"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 31 de agosto de 2014

Atividades produtivas no mundo antigo oriental

A base da economia era, então, a agricultura e a criação de animais. No entanto, em algumas épocas, houve conflitos entre as duas atividades, representados pelo choque entre grupos pastores - povos ainda nômades - e os agricultores - povos sedentários. Muitas vezes, as inúmeras invasões sofridas pelos reinos organizados eram resultado desse processo.

Nas cidades, geralmente sob o controle de templos e palácios, desenvolvia-se o artesanato, destacando-se a cerâmica, a tecelagem e o trabalho com metais e pedras preciosas como os setores mais importantes, que cresciam desde longa data.

O artesanato de luxo, produzindo jóias, tecidos finos e ricos, era praticado principalmente na região Sírio-Palestina e particularmente entre os fenícios, que eram também os principais fornecedores para os grandes reinos e impérios.

No decorrer do I milênio a.C., generalizou-se a metalurgia, principalmente a do ferro, que conferiu aos povos que a dominavam uma extraordinária superioridade bélica, em virtude da produção de armas muito mais resistentes do que as feitas de bronze ou pedras. A utilização do ferro para o fim militar parece ter sido iniciada pelos hititas e, mais tarde, largamente utilizada pelos assírios.

Além das atividades produtivas, agropastoril e manufatureira, havia o comércio, outra atividade tipicamente urbana e controlada pelo Estado.

A vinculação entre o comércio e o governo teve seu ponto alto nos reinos semitas da região Síria-Palestina. Os reis eram, antes de tudo, grandes mercadores. O rei Salomão, dos hebreus, é o exemplo clássico.

Os maiores comerciantes da Antiguidade foram, porém, os fenícios, que eram os grandes navegadores do mundo antigo. Eles faziam um comércio verdadeiramente mundial (no contexto da Antiguidade), na medida em que integravam, pela navegação, toda a orla mediterrânea e traziam para os seus portos os produtos e as matérias-primas existentes nos mais diferentes lugares, inclusive grande quantidade de escravos. As cidades fenícias podiam, assim, suprir todo o restante da Ásia e até mesmo o Egito.


Transporte de cedro do Líbano. Baixo-relevo do Palácio de Sargão II, ca. 713-716 a.C., Dur Sharrukin , Assíria

Enquanto os fenícios se destacavam no mar, os arameus eram os grandes distribuidores terrestres. O comércio terrestre de longa distância foi beneficiado pela montagem dos grandes impérios, que construíram extensas vias de comunicação (estradas). Além disso, criaram formas de organização e controle (inclusive defesa contra salteadores) das grandes rotas e caravanas, capazes de transportar as mercadorias para os lugares mais distantes, até mesmo para a Índia ou a China, conforme comprovam escavações mais recentes. No Império Persa, por exemplo, foram construídas estradas, como a que ligava Sardes, na Lídia, a Susa, no Elam, com cerca de 2400 km de extensão.


Ataque assírio a uma cidade com arqueiros e um aríete com rodas. Baixo-relevo do Palácio de Nimrud, ca. 865-860 a.C.

Nos grandes impérios, a própria guerra era, muitas vezes, mais uma empresa comercial do que política ou militar. Algumas campanhas eram levadas a efeito tendo em vista os espólios (saques) de guerra. A conquista militar era também uma conquista econômica, representada pelo confisco dos bens e das propriedades das populações dominadas. Prisioneiros eram transformados em escravos e havia sempre a imposição de tributos, que os povos conquistados, ou seus soberanos, deveriam pagar periodicamente sob a forma de presentes aos conquistadores.


Representação de Hoshea, rei de Israel, pagando tributo ao rei Shalmaneser III da Assíria (2 Reis 17:3). Obelisco negro de Shalmaneser III de Nimrud, ca. 827 a.C. 
Foto: Steven G. Johnson

De certo modo, a guerra substituía o comércio e era a forma, por excelência, de expropriação de riquezas. A formação de um Império Assírio, rico e poderoso, por exemplo, foi o resultado e não a motivação inicial das guerras.

A guerra também tinha um sentido econômico na medida em que beneficiava a classe dos militares: os soldados, além de receberem parte do saque, passaram a ser recompensados com a propriedade da terra e de escravos. Além disso, muitos militares passaram a integrar os privilegiados quadros de altos funcionários do governo.

Mas mesmo o comércio, propriamente dito, era vinculado ao Estado.

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 77-78.


NOTA: O texto "Atividades produtivas no mundo antigo oriental" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Os gladiadores e os cocheiros de circo

Este afresco ilustra um fato diverso ocorrido em Pompeia no ano 59. Durante um combate de gladiadores, uma rixa eclode nas arquibancadas entre os habitantes de Pompeia e os de Nucera, cidade vizinha. O pintor mostrou os "torcedores" brigando no anfiteatro e nas ruas. Afresco do século I d.C.

A paixão desenfreada dos romanos, de todas as classes, pelos jogos do circo e do anfiteatro, se exprime na multidão de objetos decorativos ou utilitários, de pinturas e de mosaicos que possuem. Nos interiores mais modestos, lamparinas de terracota, taças, pratos são gravados com cenas de combate. Nas casas aristocráticas, afrescos murais ou mosaicos ilustram também as competições do circo e do anfiteatro. Com muita freqüência, os cocheiros e os gladiadores são identificados por seus nomes. Mesmo os cavalos da corrida, cuja celebridade iguala a de seus condutores, se tornam os temas principais dos mosaicos. No circo, apostas são feitas nas parelhas que correm para facções ou cavalariças, levando cores diferentes: os Azuis, os Verdes, os Vermelhos e os Brancos. Quanto aos gladiadores, embora sejam, em sua maioria, escravos ou condenados à morte, suscitam verdadeiras paixões entre as mulheres – plebéias ou aristocráticas – como entre os homens que assistem a suas proezas. Os poetas, bem como as pinturas de Pompeia, dão múltiplos exemplos a respeito.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas 3: Das Bacanais a Ravena (o Império Romano do Ocidente). São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 292.

Galeria de imagens:


Combate entre um reciário e um secutor. Este mosaico, feito com muito cuidado, de uma mansão romana situada na Germânia, representa uma das fases de um combate de gladiadores. No centro, o árbitro, usando túnica clara, julga a regularidade dos golpes. À direita, um secutor (tipo de gladiador) se protege com um longo escudo retangular. Usa caneleiras reforçadas com placas de metal e uma braceira eriçada com peças metálicas. À esquerda, um reciário (gladiador que busca prender seu opositor em uma rede) quase nu ataca com seu tridente. Somente uma ombreira protege a base de seu pescoço e ele usa - em princípio - enrolada em torno de seu braço sua rede, no entanto, esta aqui se parece à braçadeira do secutor. Foi um erro do artista? Detalhe do pavimento de mosaico da mansão romana de Nennig (Sarre), século II d.C.

Um retiarius ataca seu oponente caído, um secutor, com um punhal. Cena de um mosaico da Villa Borghese. Ca 320 d.C.

Gladiador. Detalhe do mosaico da Villa Borghese. 

Mosaico mostrando um retiarius (gladiador com rede) chamado Kalendio lutando com um secutor chamado Astíanax. O secutor é coberto na rede do reciário, mas parece não ser prejudicado. Na parte de cima Kalendio está no chão, ferido e pega sua adaga para se render. Os funcionários da arena aguardam seu destino. A inscrição mostra o sinal para "nulo" e o nome de Kalendio, implicando que ele foi morto. Século IV d.C.

Parte do mosaico Zliten da Líbia (Leptis Magna), século II d.C. Ele mostra (da esquerda para a direita) um trácio lutando com um murmillo, um hoplomachus em pé com outro murmillo (que está sinalizando sua derrota para o árbitro) e um par correspondente.

sábado, 23 de agosto de 2014

As mudanças no cotidiano na época da Revolução Francesa

Os amotinados de Fouesnant presos pela Guarda Nacional de Quimper em 1792, Jules Girardet

A revolução que provocou mudanças políticas, econômicas e sociais na França também modificou bastante o dia a dia dos franceses. Grande parte do tempo passou a ser dedicado aos debates políticos. Muitas vezes as discussões sobre assuntos políticos se estendiam até a noite. Para garantir a continuidade da discussão, os revolucionários não voltavam para casa. Eles se dirigiam aos cafés, onde continuavam a debater sobre os problemas do governo revolucionário.

Somente ao chegar em casa faziam a principal refeição do dia. Assim, o jantar - antes servido à tarde - passou a ocorrer cada vez mais tarde, quase sempre à noite.

Outra modificação nos costumes propiciada pela revolução foi a participação das mulheres nas discussões políticas. Na fase inicial, muitas mulheres participaram ativamente da revolução. Em pé de igualdade com os homens, estavam presentes nas jornadas militares, manifestações, debates políticos e festas, especialmente no período de maior radicalização da revolução.


Batalha de Torfou: as mulheres de Tiffauges barram o caminho Vendéens aos amedrontados Mayençais conduzidos por Kleber, Alfred de Chasteignier

Os camponeses em geral mantiveram seus antigos hábitos e costumes, apesar das mudanças revolucionárias que lhes garantiram a posse da terra e a abolição das obrigações feudais. No entanto, o calendário foi alterado pela Convenção e as antigas festas camponeses, como o agradecimento pela colheita e o plantio de árvores em maio, tiveram suas características modificadas. Rituais e símbolos introduzidos pela revolução substituíram os anteriores, de influência católica. A árvore passou a representar a liberdade e a tradicional fogueira era vista como uma queima dos vestígios do Antigo Regime.

Também foram introduzidas mudanças no vestuário de muitos dos franceses. Os participantes mais ativos das jornadas revolucionárias se distinguiam pelo uso frequente de uma espécie de gorro vermelho. Também chamado de barrete frígio, ele era considerado um símbolo da República e do apego à liberdade. O hábito de usar perucas semelhantes às da nobreza foi abandonado por muitos dos revolucionários.

As roupas das mulheres também passaram por mudanças, com o abandono dos vestidos armados e a adoção de longas túnicas que imitavam as vestimentas da Antiguidade grega e romana.

Os novos costumes introduzidos pela revolução afetaram ainda a organização familiar. Houve certa diminuição do poder dos pais sobre seus filhos, pois o governo revolucionário procurava educar desde cedo as crianças nos valores revolucionários. Essa educação era realizada nas escolas, criadas em grande número nesse período.

No entanto, a principal intervenção do governo revolucionário na vida familiar dos franceses daquele período foi a instituição do casamento civil. A cerimônia de casamento passou a ser realizada por um funcionário do Estado, e não mais pelos membros do clero. Além disso, foi bastante ampliado o direito ao divórcio, permitido em casos de insanidade, crimes, agressões físicas, abandono por mais de dois anos ou emigração de um dos cônjuges.

DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 46.


NOTA: O texto "As mudanças no cotidiano na época da Revolução Francesa" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Homero, o modelador do espírito grego

Safo canta para Homero, Charles Nicolas Rafael Lafond 

Durante o século VIII a.C., logo após a Idade das Trevas, viveu o poeta Homero. Suas grandes epopéias, a Ilíada e a Odisséia, ajudaram a moldar o espírito e a religião dos gregos. Homero foi quem primeiro modelou a mentalidade e o caráter dos gregos. Séculos a fio, a juventude grega cresceu recitando os poemas homéricos e admirando seus heróis, que lutavam pela honra e enfrentavam o sofrimento e a morte com coragem.

Homero foi um gênio poético, capaz de desvendar, em poucos e brilhantes versos, os mais profundos pensamentos, sentimentos e conflitos humanos. Os personagens criados por ele, complexos em seus motivos e manifestando emoções humanas poderosas – como ira, vingança, culpa, remorso, compaixão e amor -, iriam intrigar e inspirar os escritores ocidentais até o século XX.


Estatueta de Homero. Terracota. Necrópole de Contrada Diana, Lipari. Século III a.C. 
Foto: Jastrow

A Ilíada narra, de forma poética, um pequeno episódio do último ano da guerra de Tróia, ocorrida séculos antes da época de Homero, durante o período micênico. O tema de Homero é a ira de Aquiles. Ao despojar “o rápido e excelente” Aquiles do seu justo prêmio (a jovem prisioneira Briseida), o rei Agamenon ofendeu seriamente a honra de Aquiles e violou o preceito solene de que aos heróis de guerra deviriam tratar-se com respeito. Com o orgulho ferido, Aquiles recusa-se a lutar ao lado de Agamenon na batalha contra Tróia. Aquiles intenta preservar sua honra demonstrando que os gregos não podem prescindir do seu valor e da sua bravura militar. Somente depois que muitos bravos homens são assassinados, entre eles seu dileto amigo Pátroclo, Aquiles deixa de lado sua rixa com Agamenon e entra no combate.

Homero utiliza um acontecimento particular, a disputa entre um Agamenon arrogante e um Aquiles vingativo, para demonstrar uma lei universal – que a “perversa arrogância” e a “ruinosa cólera” serão causa de muito sofrimento e morte. Homero demonstra que há uma lógica interna na existência humana. Para Homero, afirma o classicista britânico H. D. F. Kitto, “a toda ação corresponde uma conseqüência; uma ação mal avaliada acarreta maus resultados”. As ações das pessoas, e mesmo dos deuses, obedecem a certo padrão fixo; seus feitos estão subordinados aos desígnios do destino ou da necessidade. Com a visão de um poeta, Homero compreendeu aquilo que se tornaria uma atitude fundamental da mente grega: a existência de uma ordem universal para as coisas. Os gregos mais tarde a formulariam em termos filosóficos e científicos.


Apoteose de Homero, Jean Auguste Dominique Ingres

Em Homero encontramos também a origem do ideal grego de areté, excelência. O guerreiro homérico expressa um desejo ardente de afirmar-se, de demonstrar seu valor, de alcançar a glória que os poetas imortalizariam em seus cantos. No mundo aristocrático e guerreiro de Homero, a excelência era interpretada principalmente como bravura e habilidade na batalha. Vemos também na descrição de Homero o germe de uma concepção mais ampla da excelência humana: a que une o pensamento à ação. Um homem de real valor, diz o sábio Fênix ao renitente Aquiles, é “hábil no falar e destro nas ações”. Nessa passagem encontramos a primeira afirmação do ideal grego de educação – a formação de um homem que, afirma o classicista Werner Jaeger, “uniu a nobreza da ação à nobreza da mente”, que compreendeu “todas as potencialidades humanas”. Desse modo, encontram-se em Homero as origens do humanismo grego – a preocupação com o homem e suas realizações.

As obras de Homero são essencialmente uma expressão da imaginação poética e do pensamento mítico. No entanto, na sua visão da ordem eterna da natureza e na sua concepção do indivíduo em luta pela existência, estão os fundamentos da maneira de ver grega.

Embora Homero não tenha atribuído qualquer significação teológica a sua poesia, o tratamento que conferiu aos deuses teve importantes implicações religiosas para os gregos. Com o correr do tempo, suas epopéias formaram a base da religião olímpica, aceita em toda a Grécia. Afirmava-se que os principais deuses moravam no monte Olimpo, em cujo cume se situava o palácio de Zeus, a divindade mais importante. A vida cotidiana dos gregos estava impregnada de religião. Com o correr do tempo, porém, a religião tradicional seria desafiada e enfraquecida por um crescente espírito secular e racional.


PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 45-47.


NOTA: O texto "Homero, o modelador do espírito grego" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 16 de agosto de 2014

Salvador na época do levante dos Malês

Uma rua da Bahia. Litografia de François-Auguste Biard, 1862.

Nas primeiras décadas do século XIX, os negros eram os senhores das ruas de Salvador, capital da província da Bahia. Veja um quadro com estimativa da população de Salvador em 1835, ano da grande Revolta dos Malês.

Estimativa da população de Salvador em 1835

Origem
Números Absolutos
%
Africanos
- Escravos
- Libertos
Brasileiros/europeus
- Livres brancos
- Livres e libertos (negros/mestiços)
- Escravos

17.325
  4.615

18.500
14.885

10.175

  26,5
    7,1

  28,2
  22,7

  15,5
Total
65.500
100,0

Fonte: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986. p.16.

Escravos e libertos trabalhavam como artesãos, alfaiates, vendedoras ambulantes, lavadeiras, barbeiros, músicos, pedreiros, carpinteiros, carregadores de água, de mercadorias e de cadeiras de arruar, que transportavam pessoas. A grande maioria, porém, era composta de escravos de ganho, isto é, escravos que eram obrigados a entregar ao seu senhor, por dia ou por semana, uma quantia previamente determinada, que obtinham com seu trabalho. Na maioria das vezes os senhores respeitavam o acerto e o escravo podia ficar com o excedente. Eles costumavam se agrupar por etnia em locais específicos da cidade chamados cantos.

Nesse sistema, o escravo tinha certa autonomia, pois podia decidir onde, como e com quem trabalhar; ainda que tivesse o que prestar contas ao senhor. Com isso, alguns só apareciam nas casas dos seus proprietários no momento de prestar contas. Em contrapartida, esse escravo tornava-se responsável pelo próprio sustento, pagando por sua comida e vestuário.

Os escravos ocupavam o porão do sobrado dos senhores, onde dormiam amontoados. Eram locais escuros e com pouca ventilação, sem nenhum tipo de separação, ou seja, não havia privacidade. Não havia móveis e todos dormiam em esteiras estendidas no chão. Geralmente possuíam um caixote para guardar seus pertences - roupas, instrumentos de trabalho, amuletos, dinheiro. Alguns escravos conseguiam alugar espaços que ocupavam apenas durante o dia, retornando à noite para a casa do senhor.

Os que recebiam autorização do senhor para morar fora alugavam espaços nos quartos de libertos conhecidos. Os que conseguiam melhores ganhos alugavam quartos individuais, em busca de privacidade e da possibilidade de formar uma família. Há poucos registros da existência de filhos, mas os pesquisadores apontam que os escravos estabeleciam laços de solidariedade e parentesco constituindo formas diferentes de família.

As ruas da cidade não eram apenas seu espaço de trabalho. Após o cumprimento das tarefas cotidianas, eles se reuniam para cantos, danças, jogos de capoeira e batuques. Outras vezes, divertiam-se frequentando botequins, tabernas e casas de calundus. Possivelmente, nesses locais, tanto quanto nos cantos, foram iniciadas as discussões e a gestação da maior revolta de escravos do século XIX, a revolta dos Malês.

DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 183.

NOTA: O texto "Salvador na época do levante dos Malês" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Cotidiano e violência no Oeste dos Estados Unidos

Riso mata solitário, Charles Marion Russell

As pessoas que migraram para o oeste dos Estados Unidos buscavam novas oportunidades, mas, em geral, o que encontravam era uma uma dura rotina de trabalho. Dedicavam-se a atividades como agricultura, pecuária ou mineração. Em qualquer dessas atividades executavam tarefas pesadas, por não disporem de máquinas e instrumentos e pela necessidade de sobreviver em um ambiente natural muitas vezes árido e inexplorado.


Fumaça de uma 45, Charles Marion Russell

A maioria vivia em casas feitas de toras de madeira ou de torrões de terra amassada. Internamente, peles de animais ou cobertores separavam os cômodos. Eram casas insalubres, sujeitas a ataques de insetos que transmitiam diversas doenças, o que causava constante preocupação, pois praticamente não havia médicos nessa área. Assim, eram comuns doenças como a pneumonia, a tuberculose, a malária e as epidemias de cólera e varíola, que se alastravam facilmente.


Problemas no Camp Cook, Charles Marion Russell

Outra preocupação constante era a violência, já que a grande maioria das vilas e pequenas cidades que se formavam estavam distantes do poder central. Aventureiros em busca de fortuna fácil ou mesmo pessoas que não conseguiam trabalho assaltavam fazendas e aterrorizavam os habitantes do campo e dos povoados. Além disso, eram frequentes os enfrentamentos com os índios, que resistiam à ocupação de suas terras.


O desistente do rebanho, Charles Marion Russell

Em razão do reduzido número de autoridades policiais, a segurança era garantida por comitês de vigilantes escolhidos entre os cidadãos mais respeitáveis. Esses comitês realizavam julgamentos e execuções sumárias de pessoas suspeitas de assalto ou assassinato.


Índios descobrindo Lewis e Clark, Charles Marion Russell

A dura rotina de trabalho era quebrada pela reunião das pessoas em torno da praça da vila ou cidade, aos domingos. As famílias compareciam aos cultos religiosos e se inteiravam das notícias. A grande maioria da população, porém, era formada por homens solteiros, que trabalhavam como mineradores ou como vaqueiros dos grandes ranchos. Estes tinham como lazer jogar cartas, cantar e dançar nos salões ou beber nas tavernas. Apenas nas cidades maiores havia outras atrações, como circos itinerantes e companhias de teatro e de ópera.


Jogo de pôquer, Charles Marion Russell

Mesmo nos momentos de lazer, a violência era uma constante, pois os excessos com as bebidas e a reunião de um grande número de homens aventureiros geravam confusões e brigas. Muitas vezes acabavam em tiroteio e morte, pois era costume os homens andarem armados. Enfim, a violência era uma constante em um meio que reunia pessoas de origens muito diferentes e em geral frustradas pela não realização do sonho de riqueza fácil que motivara sua fixação no Oeste.


Um dia calmo em Utica, Charles Marion Russell

DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Novo História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2009. p. 159.


NOTA: O texto "Cotidiano e violência no Oeste dos Estados Unidos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 10 de agosto de 2014

Idade Média: O mundo do medo

A fome trazia consigo sérias consequências. A ingestão de alimentos deteriorados ou impróprios para o consumo provocava doenças que se agravavam pelo estado de subnutrição. Há relatos de populações que, esfaimadas, chegavam a comer terra. Existem também registros de atos de canibalismo, praticados em meio a pragas de ratos e gafanhotos que frequentemente assolavam os campos. Em tempos de crise, os rebanhos eram dizimados por doenças ou pela falta de alimentos. Desesperadas, as pessoas consumiam também as rações reservadas aos animais como, por exemplo, a aveia armazenada. E os poucos animais que restavam eram abatidos para suprir a carência de alimentos.

Além disso, as populações subalimentadas e sem a mínima resistência física ainda sofriam o flagelo das epidemias, muito comum em toda a Idade Média. Os surtos mais freqüentes eram de cólera, peste bubônica e ergotismo (doença provocada pela ingestão de centeio contaminado por fungos). A célebre Peste Negra – epidemia de peste bubônica iniciada em 1347 – dizimou cerca de um terço da população européia. Na Toscana, a mortalidade atingiu 80% da população e, certas regiões da Inglaterra, chegou a 60%.


Miniatura da Bíblia de Toggenburg, Suíça, 1411, sobre a "Peste Negra".

Ao relatar uma dessas crises, ocorrida entre os anos de 1032 e 1034, o cronista francês Raoul Glaber, monge de Cluny, escreveu: “A fome estendeu de tal forma sua destruição, que se podia acreditar no desaparecimento de quase todo o gênero humano. As condições climáticas se fizeram tão desfavoráveis, que não se encontrava tempo propício para nenhuma sementeira, e as inundações impediam a realização de colheitas. As chuvas incessantes embeberam a terra de tal modo que, durante três anos, não foi possível abrir sulcos capazes de receber sementes. E, no tempo da colheita, toda a superfície dos campos fora recoberta por ervas daninhas. Durante esse período, depois de consumirem pássaros e animais selvagens, os homens passaram a recolher, transtornados pela fome, toda espécie de carniça e de coisas terríveis de se dizer. Para escapar à morte, alguns recorreram às raízes da floresta e às ervas dos rios. Coisa raramente ouvida no curso das épocas, uma fome raivosa fez com que os homens devorassem carne humana. Viajantes incautos eram assaltados por homens mais robustos, que lhes utilizavam os membros, coziam-nos e os devoravam. Muitas pessoas que migravam a fim de fugir do flagelo, ao encontrar hospitalidade, eram assassinadas e serviam de alimentos aos que as haviam acolhido”.

Num mundo tão terrível, a expectativa de vida não ultrapassava os 30 anos de idade. Até mesmo as camadas mais altas sofriam as consequências dos precários recursos da medicina da época, pois as doenças fatais e a mortalidade infantil não poupavam as famílias aristocráticas. Mas, sem dúvida, era entre os camponeses que as deficiências de vida se faziam sentir mais fortemente.

São numerosos os relatos e as miniaturas da época que testemunham o deplorável estado de saúde dos homens da Idade Média. Tuberculoses e dermatoses, especialmente a lepra, eram flagelos constantes, aos quais se somavam deformações de todo tipo (cegueira, paralisia, defeitos físicos) dramaticamente representados na obra de pintores como Peter Bruegel, o Velho e Hieronimus Bosch.

Para todos esses males, receitava-se um só remédio: a expiação. Em épocas de epidemia, organizavam-se procissões, romarias e atos públicos de penitência. E para cada dor ou moléstia recorria-se a um padroeiro específico: Santo Agapito para dor de dente; São Brás para dor de garganta; São Firmino para o raquitismo; São Ciro para cólicas; São Cornélio para convulsões, e assim por diante.

O mundo medieval era o mundo do medo. Temiam-se as más colheitas, a fome, as doenças. E, segundo as crenças populares, só a religião poderia oferecer a segurança almejada, fazendo milagres inimagináveis, e até mesmo ressuscitando os mortos. Bastava invocar o santo do dia para que o pedreiro, por exemplo, se mantivesse miraculosamente sustentado no ar, quando lhe despencasse o andaime. E, embora houvesse a esperança de uma vida eterna destituída de surpresas e de morte, havia ainda o pavor da condenação ao inferno, que dava a essa outra vida o mesmo cunho de insegurança e tornava ainda mais penosa a vida terrena.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 180-182. Volume 2.

NOTA: O texto "Idade Média: O mundo do medo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O exército enterrado chinês

Fileiras de soldados de infantaria de terracota na China.
Foto: High Contrast

Este conjunto excepcional de esculturas em terracota (originalmente pintadas) composto de 100 quadrigas, 500 cavalos e perto de 8 mil soldados, repousa em três fossos descobertos entre 1974 e 1977 bastante perto de Xi’na (na região do Shaanxi, onde Qin Shi Huangdi tinha sua capital). O “exército enterrado” estava encarregado de guardar o mausoléu deste, que está um quilômetro mais a oeste, sob um gigantesco túmulo. O primeiro fosso se compõe de onze corredores paralelos revestidos com tijolos grandes, onde estão de pé, em fileiras de quatro, perto de 7 mil homens. A maioria deles é de infantes armados de lança, mas há também aqueles prontos, no contorno, a enfrentar o perigo, arqueiros e besteiros. Em cada fileira há também carros de combate. O segundo fosso contém 800 guerreiros, entre os quais cavaleiros de pé, puxando sua montaria, e oficiais. O terceiro fosso abrigava sem dúvida o alto comando do exército. Se o conjunto ficou incompleto, a variedade e o realismo das esculturas, notadamente dos rostos (tufos de cabelo, costeletas, bigodes, olhos), não são menos surpreendentes. Essa diversidade se encontra nas túnicas, nas couraças, nos cinturões ou nas caneleiras. Bustos e cabeças são ocos, ao contrário dos braços, das pernas e dos pés.

CATHERINE, Salles (dir.). Larousse das civilizações antigas 2: da Babilônia ao Exército Enterrado Chinês. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 226.

NOTA: O texto "O exército enterrado chinês" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento arqueológico.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Bingham: filho dos pioneiros

A pintura de gênero também ganhou respeito na primeira metade do século XIX. Não mais situadas no degrau inferior da pintura, essas cenas de pessoas comuns engajadas em atividades diárias eram enormemente populares.

O primeiro pintor importante do oeste foi George Caleb Bingham (1811-79), conhecido por suas cenas da vida na fronteira. Criticado no leste pelos temas rústicos, como barqueiros do rio jogando cartas, pescando e mascando fumo, ele se via como um historiador social imortalizando a vida dos pioneiros.

Comerciantes de pele descendo o Missouri, Bingham. Nessa pintura “de gênero” clássica, Bingham romantiza a colonização do oeste selvagem.

Diferentemente de muitos outros artistas que tomaram a natureza como tema, Bingham fazia parte da vida que retratava. Passou a infância numa fazenda rústica em Missouri e foi aprendiz de marceneiro antes de tentar pintar tabuletas. Aprendeu sozinho a pintar, com um manual faça-você-mesmo e pigmentos feitos em casa, depois desceu os rios Missouri e Mississipi pintando retratos. Bingham foi logo aclamado por celebrar a marcha para o oeste e a vida na fronteira. Para Bingham, o lugar-comum era grandioso e os barqueiros dançando eram tão nobres quanto os antigos heróis em batalhas.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 82.

NOTA: O texto "Bingham: filho dos pioneiros" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

As cidades gregas e a vida privada

Entre a esperança e o medo, Sir Lawrence Alma-Tadema

A cidade mais povoada, a maior, a mais rica é Atenas, complementada a 7 quilômetros de distância por outra cidade da Ática, o Pireu. A própria Atenas tem seu cinturão de muralhas; outra fortificação, que acaba por envolver toda a península de Acté, protege o Pireu: enfim, os “longos muros”, as “pernas”, unem as duas aglomerações e Atenas ao mar. Nenhuma outra cidade da época consagrou tantos esforços, tantos cuidados e recursos à ligação íntima de seus centros vitais e à sua defesa. Atenas conseguiu corrigir sua posição continental e transformar-se numa ilha, associando sua esquadra e seu exército mais intimamente do que em qualquer outra parte, a fim de garantir sua segurança: durante todo o período clássico, capitulará apenas uma vez, cedendo ao bloqueio e à fome, após a destruição de sua marinha. A própria grandeza dessa concepção defensiva proporciona-lhe o que falta à maioria das cidades, isto é, espaço no interior das muralhas, frequentemente acanhadas, devido à falta de dinheiro, a área indispensável ao conforto da população. Mas Atenas não soube aproveitar-se desse espaço.

Sem dúvida, não falta lugar no Pireu. A cidade é recente, construída em meados do século V a.C., segundo os princípios urbanísticos da época, à base de um plano geométrico. Costeia o único porto comercial da Ática e um dos três portos de guerra aparelhados com estaleiros e arsenais, em torno de Acté. Barracões, armazéns, escritórios de alfândega e de câmbio, a Bolsa encontram-se nas imediações dos cais, onde navios vindos de todos os portos do Mediterrâneo descarregam as mais variadas mercadorias. Para trás estende-se a cidade propriamente dita. A maior parte de sua população é constituída de estrangeiros de todas as nacionalidades, falando todas as línguas. Aí os marinheiros procuram e encontram os prazeres sonhados durante o isolamento e o perigo das travessias. Os habitantes vivem do porto, do tráfico de viajantes e de mercadorias. Mas as pessoas de bom-tom nunca se demoram aí por muito tempo: a multidão é muito cosmopolita; os assuntos de conversa e as preocupações giram em demasia em torno do dinheiro e do comércio. [...]

Não foi, portanto, na direção do Pireu e do mar, ao abrigo das novas fortificações onde subsistem muitos terrenos vagos, que a velha Atenas procurou estender-se. Seus subúrbios crescem principalmente para o norte, como que atraídos pela vida do campo, à qual tantos cidadãos permanecem presos por seu ideal, pelo parentesco e pelos interesses de proprietários territoriais. A cidade sufoca no espartilho de suas muralhas reconstruídas às pressas, imediatamente após as guerras médicas, antes da expansão de sua atividade política, econômica e intelectual: não se desenvolve, porém, no sentido em que sua verdadeira vocação parecia lançá-la.

Muito arcaica, não corresponde de maneira alguma à nossa concepção de uma grande urbe, apesar do esplendor dos monumentos da Acrópole e de alguns templos ou edifícios públicos construídos na cidade baixa: ruas estreitas, nas quais é proibido edificar balcões salientes, sem calçadas nem pavimentação ou esgotos, com um canal de escoamento feito de telhas no meio da rua; apenas uma grande fonte, construída pelos tiranos do século VI a.C., e numerosos poços, mas cujas águas deveriam ser bastante suspeitas; poucas praças públicas, a principal sendo a ágora ornamentada com plátanos. Ao seu redor encontra-se o mercado ou, antes, os mercados, visto tratar-se de ruas ou de conjuntos de ruas especializadas: bairro da alimentação, com subdivisões para cada categoria de produtos, desde a carne de burro até o peixe salgado; bairro dos cavalos e dos escravos; bairros da cerâmica, do vestuário e da sapataria [...].

Xenofonte fala de 10.000 casas no começo do século IV a.C. É demais para um espaço restrito, e jardins existem somente nos subúrbios, que se estendem além das portas da cidade, entre os túmulos dispostos ao longo das estradas; mas a boa sociedade só consente em habitar a cidade. Todas essas moradias, muito modestas, não têm, em geral, senão paredes de barro batido, pelas quais os ladrões facilmente abrem passagem. As primeiras residências com mais de um andar e erguidas com fins especulativos causam sensação no século IV a.C. O piso dos cômodos, quase sempre minúsculos, é de barro batido. Falta o mais rudimentar conforto. O problema das instalações sanitárias foi resolvido simplesmente porque nunca preocupou a ninguém.

A única superioridade das vivendas dos ricos reside nas suas maiores dimensões: os compartimentos, um pouco mais espaçosos, distribuem-se em volta de um pátio orlado de algumas colunas. O luxo surge apenas tardiamente, limitado às salas de recepção, cujo teto recebe lambris e cujas paredes são ornamentadas com tapeçarias e pinturas. [...] O mobiliário nunca é faustoso. [...]


Passatempo, John William Godward

Se uma casa atinge um mínimo de abastança, estabelece-se uma separação entre os cômodos reservados à vida estritamente familiar, domínio da mulher, e o andron ou setor dos homens.


Interior grego ou gineceu, Jean-León Gérôme

A mulher, que passa diretamente da casa de seu pai para a de seu marido, não sai. “O caráter desse sexo”, declara Péricles, a crermos em Tucídides, consiste em “obter, entre os homens, o mínimo possível de celebridade, tanto no bem como no mal”. Os deveres primordiais da esposa são: dirigir as questões internas da casa, zelar pelas vestes, ocupar-se dos filhos, sendo que os do sexo masculino escapam à sua autoridade ao atingir sete anos, e as meninas ficam-lhe submetidas até o casamento. [...] Na epopéia homérica, o poeta não hesitava em colocar a mãe Nausíaca na presidência dos banquetes em casa de Acínoo. Tal cena seria inadmissível na Grécia clássica. Percebemos, apenas, nas tragédias de Eurípedes, nas farsas de Aristófanes, em alguns debates filosóficos, que o progresso do individualismo principia a apresentar o problema da personalidade e da libertação da mulher. Mas trata-se de audácias ainda teóricas, cujos efeitos reais não se farão sentir antes do período seguinte.

Toda a vida externa, incluindo a compra de alimentos no mercado, depende do marido.

Sem dúvida, ele é legalmente o senhor em seu lar, mas na medida em que a preocupação com sua tranqüilidade não o faz ceder, como Sócrates, diante de uma esposa impertinente, de fala grossa. Pode repudiar sua mulher, sem precisar invocar motivos ou pretextos, sob a única condição de restituir-lhe o dote. Pode decidir “não criar” seus filhos, isto é, abandoná-los, “expô-los” na via pública nos primeiros dias de seu nascimento, prática seguida com grande freqüência, principalmente em relação às meninas, por razões econômicas, num país pobre, em que um forte crescimento demográfico seria uma catástrofe. A vida nestas moradas estreitas, em companhia de uma mulher cujo espírito, por falta de educação e de contatos sociais, é, em geral, inculto, não lhe proporciona grandes distrações. Passa, pois, boa parte do dia fora de casa, nos lugares públicos, onde encontra as pessoas de seu conhecimento, conversa, informa-se e estabelece amizades, por vezes mesmo relações mais íntimas.


Cena de simpósio: um jovem reclinado possui um aulos em uma mão e dá outro para uma dançarina.  c. 490-480 A.C. Brogos

Não faltam, na verdade, as cortesãs de todas as categorias. Algumas são ilustres, muito cultas. Tal é o caso da milésia Aspásia, a cuja inteligência Sócrates rendeu homenagem e que Péricles fez abertamente sua companheira, repudiando a esposa legítima [...].


Cena de pederastia: “erastes” (amante) tocando a genitália do “eromenos” (amado). Ca. 540 a.C. 
Foto: Haiduc

De mais a mais, o amor grego é também uma realidade resultante da camaradagem guerreira, do espetáculo quotidiano da nudez no ginásio, de um desejo – que não é totalmente impuro – de proteger e educar, por parte do “erasto”, de admirar e ser iniciado por parte do “erômeno”. Numa sociedade em que o ideal masculino é, graças aos lazeres, o de desenvolver as virtualidades individuais, de colocar corpo e espírito num equilíbrio harmonioso, de servir à pátria no conselho e no campo de batalha, numa sociedade em que os costumes, separando os sexos tanto quanto o permitem a necessidades materiais, levam os homens a frequentar apenas os homens e lhes dão o orgulho dos privilégios decorrentes de sua virilidade, a moral não pode coincidir com aquela que uma religião e costumes diferentes modelaram entre nós.


Cena de simpósio: mural da Tumba de Paestum

Os mais ricos prolongam essas relações externas, oferecendo banquetes em suas casas para os quais convidam seus amigos. No andron, onde se encontra o mais luxuoso mobiliário da casam o anfitrião, que não é assistido por sua mulher, manda servir aos seus companheiros de cenáculo político ou intelectual, de esporte ou de deboches, acepipes refinados e vinhos escolhidos. Reclinados sobre os leitos, servidos por escravos, distraídos por interlúdios de todo gênero e, principalmente, pelas tocadoras de flauta, de lira ou de cítara, cujo salário mínimo é fixado pela lei, os convivas conversam familiarmente até tarde da noite, ao sabor de sua fantasia. Na sua maioria essas reuniões vesperais degeneram, indubitavelmente, em repugnantes bebedeiras, das quais muitos não saem em boas condições. Mas nada nos impede de dar crédito, senão à autenticidade, pelo menos à verossimilhança eventual das narrativas de Xenofonte e de Platão, que colocam, no quadro jovial de um “banquete”, elevados debates sobre política, filosofia ou ciência, dos quais participa Sócrates, que se mostra, aliás, notavelmente resistente à embriaguez.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 199-204.  (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "As cidades gregas e a vida privada" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.