram inúmeras promessas, que quase sempre esqueceram.

Após a independência, em vários países latino-americanos, as aristocracias dominantes dividiram-se em conservadores e liberais. Estes criaram sociedades modernas, isto é, romperam com a tradição colonial. Para isso, desapropriaram terras da Igreja e liquidaram com as terras comunais dos indígenas. Estes passaram a proprietários individuais da terra. Puderam vender individualmente seus lotes. O fim da tradição comunitária - a propriedade coletiva da terra - desmontou a estrutura social dos indígenas, pois a propriedade individual era fato demasiadamente estranho à sua tradição de vida. Desamparados perante a nova cultura, sem a proteção, bem ou mal, das Leis das Índias e da Igreja católica, os indígenas venderam suas terras individuais para um grupo de especuladores que surgiu com a independência. Sem o amparo da comunidade, sem terras, tornaram-se mão-de-obra - em condições quase servis - peões, nas grandes fazendas.

Em outras regiões do antigo império espanhol, como o Vice-reino do Prata, os indígenas de caçadores passaram a ser caçados. Na metade do século XIX, aumentaram-se as exportações de couro e charque da região. Surgiram grandes estâncias capitalistas, onde o gado era criado cercado. Os indígenas, acostumados a caçar o gado que vivia solto pelos pampas (campinas), começaram a atacar as estâncias, e os grandes proprietários rurais, com suas tropas de gaúchos (mamelucos), passaram a exterminá-los.

* Os indígenas da atual América espanhola. A conquista espanhola reduziu violentamente as populações indígenas e, pela colonização, praticamente liquidou seus valores, seus mitos e ritos. Morreram os antigos valores que integravam toda a organização cultural, social e econômica dos nativos. Foi dessa maneira que os primitivos habitantes da América entraram em contato com os europeus: a sociedade colonial procurou integrá-los, colocando-os no nível mais baixo da organização social, forçando-os a produzir os excedentes comercializáveis no mercado externo.

As tribos ou grupos indígenas que não fugiram para o interior entraram em convívio forçado com a cultura europeia, e tornaram-se marginais. Nem adquiriram padrões culturais dos colonizadores, nem reconstruíram os seus. Adotaram a língua e a religião do colonizador, mas mantiveram seus dialetos e alguns de seus mitos. Com a independência, os indígenas ficaram excluídos da sociedade nacional que se formava.

[...]

Na região da Cordilheira dos Andes, os problemas econômico-sociais dos indígenas assemelham-se aos dos camponeses do chamado Terceiro Mundo. Camponeses pobres ou trabalhadores rurais mal pagos transformam-se em operários nas minas, quando afluem às cidades. [...]

[...]

Nos últimos tempos, as forças de esquerda incentivam, sem sucesso, o levante armado dos camponeses indígenas. No Peru e na Bolívia, por exemplo, camponeses e mineiros de origem indígena estão se politizando e lutando por seus direitos; enquanto no Paraguai, até há pouco tempo, havia extermínio organizado dos "indígenas bravios".

No Peru, conseguiu-se integrar parcialmente os indígenas à política. O presidente Alvarado, após a revolução de 1968, realizou o chamado Plano Tupac Amaru, que consistiu em reforma agrária e reabilitação da cultura e da língua quíchua, o que é muito importante num país que reprimiu sistematicamente a cultura indígena, desde os tempos coloniais.

[...]

O México, da mesma forma que o Peru, conseguiu uma integração política parcial de sua população indígena, em decorrência da revolução de 1910, que, destruindo o poder da oligarquia rural, restaurou algo assemelhado à comunidade indígena: o ejido. O México, juntamente com Paraguai e Peru, é um país cuja vida cultural sofre grande influência indígena.

[América Central] A presença do índio, pelo menos na parte continental, é pequena numericamente; mas sua influência cultural é forte, devido à grande mestiçagem aí existente. O país, dessa região, cuja presença indígena é mais forte, é a Guatemala. Lá, oitenta por cento de sua população são formados de camponeses: indígenas ou mestiços; este pequeno país é praticamente propriedade de uma empresa norte-americana - a United Fruit -, que controla grandes latifúndios, estradas de ferro, as telecomunicações etc. Os indígenas e mestiços, mesmo quando são minifundiários, trabalham como peões, a baixo salários, para os latifúndios da United Fruit ou das oligarquias locais. Praticamente, toda a população de índios e mestiços é composta de analfabetos. Esta população é tão pobre que nem sapatos usa. Um quarto das crianças indígenas e mestiças morre antes de completar um ano de vida. Nas Antilhas (ilhas da América Central), a população indígena foi praticamente exterminada à época da colonização e foi substituída por escravos negros. A influência indígena aí é quase inexistente.

A Argentina era habitada essencialmente por mestiços (os gaúchos), até o final do século XIX. A partir daí, com as grandes imigrações de europeus, tornou-se um país predominantemente branco (86%). A influência do elemento indígena é quase nula neste país. Apenas no norte da Argentina, próximo ao Paraguai, existe um pequeno número de indígenas e mestiços. No Uruguai, da mesma forma que na Argentina, a população branca substituiu os mestiços, a partir do final do século XIX.

* Os indígenas da América portuguesa à época da colonização. Segundo Lévi-Strauss, à época da colonização, mais de 2 milhões de índios viviam no Brasil, em tribos nômades, no estágio de desenvolvimento social, que chamamos de comunidade primitiva. [...]

Os primeiros contatos entre indígenas e portugueses foram amistosos. Durante trinta anos, após o descobrimento do Brasil, os portugueses preocuparam-se com o comércio de especiarias do Oriente. O único produto brasileiro que tinha algum valor econômico na Europa era o pau-brasil, utilizado na indústria de tinturas. Os portugueses não necessitavam de terras, portanto não havia motivos para conflitos com os indígenas. Em troca de produtos europeus, os indígenas forneciam alimentos e pau-brasil aos portugueses.

Essa situação transformou-se com a necessidade de colonização, que implicava povoamento e montagem de um sistema produtivo permanente. Era necessário ocupar as terras e forçar os indígenas ao trabalho escravo. Apesar da proteção mais formal que real da Coroa portuguesa e da Companhia de Jesus, as populações indígenas foram exterminadas, nas regiões litorâneas, onde se desenvolveu a economia de plantation. A escravidão e a destribalização levaram à destruição física e espiritual dos indígenas.

Logo, este elemento foi substituído pelo escravo negro. Muitos historiadores explicam essa substituição pela ineficiência do trabalhador indígena em relação ao trabalhador negro; argumentam-se que à mão-de-obra negra era dedicado melhor tratamento que a mão-de-obra indígena, pois esta era mais barata e muito mais fácil de ser apreendida. Por essa razão, o indígena morria logo, ou fugia quando submetido à escravidão.

Um motivo, que talvez explique o mito da indolência do indígena, no Brasil colônia, era o interesse dos traficantes de escravos negros. Para estes, fossem portugueses ou ingleses etc., o tráfico negreiro era uma fonte altamente rendosa de acumulação de capital. E não só os traficantes, mas também a Coroa era beneficiária do comércio negreiro.

O indígena, não utilizado como mão-de-obra escrava na plantation açucareira, continuo sendo escravizado. Nas regiões de economia de subsistência, como São Vicente, tornava-se proibitiva a importação de escravos negros, devido ao preço. Os mamelucos vicentinos dedicavam-se então à caça de indígenas, para servir de mão-de-obra escrava naquela região. Quando os holandeses tomaram Pernambuco, ocuparam também as regiões produtoras de escravos da África. Estes escravos não eram fornecidos às capitanias produtoras de açúcar, pertencentes a Portugal e Espanha.  Então, iniciou-se um lucrativo comércio de mão-de-obra indígena do Sul para o Norte e Nordeste.

* Os indígenas no Brasil atual. Ao contrário da América espanhola, a mão-de-obra indígena não foi fundamental para o colonialismo europeu e nem para a sociedade nacional que emergiu da independência. À medida que a sociedade nacional se desenvolvia, os indígenas tinham duas alternativas: ou fugir para as florestas ou perecer. E à medida que fugiam para o interior, a sociedade nacional, no seu desenvolvimento, os seguia. A cada avanço desta, os indígenas iam para regiões mais inabitáveis.

No final do século XIX, a Amazônia conheceu um grande desenvolvimento da produção e comercialização do látex. Levas de nordestinos migraram para a Amazônia. As frentes pioneiras entraram em contato com os indígenas. As doenças e os atritos entre pioneiros e indígenas dizimaram ainda mais aquelas populações.

Em 1911, Cândido Rondon fundou o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) para proteger os indígenas. O índio era visto, pela legislação brasileira, como incapaz e tutelado pelo Estado, e essa tutela era feita pelo SPI. Durante muitos anos esse organismo desserviu aos indígenas. Os funcionários vendiam as terras que a União havia mantido como propriedade indígena. Os compradores destas, através de atos criminosos, procuravam expulsar as tribos que aí habitavam.

No ano de 1968, o general Alburquerque Lima, Ministro do Interior, a quem o SPI estava subordinado, abriu um inquérito e afastou dezenas de funcionários acusados de corrupção.

Para substituir este órgão, foi criada a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), cuja política é a integração do indígena à sociedade nacional. Ela é responsável pelos postos indígenas no Brasil.

Desses postos, o único em que os indígenas tinham um habitat mais ou menos natural era o Parque Nacional do Xingu, dirigido pelos irmãos Villas Boas, que são contrários à política de integração do indígena à FUNAI.

A integração indígena à sociedade nacional está colocada no Estatuto do Indígena, onde se diz que a política do governo é a preparação das comunidades para a integração. Esta integração será feita "quando as comunidades estiverem em condições de comercializar a sua produção e auferir lucros". Em outras palavras: os indígenas serão integrados, segundo a perspectiva capitalista da sociedade nacional. Mas a destruição das culturas indígenas marginaliza os indivíduos pertencentes a essas culturas. É o caso de indígenas já integrados, que vivem na periferia das cidades, vendendo artesanato e se embriagando.

A solução para o problema indígena é difícil. [...] Os pioneiros e frentes de expansão agrícola avançam sobre as terras dos índios e atrás deles vão as grandes fazendas, mineradoras etc. Atualmente, as reservas indígenas são cortadas por estradas, e ocupadas por imensas fazendas e minas, sob a alegação de que "O índio não pode atrasar o desenvolvimento" do país.

A propriedade do índio é inviolável e este é tutelado. Eis a grande contradição: o capitalismo precisa expandir-se por todas as áreas, mas as terras dos indígenas estão garantidas pela Constituição, e nelas não é permitido estabelecer empresas privadas. [...]

CÁCERES, Florival. História da América. São Paulo: Moderna, 1986. p. 201-208.