"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O fim do Império Romano

Texto 1. É no momento da morte de Teodósio que frequentemente se toma posição para argumentar acerca das causas da queda do Império Romano. As teorias são numerosas: esgotamento e mistura das raças superiores, predominância de uma economia fechada, dominial, eliminação, a partir dos Severos, das elites dirigentes em favor de soldados semibárbaros, a "bolchevização" das elites, segundo o russo (branco...) Rostovtzeff; mais recentemente notaram-se as modificações dos eixos comerciais, o abandono de Roma por vias terrestres setentrionais, e mesmo o deslocamento dos estoques de ouro do Império no sentido do Oriente, o que explicaria o êxito da fundação de Constantinopla. Todas estas teorias contêm algo de verdade (salvo a última, sem dúvida, pois podemos demonstrar ter sido a cidade fundada graças a considerações estratégicas e, talvez, sobretudo religiosas).

Tudo resume-se, no fundo, em duas tendências: a pessimista, representada na França por F. Lot (La fin du monde antique), que considera que o Império, minado por suas taras internas, teria morrido em curto prazo, mesmo sem o advento das invasões bárbaras; e a otimista, de A. Piganiol ou S. Mazzarino, sensíveis à incontestável renascença do século IV, que julgam ter sido a civilização do Império "assassinada" pelo bárbaro. O papel das invasões, na verdade, parece determinante, mas precisamos observar ter o Império do Ocidente sobrevivido até 476, e o de Oriente, até 1453. Por conseguinte, em que momento fecha-se exatamente a história romana? (PETIT, Paul. História antiga. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1979. p. 327.)

Afresco, Templo de Ísis (Pompéia)


Texto 2. O Império encontrava-se, pois, dilacerado por crescentes dificuldades econômicas e pela polarização social à medida que se desenvolveram os últimos anos do século IV. Mas foi somente no Ocidente que estes processos atingiram o seu fim crucial, com o colapso de todo o sistema imperial perante invasões bárbaras. A análise convencional deste desastre final recorre à concentração das grandes pressões germânicas nas províncias ocidentais e à sua vulnerabilidade estratégica, geralmente maior do que nas províncias orientais. [...] Mas a convicção de que "as debilidades internas do Império não podem ter sido um fator importante no declínio" é claramente insustentável. Ela não fornece qualquer explicação estrutural das razões por que o Império do Ocidente sucumbiu aos bandos primitivos de invasores que o atravessaram no século V, enquanto o Império do Oriente, contra o qual os seus ataques haviam sido inicialmente muito mais perigosos, escapava e sobrevivia. A resposta a esta questão está em todo o desenvolvimento histórico anterior das duas zonas do sistema imperial romano.

O modo de produção escravagista desenvolvido, que constituía a mola do sistema imperial romano, naturalizou-se, portanto, desde a sua origem, sobretudo no Ocidente. Era, pois, lógico e previsível que as contradições endógenas desse modo de produção evoluíssem até à sua consumação extrema no Ocidente, onde não eram mitigadas ou determinadas por quaisquer formas históricas antecedentes ou alternativas. Onde o meio era mais puro, os sintomas eram mais extremos.

A polarização social do Ocidente acabou, pois, num sombrio finale duplo, com o Império dilacerado por cima e por baixo por forças internas antes de forças externas desfecharem o golpe final. (ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. Porto: Afrontamento, 1980. p. 106-107, 113-114.)

Texto 3. Talvez a ideia mais corrente sobre o Império Romano seja a mais injustificada. Referimo-nos à noção de decadência moral, associada a exageros na comida e nas diversões e que teria levado à decadência de Roma. Em primeiro lugar, essa decadência moral teria durado séculos antes de levar Roma à ruína: ao menos cinco séculos (séculos I a.C. a IV d.C.), o que representa mais do que toda a história do Brasil!. Em segundo lugar, a “queda” do Império Romano já foi assinalada em momentos totalmente diferentes, indo desde 330 d.C., com Constantino, passando por 398, com a divisão entre o Império Romano do Ocidente e do Oriente, por 410, com a tomada de Constantinopla pelos godos, até 1453, quando Constantinopla, ainda oficialmente capital do Império Romano do Oriente (ou Bizantino), foi tomada pelos turcos.

Ainda mais importante, no entanto, é o fato de que noções como “decadência” são por demais subjetivas. Teria havido decadência moral? Ou os costumes eram, simplesmente, diferentes dos nossos? As “loucuras” dos imperadores não poderiam ter ocorrido sem que alguém as apoiasse e não eram atos menos políticos do que as “loucuras” de Stalin, de Hitler ou da ditadura militar, no Brasil, para ficar em alguns exemplos contemporâneos de autoritarismo. (FUNARI, Pedro Paulo. Roma, vida pública e privada. São Paulo: Atual, 1994. p. 6-7.)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Declaração Universal dos Direitos Humanos



Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, 
 
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, 
 
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, 
 
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
  
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
  
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,
   
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,   

A Assembléia Geral proclama 

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.   

Artigo I

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.   

Artigo II

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,  religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Artigo III

Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.   

Artigo V

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI

Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.   

Artigo  VII

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.   

Artigo VIII

Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem  os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.   

Artigo IX

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.   

Artigo X

Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.   

Artigo XI

1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
   
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo XII

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XIII

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
  
2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo XIV

1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
  
2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XV

1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
  
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo XVI

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
   
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

Artigo XVII

1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 
 
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo XVIII

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo XIX

Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo XX

1. Toda pessoa tem direito à  liberdade de reunião e associação pacíficas.
   
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo XXI

1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos
.   
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 
 
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo  equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo XXII

Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII

1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 
 
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.  
 
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 
 
4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses.

Artigo XXIV

Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.

Artigo XXV

1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
  
2.  A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI

1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 
 
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.   

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo XXVII

1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.
  
2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Artigo XXVIII

Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e  liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo XXIX

1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.
  
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
  
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição  de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O legado dos antigos judeus

Para os judeus, o monoteísmo iniciara um processo de autodescoberta e auto-realização sem precedentes entre os outros povos do Oriente Próximo. O grande valor que os ocidentais atribuem ao indivíduo provém, em parte, dos antigos hebreus, para os quais os seres humanos, criados à imagem de Deus, eram dotados de livre arbítrio e de uma consciência responsável perante Deus.

O cristianismo, a religião essencial da civilização ocidental, surgiu do antigo judaísmo, com o qual apresenta inúmeros e fortes pontos de ligação - entre eles o monoteísmo, a autonomia moral, os valores proféticos e a valorização das escrituras hebraicas como sendo a Palavra de Deus. O Jesus histórico não pode ser compreendido sem um exame de seus antecedentes judaicos, e foi às escrituras hebraicas que seus seguidores recorreram a fim de demonstrar a validade de seus ensinamentos. É por essas razões que nos referimos a uma tradição judaico-cristã como componente fundamental da civilização ocidental.

A visão hebraica de uma futura era messiânica, uma idade de ouro de paz e justiça social, constitui a base da ideia do progresso do Ocidente - de que as pessoas podem construir uma sociedade mais justa, que existe uma razão para se ter esperança no futuro. Esse modo de perceber o mundo teve grande influência sobre os movimentos de reforma da Idade Moderna.

Afresco egípcio que representa uma tribo semita.

Finalmente, as escrituras hebraicas foram e ainda são uma das fontes de inspiração dos pensadores religiosos, romancistas, poetas e artistas ocidentais. Para os historiadores e arqueólogos, elas constituem um recurso valioso em seus esforços de reconstituir a história do Oriente Próximo.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 39-40.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A civilização dos megálitos

Os megálitos (grandes pedras) são os mais antigos monumentos da humanidade. Entre o 5º e o 2º milênio a.C., enormes blocos de pedra foram erigidos na Europa em locais abertos e muitas vezes sobre uma elevação. Os mais antigos megálitos estão na Espanha e em Portugal, bem como no Golfo de Lion (nordeste do mar Mediterrâneo), na Córsega, na Sardenha e em Malta. O costume de erigir "grandes pedras" segue depois ao longo da costa atlântica. A Bretanha, em particular, oferece numerosos exemplos desses monumentos. A seguir, a arte megalítica chegou à Irlanda, à Grã-Bretanha e finalmente, por volta de 1500 a.C., à Jutlândia e à Escandinávia.

Stonehenge, na Grã-Bretanha. Construído por etapas entre o 3º e o 2º milênio, o conjunto monumental de Stonehenge se compõe de círculos concêntricos de menires, de 3 a 6 metros de altura, e pesando dezenas de toneladas. As pedras verticais do círculo exterior suportam blocos horizontais. Até agora este sítio impressionante não revelou o segredo de sua finalidade.

Os menires, altas pedras verticais de um bloco único, podem ser isolados ou colocados em círculo (o cromlech) ou ainda alinhados. Os alinhamentos dos menires de Carnac ou os círculos de Stonehenge estão talvez ligados a um culto solar ou lunar. Os dólmens, que têm a forma de mesa, são formados por pedras verticais que sustentam um bloco único disposto horizontalmente. Abrigando geralmente câmaras funerárias, são dissimulados sob um montículo de terra ou cairns (montes de pedras). Alguns megálitos são decorados. Na França, as paredes do dólmen de Gavrinis (Morbihan) apresentam gravações de desenhos abstratos (círculos, espirais), folhas, machados e serpentes. Em Filitosa (Córsega), menires têm gravações em relevo com características antropomórficas (esboços de cabeça e braços), além de armas de guerra.

A dama de Saint-Sernin, em Aveyron. Esta estela de arenito esculpido, em forma arredondada no alto, representa de maneira muito estilizada uma mulher. Dois buracos para os olhos, um traço para o nariz, linhas horizontais para as faces desenham o rosto do ídolo. O grande colar terminado com um pendente, os seios, a tanga que cobre o baixo-ventre e os quatro membros são particularmente sublinhados. Mais de 20 pequenos menires com a aparência de ídolos femininos, como este, foram encontrados em Aveyron.

SALLES, Catherine. (dir.). Larousse das Civilizações Antigas. São Paulo: Larousse, 2006. p. 18-19.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Meios de comunicação, violência urbana e dominação política no Brasil contemporâneo

A modernização imposta pelo regime militar teve como uma das mais importantes decorrências a expansão das telecomunicações. Na década de 1970, houve uma verdadeira revolução dos meios de comunicação no Brasil com a criação da Telebrás.

A expansão da televisão brasileira, com a formação de uma rede nacional, só foi possível com a atuação do Estado brasileiro, que montou uma poderosa infra-estrutura de telecomunicação. Não é coincidência o fato de, em 1965, menos de um ano depois do golpe, ter sido criada aquela que se tornaria a maior rede de televisão do país. Essa rede passou a vender uma nova mercadoria, o entretenimento. Ou seja, a diversão como mercadoria controlada pelas grandes empresas de propaganda como base fundamental para a difusão de padrões modernos de consumo e dos estilos de vida.

Esse tipo de divertimento era transmitido na década de 1960 para cerca de 1 milhão de aparelhos de televisão. Já em 1979 havia cerca de 17 milhões de televisores. No início do novo milênio, 97% da população com mais de 10 anos assiste a programas televisivos. Paradoxalmente, são os pobres que mais tempo ficam na frente da televisão.

A propaganda veiculada na televisão e em outros meios acaba criando necessidades numa sociedade constituída por uma maioria de pobres. Impõe-se uma desesperada corrida ao consumo, mantendo as pessoas em permanente estado de insatisfação, de intranquilidade e de ansiedade. O consumo acaba preenchendo a vida sem sentido provocada pelo trabalho subalterno. Fica-se com a ideia de que o cidadão só se "realiza" se estiver consumindo. E como a maioria não tem acesso aos produtos anunciados, ficamos, dessa forma, presos ao poder de propaganda, que nos cria necessidades impossíveis de serem realizadas.

Os meios de comunicação não estão submetidos a nenhuma restrição, nenhum tipo de controle público. Dessa forma, difundem, como querem, valores morais, estéticos e políticos segundo os interesses de anunciantes ou de governos. Por isso, determinam comportamentos e atitudes de indivíduos e da coletividade, disseminando valores de duvidoso conteúdo cultural e moral, o que, certamente, acaba por limitar a autonomia do indivíduo, os direitos do cidadão e o acesso à cultura.

Uma pesquisa feita em 1992 e 1993 demonstrou que a televisão apresenta programas com oito cenas de violência por hora. Essas cenas são transmitidas e retransmitidas pelas emissoras de TV em todo o país, atingindo 99% do território nacional.

Coincidentemente ou não, a violência urbana tem aumentado nos últimos anos. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou o aumento dos índices de pobreza relacionando-o com o crescimento da criminalidade: 32 milhões de adolescentes vivem na miséria, 18 milhões de pessoas com mais de 15 anos são analfabetas. A violência na Grande São Paulo cresceu 47% na segunda metade da década de 1990. Todos os dias são assassinadas de doze a quinze pessoas nessa metrópole.


Dados mais recentes, de pesquisa realizada por instituições ligadas à ONU, indicam que grande parte dos 30 mil homicídios por ano que ocorrem no Brasil estão ligados ao tráfico e ao consumo de drogas. Cerca de 20 mil jovens entre 10 e 16 anos são usados pelos traficantes como "aviõezinhos", como são chamados os entregadores de drogas. Essas crianças recebem entre 300 e 500 dólares por mês. Isso é incomparavelmente mais rendoso do que qualquer emprego que possam arrumar.

Nos últimos dez anos o consumo de anfetaminas no mundo cresceu 150%, o de maconha, 325%, e o de cocaína, cerca de 700%. A rentabilidade da cocaína é maior do que qualquer outra atividade econômica, legal ou ilegal. Os governos recentes têm feito algum esforço para integrar mais de 50 milhões de pessoas que sobrevivem com menos de 2 dólares por dia, mas os efeitos são demorados e ainda pequenos.

Certamente, a violência não pode ser explicada unicamente pela atuação dos meios de comunicação ou creditada às privações materiais. Mas ambas têm contribuído bastante para a desvalorização da vida e dos direitos humanos. Em vários programas de televisão vemos isso. Programas diários de reportagens em que os bandidos, quase sempre pobres e afro-descendentes (pardos, na linguagem policial-jornalística), são perseguidos de forma violenta e submetidos ao julgamento público. Ou então vemos as disputas da vida privada dos pobres, que já não confiam na justiça oficial, mostradas por apresentadores que humilham publicamente as pessoas.

É essa situação de desesperança que acaba por incentivar comportamentos místicos. Por isso, não é difícil entendermos a razão do surgimento, nas últimas décadas, de grupos religiosos, especialmente o que chamamos de "pastores eletrônicos", com longas horas de programas no rádio e na televisão. É notável também o refúgio na astrologia, nos adivinhos, nos tarólogos, na literatura de auto-ajuda.

Pode-se perceber, a partir daí, que a concentração dos meios de comunicação nas mãos da elite transforma-se em poderosa arma política. Com certeza a democratização dos meios de comunicação contribuiria para uma possível reversão desse quadro.

PEDRO, Antonio et alli. História da civilização Ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 523-524.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A sociedade persa

Friso dos arqueiros, Susa
"A arte persa destacou-se sobretudo nos palácios [...] e nos túmulos reais [...] As paredes eram de tijolos; o teto, de madeira. Dos egípcios aprenderam o uso das colunas. Mas as colunas dos persas eram finas e elegantes; [...] ostentavam, ainda, magníficos capitéis, esculpidos com cabeças de touros.
Os muros achavam-se recobertos de tijolos esmaltados em cores, que formavam frisos - ou de baixo-relevos. Frisos famosos são o dos Arqueiros e o dos Leões. Essa ornamentação inspirou-se nos assírios, mas na sua execução os persas superaram seus mestres de Nínive.
À entrada dos palácios havia grandes touros alados de pedra [...]"
(BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1971. p. 78-9)

O Planalto do Irã, uma das regiões do Oriente Próximo, limita-se, ao Norte, pelos Montes Cáucaso e pelo Mar Cáspio; a Oeste, pelos Montes Zagros; a Leste, pelos Montes Solimã, e, ao Sul, pelo Golfo Pérsico.

[...] o Irã é cercado de montanhas, junto às quais existem vales férteis, embora predominem desertos na sua parte central.

O espaço geográfico não oferecia muitas facilidades à vida humana, porque havia poucas terras aproveitáveis para a criação de cavalos e de carneiros ou para o plantio de cereais. A região, entretanto, era rica em minerais e ficava situada entre a fértil Mesopotâmia e as opulentas sociedades da Índia.

As tribos persas procediam das terras do Sul da atual Rússia e viviam do pastoreio e da criação de cavalos.

Outros povos também se localizavam no Irã, como os medos, aparentados com os persas e, desde o século VIII a.C., organizados no Reino da Média. Este Reino chegou a ser uma potência no Oriente Médio e, aliado ao Reino da Babilônia, conquistou o Império Assírio (século VII a.C.).

Somente no século VI a.C. foi que as tribos persas se unificaram, formando um Estado centralizado na cidade de Pasárgada, onde reinava a dinastia dos Aquemênida.

O primeiro soberano conhecido da dinastia persa foi Ciro, cujo governo caracterizou-se por uma política de conquistas dos Estados vizinhos. Um a um caíram sob o domínio persa os Reinos da Média, da Lídia e da Babilônia, além da Fenícia, da Síria, da Palestina e das cidades gregas da Ásia Menor.

[...]

O que explicaria a rapidez dessa expansão? Várias razões devem ser levadas em conta. Inicialmente, devemos considerar o interesse da aristocracia persa em se apoderar de novas terras e de riquezas tomadas de outras sociedades.

Além do mais, os exércitos persas eram formados por numerosos guerreiros que haviam recebido prolongada educação militar, como nos relata o historiador grego Heródoto:

"Na educação dos jovens persas, que dura dos 5 aos 20 anos, ensinam-se três coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade."


Traje de homem da Média, Friedrich Hottenroth

A expansão foi igualmente facilitada pela pequena resistência dos Estados vizinhos, enfraquecidos pelas guerras anteriores contra os assírios.

Novas conquistas aconteceram no reinado de Cambises, o segundo governante Aquemênida, que dominou o Egito (século VI a.C.). A extensão máxima do Império Persa ocorreu sob a direção de Dario I, o Grande, quando anexou o Norte da Índia e parte da Península Balcânica na Europa. Ao invadir a Europa, os persas acabaram entrando em guerra com as cidades gregas , que paralisaram a expansão Aquemênida.


Guerreiro grego (hoplita) e guerreiro persa lutando. Séc. V a.C.

Foi no reinado de Dario I (521-486 a.C.) que o imenso Império teve estabelecida sua organização administrativa. Dividia-se em Províncias chamadas Satrapias, as quais eram dirigidas pelos Sátrapas, governantes com poderes administrativos e judiciários.


Arqueiro. Palácio de Dario, Susa.

Junto aos Sátrapas existiam outros altos funcionários: o General, que comandava as forças militares da Satrapia, e o Secretário, que escrevia relatórios ao Rei, noticiando o que se passava na Província.

[...]

Dario I instituiu também os Olhos-e-Ouvidos-do-Rei, que viajavam às Satrapias para melhor fiscalizar a administração local. Inúmeras estradas de pedra foram construídas, o que favoreceu o comércio. Estas estradas, algumas com mais de 1.000 quilômetros, eram guarnecidas por tropas e também serviam para o rápido deslocamento de correios a cavalo.

Guerreiros medos e persas,  Persépolis

Realização importante foi a criação de um sistema de moedas, que teve no dárico de ouro a moeda-padrão. Esta medida igualmente beneficiou o comércio.

Mas, será que todas as populações submetidas estariam satisfeitas com o aperfeiçoamento do sistema de exploração estabelecido? Imagine você a reação ante a obrigatoriedade de pagar tributos em dinheiro ou em produtos, além de trabalhar em obras públicas. Isto sem falar na obrigação de fornecer homens para servir no exército persa, tão necessário para manter o sistema de dominação sobre tantos povos e empreender novas conquistas que favoreciam a minoria de comerciantes, de proprietários de terras e de sacerdotes.


Relevo representando sacerdotes, Persépolis

A desagregação do Império Aquemênida ocorreu nos conflitos com as cidades gregas, culminando com a conquista do Império por Alexandre, o Grande (século IV a.C.).

A sociedade persa foi a primeira a dominar todo o Oriente Próximo. Suas realizações culturais revelam influências marcantes de outras sociedades orientais, principalmente da Mesopotâmia, como o uso da escrita cuneiforme.


Representação do Palácio de Dario I, Persépolis, Charles Chipiez

Para a construção de seus palácios, feitos de pedras ou de tijolos, recorreram muitas vezes a arquitetos egípcios, enquanto as escadarias, os terraços e os tijolos esmaltados seguiam modelos babilônicos e assírios.

Palácios e túmulos reais eram decorados com baixos-relevos, representando, invariavelmente, o soberano, povos submetidos e arqueiros persas.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 50-53.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Movimentos populares na História do Brasil no século XIX

* Continuou a formação de quilombos; o último foi o de Jabaquara, em São Paulo, organizado em 1888; nas principais cidades, crescentes conflitos entre abolicionistas e escravistas. Nesse período, houve 884 leis referentes aos escravos, 284 delas relativas a compra e venda, e tributos.

* Insurreição de Queimados, no Espírito Santo, quando mais de duzentos escravos se revoltaram, em 1849.

* Revolta do Ronco da Abelha, no Nordeste; assim chamada porque grupos de populares atacavam de imprevisto e protestando, com ruídos semelhantes ao zumbido de abelhas; nesses ataques, contra repartições do governo, demonstravam sua revolta contra decretos do governo acusados de legalizar a escravização de homens pobres e livres. Os decretos foram revogados.

* Motim da carne sem osso, farinha sem caroço e toucinho grosso; sua denominação deixa claro ter ocorrido por causa dos altos preços de venda e da má qualidade de alimentos em Salvador.

* Revolta do Quebra-quilos, em que populares invadiam coletorias, cartórios e repartições públicas. Iniciada na cidade do Rio de Janeiro, atingiu o Nordeste, em explosão de descontentamento contra o novo sistema de pesos e medidas.

* Guerra das Mulheres, que teve também a participação de homens; iniciada por trezentas mulheres, lideradas por Ana Floriano. Foi provocada pela crise econômica e pela revolta contra editais de recrutamento militar; tendo começado no Rio Grande do Norte, logo se espalhou pelo Nordeste.

* Revolta Baiana de 1878, mais uma vez em Salvador e novamente provocada pelos altos preços da carne verde e seca e outros produtos consumidos principalmente pelos setores populares.

* Levante do Vintém, ocorrido na capital do Império quando populares reagiram contra o aumento da passagem dos bondes: o aumento foi suspenso.

* República do Cunani, criada no Amapá, em 1885, por escravos fugidos, brancos e mestiços pobres, e logo destruída.

Como de hábito, as classes dominantes, resistentes a mudanças que limitem seus privilégios, usaram de violência contra as forças populares. Fuzilamentos, enforcamentos, prisões e torturas contra os chamados desordeiros e inimigos da tranquilidade pública. Uma das novidades foi o colete de couro. Sobre o tórax e as costas dos presos eram colocados pedaços de couro cru; os dois pedaços eram molhados e, ao secar, comprimiam o tórax da vítima.

Com a República, a exploração das camadas populares aumentou. Vivia-se o capitalismo e a ilusão da liberdade e de direitos iguais para todos.

Daí o crescimento do Milenarismo, que já ocorria desde inícios do século XIX.

E o que é Milenarismo?

É um movimento social e religioso cujos participantes procuram construir na Terra um reino de paz e felicidade - o milênio - que antecede o reino celestial junto a Deus. Nesses movimentos, o líder é apresentado como profeta, santo, guia... Dentre outros, destacaram-se:

* a Cidade do Paraíso Terrestre, em Pernambuco, 1817; acreditavam que são Sebastião viria guiá-los para construir o paraíso na terra inteira.

* o Reino Encantado, em Pernambuco, 1836. Com a chegada de são Sebastião, tudo mudaria: os velhos se tornariam moços; os pobres, ricos; as feias e feios, bonitos.

Jacobina e João Maurer

* os Mucker, palavra alemã que significa beato ou santarrão. Assim eram chamados os seguidores de Jacobina e João Maurer. Viveram no Rio Grande do Sul entre 1872 e 1898. Foram perseguidos por católicos e protestantes. Formavam uma sociedade igualitária, sendo condenados o comércio, a riqueza e o dinheiro.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Brasil: uma história popular. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 113-116.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Independência da América espanhola

Praça maior de Lima, Johann Moritz Rugendas

Texto 1
*As razões dos movimentos de libertação colonial. Ao se iniciar o século XIX, a Espanha ainda dominava a maior parte dos territórios americanos. Trinta anos depois, suas colônias americanas limitavam-se a Cuba e Porto Rico.

Como explicar essa mudança radical? Por que o Império Colonial Hispano-Americano desmoronou tão rapidamente? Porque as contradições internas desse Império não conseguiram superar as modificações surgidas no plano internacional desde fins do século XVIII.

Uma das transformações mais importantes se processou na cabeça das pessoas. Como? A partir da propagação das ideias do Iluminismo, cresceu o ideal de liberdade.

Isso mesmo! A produção intelectual, gerada principalmente na França e na Inglaterra, chegou à América Espanhola, através de publicações escritas que conseguiram escapar à vigilância das autoridades coloniais. As ideias liberais e democráticas também se propagaram graças aos hispano-americanos que foram à Europa a passeio, a negócios ou em viagem de estudos.

Não pense que aquelas ideias se tornaram populares entre as classes trabalhadoras. Na realidade, seu conhecimento ficou praticamente limitado aos criollos, brancos nascidos na América e integrantes da classe que dominava a economia colonial.


A rebelião dos criollos, Arturo Michelena

Sim, eram eles os grandes proprietários rurais, os comerciantes, os arrendatários das minas... Eram os criollos a aristocracia econômica das colônias hispano-americanas. Graças aos seus recursos econômicos e financeiros, tiveram a possibilidade de ser a elite intelectual: muitos frequentaram universidades americanas ou europeias, muitos sabiam ler e escrever. Assim, puderam ter acesso aos ideais econômicos e políticos que pregavam a destruição do Mercantilismo, do Absolutismo e dos privilégios das minorias.

Mas eram os criollos maioria na América Espanhola?

De jeito nenhum! Eles, inclusive, exploravam o trabalho da maioria, formada por indígenas, mestiços e negros!

E que minoria seria essa, cujos privilégios os criollos queriam destruir?

A minoria constituída pelos guachupines ou chapetones, denominações aplicadas aos espanhóis que monopolizavam os altos cargos da administração, da Justiça, da Igreja e o Exército coloniais.

E quem sustentava essa minoria dirigente?

Os criollos, que tinham a maior parte dos meios de produção, mas se viam impelidos de ocupar as supremas funções dirigentes coloniais, reservadas exclusivamente aos chapetones.

Foi justamente quando os criollos, graças ao Iluminismo, tiveram maior consciência das limitações e das espoliações impostas pela subordinação colonial, que a Espanha tornou mais opressiva suas diretrizes coloniais:

* os impostos foram aumentados;
* o Pacto Colonial ficou mais severo;
* as restrições às indústrias e aos produtos agrícolas coloniais concorrentes dos metropolitanos agravaram-se.

Além do mais, havia o exemplo dos EUA. Não haviam estes sido colônias da Inglaterra? Se as Treze Colônias conquistaram sua independência, por que as colônias espanholas na América não teriam sucesso em uma guerra de libertação nacional? Os norte-americanos não haviam derrotado a poderosa Inglaterra? Por que os hispano-americanos não venceriam a decadente Espanha?

É claro que os criollos deveriam buscar o apoio da massa indígena e mestiça para melhor atingir seus objetivos. Ainda que algumas concessões fossem feitas, os criollos não queriam perder a condição de elite dirigente e de classe proprietária dos meios de produção.

A conjuntura internacional tornou-se mais favorável quando a Inglaterra, em plena Revolução Industrial, sentiu a necessidade de ampliar seus mercados externos, consumidores da sua produção fabril e abastecedores de matérias-primas.

Só que o interesse inglês esbarrava no aumento do arrocho colonial espanhol. Mesmo a abertura dos portos hispano-americanos às Nações neutras era prejudicial ao capitalismo inglês. Por que? Porque existia um estado de guerra entre as Cortes de Londres e Madri. A questão se complicava devido ao crescimento das relações comerciais entre os EUA e as colônias hispano-americanas.

A Inglaterra não tinha escolha!

Para superar os EUA e abrir os mercados hispano-americanos ao capitalismo inglês, deveria engajar-se a fundo na criação de Estados independentes na América. O comércio inglês só seria livre com países livres!

Por isso, a Inglaterra forneceu navios, armas, munição e até homens, além de auxílio diplomático e financeiro, aos criollos. Já em 1806, uma expedição, comandada pelo criollo Francisco Miranda, tentou ocupar Caracas, na Venezuela, contando com ajuda inglesa.

Mas a ruptura da Espanha com as suas colônias só viria a ocorrer durante a Revolução Francesa (1789-1815). Desde a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, o conflito entre França e Inglaterra se intensificou, tendo o Bloqueio Continental (1806) fechado a Europa Continental ao comércio inglês.

A crise econômica então criada, e intensificada com a crise financeira, decorrente das grandes despesas com as guerras contra a França Napoleônica, impunha, mais do que nunca, a conquista de novos mercados pela Inglaterra.

Esses mercados poderiam ser americanos, desde que as colônias espanholas se tornassem independentes.

Era natural que a Espanha não aceitasse, sem reagir, a perda das suas colônias. Os acontecimentos, porém, se precipitaram: os exércitos de Napoleão Bonaparte invadiram a Espanha e José Bonaparte, irmão do Imperador francês, foi colocado no trono espanhol; Carlos IV e seu herdeiro Fernando VII foram depostos e aprisionados.

Como em um passe de mágica, a Espanha, submetida à França, tornou-se inimiga da Inglaterra. Com isso, a esquadra inglesa no Atlântico passou a impedir qualquer contato dos governantes de Madri com as autoridades coloniais da América espanhola.

Aproveitando-se da situação e usando a desculpa da fidelidade aos Monarcas depostos, os criollos depuseram a maioria dos Vice-Reis, Capitães Gerais e Governadores, substituídos por Juntas de Governos.

Essas juntas eram integradas exclusivamente por criollos e, de imediato, todas estabeleceram a liberdade de comércio. Foi o fim dos entraves mercantilistas e o início da penetração do capitalismo inglês.

Quando Fernando VII retornou ao poder, com a Restauração na Espanha (1814), e determinou o restabelecimento do Pacto Colonial, a luta pela independência política se alastrou.

Por que? Porque o livre comércio só seria garantido com a liberdade política.

E quem ajudou a vitória dos criollos? É isso mesmo, a Inglaterra, que não admitia perder os mercados americanos. Não é de espantar que, no Congresso de Verona (1822), o representante inglês tenha advertido os presentes que não permitiria qualquer intervenção da Santa Aliança no continente americano.

A essa altura, tanto o Brasil como a maioria das colônias espanholas haviam conquistado a sua independência política, se bem que para cair na esfera de influência da Inglaterra.


Estudo para a Praça maior de Lima, Johann Moritz Rugendas

Texto 2
1810-1822 [Vice-Reino da Nova Espanha]. Em 1810, uma conspiração criolla deu início a uma revolta na região norte do México, marcada pela atividade mineradora. Seu líder, padre Miguel Hidalgo, era adepto dos ideais iluministas e exercia grande influência sobre as comunidades locais. A população pobre e indígena revoltosa recorreu ao estandarte da Virgem de Guadalupe para simbolizar sua identidade local, mexicana. Após meses de luta, o movimento perdeu força e se dispersou. Padre Hidalgo foi capturado, forçado a manifestar um arrependimento público e, em seguida, foi executado.

El grito de Dolores, mural de Juan O' Gorman. [A história do México é contada por gigantescas pinturas murais. Diego Rivera, Jose Orozco e Juan O' Gorman são alguns desses muralistas. O' Gorman procurou enfatizar a importância do movimento liderado pelo padre Hidalgo, em 1810.]

Entre 1813 e 1815, outra rebelião eclodiu ao sul do México, onde havia maior preservação da identidade aldeã. Adeptos das ideias do padre Hidalgo passaram a disseminá-las entre as comunidades locais, destacando-se entre eles o religioso mestiço José Maria Morelos. Sob sua orientação, organizou-se um exército de aldeões, que tinha como metas o fim da escravidão e do sistema de castas e a suspensão do tributo pago pelos povos indígenas. Em 1815, foi fundado um órgão máximo do governo insurgente, chamado Congresso Nacional de Chilpancingo, que declarou a independência da América espanhola setentrional. No ano seguinte, o Congresso de Chilpancingo promulgou a primeira Constituição mexicana, a de Apatzingán, fortemente inspirada nos ideais de Morelos. Os criollos, incomodados com a crescente participação das camadas pobres e mestiças no processo de emancipação, se distanciaram de Morelos, que acabou preso e executado, em 1815. A independência do México e sua primeira Constituição foram anuladas.

Aos poucos, vários grupos de criollos abandonaram as lutas pela independência e voltaram a apoiar a Espanha, na esperança de conquistar a soberania do México por meio de estratégias diplomáticas. Enquanto isso, numerosos grupos guerrilheiros continuaram a agir por todo o Vice-Reino da Nova Espanha, dos quais se destaca o de Vicente Guerrero, em Oaxaca. E foi com esse grupo que o oficial monarquista, Agustin de Iturbide, negociou a retomada do movimento de independência do México. A união dessas forças deu início ao Plano de Iguala, que tornaria o México um país independente e governado por Fernando VII. Os criollos e os chapetones teriam seus privilégios preservados, enquanto a Igreja manteria o monopólio religioso. Em setembro de 1821, a Junta Provisória do Governo decretou a independência do império mexicano. A Capitania Geral da Guatemala, formada pelo atual estado mexicano de Chiapas, pela Guatemala, por El Salvador, Nicarágua, Costa Rica e por Honduras, foi incorporada ao império do México.

Em 1822, Agustin de Iturbide foi nomeado imperador, mas seu governo durou apenas oito meses. Diante de sua inabilidade política e administrativa, setores militares se rebelaram contra o imperador e proclamaram a República, em dezembro de 1822. O general Antonio Lopez da Santa Anna foi nomeado o primeiro presidente do México republicano. A Constituição republicana foi promulgada em 1824, definindo o México como uma república federativa e oficialmente católica.

Formalizou-se, portanto, uma saída conservadora para o processo de emancipação do México.

1811-1819 [Capitania Geral da Venezuela / Vice-Reino da Nova Granada]. Entre 1811 e 1812, os criollos locais, influenciados pelas ideias liberais e iluministas, iniciaram as primeiras campanhas revolucionárias da Venezuela, liderados por Francisco Miranda. Os revoltosos buscaram apoio de países europeus para a causa emancipacionista. A Junta de Governo de Caracas declarou a independência da Venezuela, em 1811. Contudo, as tropas metropolitanas retomaram o poder no ano seguinte e, assim, deram fim à Primeira República venezuelana. Seu líder, Francisco Miranda, foi extraditado para a Espanha, onde faleceu na prisão.


Miranda no cárcere, 1896, Arturo Michelena.

Em 1813, Simón Bolívar, um dos ícones do processo de independência da América espanhola, liderou o segundo movimento emancipacionista venezuelano. Mas a Segunda República venezuelana teve fim logo no ano seguinte, com a chegada das tropas de reconquista enviadas pelo rei Fernando VII.

Em 1819, foi proclamada a República da Grã-Colômbia, que uniu os territórios das atuais Venezuela, Colômbia e Equador, que se separaram novamente em 1830.

1810-1816 [Vice-Reino do Rio da Prata]. A região do Rio da Prata já havia enfrentado outros momentos de grandes tensões entre as demandas locais e as ordens da Coroa. A cidade de Buenos Aires havia sofrido duas tentativas de invasão inglesas e, em ambos os momentos, as autoridades representantes da Coroa se mostraram ineficientes para garantir a segurança das comunidades locais. Diante da crise de legitimidade do poder metropolitano, a elite criolla local constituiu a primeira junta governativa. Em seguida, destituiu o vice-rei, Baltazar Hidalgo de Cisneros, e proclamou a Junta Provisória de Governo das Províncias do Rio da Prata em nome do senhor Fernando VII. O juramento de lealdade ao rei durou pouco tempo, pois logo as elites criollas organizaram uma revolução liberal em prol de sua independência. Em maio de 1810, foi instalada, em Buenos Aires, uma república inspirada nos ideais iluministas. Contudo, outras regiões que formavam o Vice-Reino do Rio da Prata se recusaram a seguir a liderança de Buenos Aires, pois temiam que o comércio interno ficasse inteiramente à mercê da nova capital, localizada numa região portuária. As disputas entre Buenos Aires e as províncias do interior permaneceram por um longo período.

Em 1816, foi proclamada a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata.

Enquanto as províncias do interior se batiam contra Buenos Aires, os atuais territórios do Paraguai (1811) e Uruguai declararam a sua independência.

O Uruguai, sob o nome de Província Cisplatina, foi anexado ao Brasil entre 1820 e 1828, como parte de um acordo com a Argentina para garantir, entre outros, a navegação das embarcações luso-brasileiras para o interior do território português. Inicialmente, a anexação foi bem recebida pelos portenhos, mas, a partir de 1825, numerosos grupos de uruguaios se organizaram, dando início a um novo processo de emancipação do Uruguai. Após um período de lutas, que se arrastou até 1827, finalmente foi reconhecida a independência uruguaia, por meio de um tratado firmado em 1828 entre o Império do Brasil, as Províncias Unidas, a Inglaterra e o Uruguai. Em 1830 foi promulgada a primeira Constituição uruguaia, que também seguiu a tendência republicana e liberal.

San Martín proclama a independência do Peru, Juan Lepiani

1812-1824 [Vice-Reino do Peru / Capitania Geral do Chile]. O processo de libertação do Peru esteve entrelaçado com a emancipação da Capitania Geral do Chile e a consolidação da unidade territorial da atual Argentina. As lutas pela libertação dessas regiões da América do Sul tiveram a participação de José de San Martín, outro ícone da independência dos países hispano-americanos, como um dos articuladores desse processo.

As operações de guerra para a libertação do Chile e do Peru foram articuladas em território argentino, onde se fixaram as tropas rebeldes. De lá saíam os principais ataques às forças da Coroa, tendo Bernardo O'Higgins como comandante do chamado Exército dos Andes. Após um longo período de batalhas, as tropas de O'Higgins expulsaram os representantes da Coroa espanhola e declararam a independência do Chile. O"Higgins assumiu então o governo chileno.

Ao contrário das demais regiões, as elites criollas peruanas se mantiveram fiéis à Coroa, mesmo quando os grandes movimentos emancipacionistas eclodiram por toda a América espanhola. Tendo experimentado o impacto da participação popular nas revoltas locais, especialmente o movimento de Tupac Amaru II, as elites criollas preferiram a manutenção da ordem colonial. Tal postura não impediu que surgissem os primeiros movimentos pela libertação do Vice-Reino do Peru, em 1812, que foram duramente rechaçados. Apenas em 1820, as tropas de San Martín conseguiram tomar a cidade de Lima, a capital do Vice-Reino, e proclamar a independência do Peru. San Martín assumiu o governo e tomou medidas liberais, tais como a abolição da mita, o fim da escravidão, a criação de escolas, entre outras. Ele permaneceu no poder até 1822, quando aparentemente se desentendeu com Bolívar e pediu seu desligamento político e militar do governo do Peru. Em 1824, as tropas de Bolívar debelaram a resistência espanhola na batalha de Ayacucho, no Peru.

AQUINO, Rubim Santos Leão de; LISBOA, Ronaldo César. Fazendo a História: a Europa e as Américas do século XVIII ao início do século XX. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. 
FARIA, Ricardo de Moura et alli. Estudos de História. São Paulo: FTD, 2010.