"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de abril de 2017

A reportagem mais prestigiosa

Vercingetórix joga suas armas aos pés de Júlio César, Lionel Royer

Júlio César foi correspondente de guerra de suas próprias campanhas.

Ele mesmo se encarregou de escrever, para a posteridade, o muito meticuloso relato de suas façanhas.

Sua obra mais famosa se chama Comentários sobre a Guerra Gálica. O tempo transformou em clássico essa exaltação dos méritos militares do autor, que não prestou atenção alguma aos sacrifícios de seus soldados, que jamais se queixavam nem se cansavam.

Júlio César, imperador e deus, repórter de si mesmo, consagrou todo o seu talento literário à homenagem dessa invasão que matou um milhão de gauleses e condenou os sobreviventes à escravidão.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 123.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

A civilização neolítica

Imagem 1 - Estatueta feminina. Pré-cerâmica neolítica, com gesso, betume e incrustações de pedra. Ca. 9000-7000 a.C.

É que há nos invasores neolíticos um elemento de estabilidade: eles domesticaram animais e criam rebanhos.

Seus animais demoram-se nas terras boas, e voltam para a erva fresca de outra estação. O instinto do boi e do carneiro em busca de pasto e água leva atrás deles os homens; o movimento do rebanho alarga-lhes o domínio, mas torna lenta sua marcha: a captura da caça vai-se tornando menos indispensável. O clã se imobiliza e essa estabilidade relativa lhe permite melhorar seus utensílios. O homem se entrega a polir a pedra, a cinzelar os arpões, a cavar o solo para dele arrancar materiais.

Quando as pastagens se esgotam, é preciso partir: o gado dita a vida social. Esses nômades que vivem de seus animais só param quando a terra é bastante fértil para aliemntá-los sem sacrifício. Então o clã luta para nela se manter e pela posse das fontes indispensáveis aos rebanhos. O vencedor se tornará sedentário.

Depois de haver queimado a vegetação primitiva, ele semeia os grãos que viu germinar e espera a colheita. Coze tubérculos e planta árvores frutíferas. Cultiva os cereais, que ceifa, espiga por espiga, parte os grãos entre pedras chatas e os conserva em vasos de madeira, que produz em vime. Tece a lã e as fibras vegetais. Constrói cabanas de taipa e grupadas em acampamentos protegidos por paliçadas [...].

Imagem 2 - Estatueta masculina. Pré-cerâmica neolítica, com gesso, betume e incrustações de pedra. Ca. 9000-7000 a.C.

O clã se crê sob a proteção sagrada de um ser tutelar, senhor absoluto dos homens e dos bens e o poder divino desse animal faz dele a insígnia do clã, o totem, que dispõe de toda fonte de vida. Pela dança e pelo canto, o feiticeiro evoca suas energias sobrenaturais. O clã prossegue sua meditação do mistério. As planícies abertas liberam a imaginação humana e o céu ensina a noção da lei natural; as florestas concentram o espírito da observação. O culto dos mortos se desenvolve e também o da fertilidade. Para suas sepulturas, o clã levanta monumentos de pedra, dolmens, menires, ou cava abrigos artificiais; os costumes variam segundo os diversos focos de cultura neolítica.

Na mesma época coexistem já vários estágios de civilização e tais diferenças contribuem para acelerar as trocas entre os clãs, logo que o crescimento das forças produtivas lhes assegura um excedente de produção.

O objeto produzido torna-se objeto de troca: desde então, ele participa de relações sociais de uma natureza nova que sua função, por outro lado, vai modificar. É preciso primeiro produzir para depois trocar.

Imagem 3 - Cerâmica neolítica. Ca. 6200 a.C.

Os vencidos é que fornecerão o suplemento de trabalho que isso exige.

Outrora, abatiam-se os prisioneiros feitos nos combates pelo vencedor. Postos a serviço do clã vitorioso, seu trabalho contribuirá para enriquecê-lo. Não são as tarefas cada vez mais diversas? Com essa divisão constante do trabalho o encargo feminino passa a segundo plano.

A autoridade do dono dos rebanhos aumenta: ele submete a mulher e as noções de ligação de sangue cedem às de propriedade. Um duplo antagonismo dissolve a comunidade primitiva em proveito dos chefes de família e cinde a sociedade, ao mesmo tempo que a permuta regular de tribo para tribo cria diferenças de riqueza no interior do clã, onde desaparece o matriarcado.

Imagem 4 - Cerâmica do Neolítico. Ca. 6200 a.C.

À propriedade coletiva do clã tende a se sobrepor uma nova forma de propriedade: a desigualdade introduziu-se entre os homens. Depressa ela levará à propriedade individual que os chefes vigorosos reivindicarão, atribuindo-se mais prisioneiros e mais despojos.

[...] Com o crescimento numérico das populações humanas e de suas necessidades, a escravatura - essa domesticação de uma parte da humanidade pela outra - não deixará mais de se desenvolver.

[...]

Os detentores de escravos vão rapidamente beneficiar-se de uma situação privilegiada que procurarão estabilizar ajudando-se mutuamente para reforçar sua supremacia: uma classe dominante se constitui, saída diretamente das novas condições da produção.

[...]

No bem-estar em que melhoraram as condições de sua alimentação, os homens aperfeiçoaram suas técnicas. A tecelagem se torna hábil. Eles fabricam arcos e flechas, manobram suas pirogas a remo e - frágil símbolo dos sedentários - substituem os vasos de vime por uma louça de argila feita no tôrno, cozida e pintada com senso de simetria, em seus desenhos geométricos que reproduzem as fibras trançadas. [...]

Imagem 5 - A grande mãe do Neolítico. 

A reputação de seus trabalhos ganha o Mediterrâneo oriental, e encontra outras influências, que, do Golfo Pérsico, irradiam sobre o Oriente, o pé do planalto do Irã tardiamente liberto dos gelos. Também aí as inundações regulares dos rios asseguram abundantes colheitas aos nômades chegados da Ásia Central à Mesopotâmia. A cevada e o trigo aí nascem independentemente de cultivo. O solo argiloso permite construir casas de tijolos secos ao sol e de trançados de canas. [...]

Assim desabrocharam duas opulentas sociedades agrícolas, semelhantes pelos aperfeiçoamentos técnicos e pela qualidade humana: a tatuagem desapareceu no Egito e na Mesopotâmia, enquanto o resto da humanidade estava ainda na barbárie.

[...]

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. p. 10-3.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Hero e Leandro

Hero acendendo a tocha para Leandro, Edward Burne-Jones

Leandro era um jovem de Ábidos, cidade situada na margem asiática do estreito que separa a Ásia da Europa. Na margem oposta do estreito, na cidade de Sestos, vivia a donzela Hero, sacerdotisa de Vênus. Leandro a amava e costumava atravessar o estreito a nado, todas as noites, para gozar a companhia da amante, guiado por uma tocha, que ela acendia na torre, para esse fim.

Hero achando Leandro, Ferdinand Keller

Mas, numa noite de tempestade, em que o mar estava muito agitado, o jovem perdeu as forças, e afogou-se. As ondas levaram o corpo à margem europeia, onde Hero tomou conhecimento de sua morte e, desesperada, atirou-se da torre ao mar e pereceu.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 111.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Eco e Narciso

Eco e Narciso, John William Waterhouse

Ó Eco, doce ninfa que, invisível,
Vives nas verdes margens do Meandro
E no vale coberto de violetas,
Onde ao luar o rouxinol te embala,
Com seu canto nostálgico e suave,
Dois jovens tu não viste, por acaso,
Bem semelhantes, Eco, ao teu Narciso?
Se, em alguma gruta os escondeste,
Dize-me, ó ninfa, onde essa gruta está
E, em recompensa, subirás ao céu.
E mais graça darás, ó bela ninfa,
À Celeste harmonia em seu conjunto!

Milton

Narciso, Gyula Benczúr

sábado, 22 de abril de 2017

Cupido e Psiquê

Cupido e Psiquê, Jacques-Louis David

Quanta lenda tão bela, outrora, nesse dia
Longínquo em que a razão tomava à fantasia
A asa multicor e, entre areias de ouro,
O rio carregava um líquido tesouro!
Quando a mulher sem par, beleza peregrina,
Que de sofrer e amar e lutar teve a sina.
A terra percorreu, exausta, noite e dia,
Em procura do Amor, que só no céu vivia!

T. K. Harvey

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Vênus e Adônis

Vênus e Adônis, Francois Lemoyne

Comus

Entre moitas de rosas e jacintos,
Muitas vezes repousa o jovem Adônis
Amortecida a dor, e a seu lado
Jaz a trsite rainha dos assírios...

Milton

Vênus e Adônis, Christiaen van Couwenbergh

terça-feira, 18 de abril de 2017

A sociedade primitiva matriarcal

“[...] enquanto caçam, as mulheres cortam as peles dos animais selvagens que elas cozinham com nervos, furam conchas, dentes, seixos, fazem colares e adornos e se tingem de ocre vermelho – a cor mágica que afasta o perigo.

Vênus de Willendorf.
Foto Mathias Kabel

As tarefas que a mulher executa assim junto do fogo lhe dão uma função essencial: ela conserva os objetos da propriedade e assegura, com sua fecundidade, a prosperidade do clã, cuja força depende do número de braços. Esse duplo encargo dá à mulher uma tal autoridade que a sociedade primitiva repousa no matriarcado.

Para venerar a fecundidade da mulher, os homens reproduzem-lhe a imagem em estatuetas de marfim, e nas paredes das cavernas esses caçadores de mamutes traçam, junto a desenhos de animais, mãos humanas – poder secreto das mãos que se assenhoreiam das coisas. [...] Para os ritos dos cultos, que cavam seus templos em profundos subterrâneos, aperfeiçoa-se a pintura mural. Seu realismo vai até à procura do efeito: a magia suscitou o gênio artístico dos homens, ávidos de tornarem a caça frutuosa e suas mulheres fecundas. O gesto e o grito: dança e canto onde sempre se exprimirá, primeiro, a emoção humana, passando do realismo à abstração.”


RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Ediores, 1964. p. 9-10.

domingo, 16 de abril de 2017

Masculinidade no século XVIII

Luís XIV, Hyacinthe Rigaud

Masculinidade no século XVIII: um retrato oficial do rei Luís XIV, da França. Observe a peruca longa, a meia-calça, os sapatos de salto alto, a postura de bailarina - e a enorme espada. Na América contemporânea, todas essas coisas (com exceção da espada) seriam consideradas marcas de caráter efeminado. Mas em seu tempo Luís era um paradigma europeu de masculinidade e virilidade.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 159.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

O grande medo: o pânico vermelho

"Haverá uma matança; nós não vamos nos esquivar; terão que acontecer assassinatos; nós mataremos porque é necessário; nós vamos destruir para livrar o mundo das suas instituições tirânicas."

Manifesto anarquista, 1919, EUA

Em 1919, chocados com a onda de atentados a bomba que se espalhou pelo país, promovida por anarquistas e outros simpatizantes comunistas, os cidadãos norte-americanos aceitaram que uma série de direitos e liberdades fossem momentaneamente suspensos ou limitados. Permitiram que o procurador-geral Mitchel Palmer agisse com mão de ferro na captura dos esquerdistas, prendendo-os em massa ou banindo-os da América. Tal como passou a ocorrer a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center e ao Pentágono, muitas das prerrogativas individuais dos norte-americanos começaram a ser desconsideradas em vista do clima de insegurança que pairou sobre a nação. Mas como indica a própria história e como os acontecimentos do passado mostraram, as infrações aos direitos lá são sempre temporárias, rápidas como uma chuva de verão.

Cartoon político, 1919. 
Alley

Nem bem Ethel Williams, a secretária de um senador sulista, abriu o pacote, o conteúdo explodiu-lhe no seu rosto. Perdeu os braços, e a vida por muito pouco também não se foi. Era o dia 1º de maio de 1919, data memorável, escolhida pelos anarquistas para darem início à sua grande ofensiva de primavera-verão contra o estado norte-americano. Trinta dias depois, no 2 de junho, foi o próprio procurador-geral da república, A. Mitchel Palmer, homem de confiança do Presidente W. Wilson, quem teve parte da sua casa em Washington atingida por um outro petardo. "Pois bem", teria dito Palmer, "se gostam tanto de Lenin e de Trotsky, vou mandar todos eles para lá."

A casa do procurador-geral A. Mitchell Palmer, depois de ser bombardeado por Galleanist Carlo Valdinoci.
Fotógrafo desconhecido

Entrementes, os Estados Unidos inteiros tremeram. Greves e motins raciais em Chicago tinham como pano de fundo um festival de explosões em Boston, em Nova York e mais seis outras grandes cidades americanas. Os acontecimentos pareciam ter fugido do controle. A vitória dos bolcheviques na Rússia, seguida da derrota dos exércitos contra-revolucionários, acendera a luz verde para toda a esquerda norte-americana. Alucinados, acreditaram que era possível reproduzir na América as jornadas de Petrogrado e de Moscou, onde os guardas vermelhos levaram tudo de roldão. Se bem que a esquerda pró-soviética em geral apostasse nos movimentos de massa, apoiando a formação de sindicatos e o sufrágio feminino (recentemente aprovado), eram os anarquistas quem lideravam os desatinos.

Cinco policiais e um soldado com rifle na comunidade de Douglas, Chicago, durante a revolta de 1919. 
Foto Chicago Daily News

Numa só batida, a polícia encontrou 38 bombas. O temor impregnou a sociedade americana; o Red Scare, o Pânico Vermelho, tomara conta dos espíritos. Não demorou muito para que Palmer concentrasse enormes poderes. Se bem que o Congresso tivesse rejeitado uma legislação que fixava em vinte anos de prisão e pena para quem atentasse contra instituições americanas, estabelecendo ainda uma multa de vinte mil dólares para quem atacasse prédios públicos, Palmer, em sua ofensiva, infringiu a I, a IV, a VI, a VIII, a IX e a XIV emendas. As tão celebradas garantias individuais, orgulho maior dos americanos, logo viraram letra morta. A polícia de Palmer, reforçada pela contratação do jovem Edgar J. Hoover, que mais tarde seria o mandão do FBI, não se embaraçava por nada. Portas arrombadas, invasões ilegais, tiros para todos os lados, detenções arbitrárias - não houve o que os caçadores de comunistas e anarquistas não infringissem. O procurador-geral não queria perder tempo em distinguir quem era um esquerrdista ativo ou não. Prendeu todos. Legalmente amparado nos porretes jurídicos do Spionage Act de 1917 e no Sedition Act de 1918, num só dos seus Palmer Raids, um arrastão policial feito no dia 7 de novembro de 1919 para "comemorar" o segundo aniversário da revolução russa de 1917, levou dez mil para as cadeias. Foi a maior detenção em massa ocorrida na história dos Estados Unidos em tempos de paz. No ano seguinte, em janeiro de 1920, chegaram a mais de seis mil os encarcerados. Nenhum deles fora acusado formalmente de nada. Bastava serem suspeitos.

Anarquistas, comunistas e radicais reunidos no porto de Nova York para serem deportados, 1920.
Fotógrafo desconhecido.

Pessoas comuns foram sentenciadas a vários meses de cadeia por delito de opinião, tal como elogiar Lenin numa conversa de bar. Algo até então inédito no país. Mas a mão do xerife Palmer não abateu apenas a esquerda. Como a maioria dos anarquistas eram imigrantes italianos e os comunistas eram de origem judaica, os bairros latinos e judeus foram devastados pela fúria policial, alimentada pela histeria dos cidadãos anglo-saxões. "Carcamanos", "traidores de Cristo" era o que se ouvia em todas as partes. Situação que de alguma forma criou o clima para o célebre caso Sacco-Vanzetti, que logo iria eletrizar os Estados Unidos e o mundo (os dois italianos anarquistas foram acusados de assalto seguido da morte de um policial num crime ocorrido em Boston, em 1920).

Protesto para salvar Sacco e Vanzetti, Londres, Inglaterra, 1921. 
Fotógrafo desconhecido

No porto de Nova York, em dezembro de 1919, 249 esquerdistas pró-soviéticos foram embarcados à força no Buford, um barco de transporte da marinha de guerra. Palmer cumpria a sua promessa. Que fossem para a Rússia. A bordo da "Arca Soviética", como logo a imprensa o denominou, estava a nata da inteligência anarco-comunista daquela época, gente como a líder feminista Emma Goldman, Alexander Berckman, Mollie Steimer e tantos outros. Era o presente de Natal, disse Palmer, que os Estados Unidos mandavam para lenin e seus comparasas. Que fizessem bom proveito dele.

Emma Goldman abordando uma multidão na Union Square, em Nova Iorque, 1916.
 Fotógrafo desconhecido.

Em 1921, a coisa acalmou. Gradativamente os direitos civis foram recuperados, e a ordem constitucional reassumida na sua plenitude. A era louca dos Anos de Jazz começava. O som do trompete e do saxofone, do piano e do banjo tomou conta dos salões de dança. Se bem que a Lei Seca começasse a vigorar em 1920, isto não pareceu ter estragado a festa de ninguém. O Grande Gatsby, o herói de Scott Fitzgerald, abria os salões na sua mansão em Long Island, mandando acender uma luz verde no embarcadouro na esperança de atrair para si a bela Daisy Buchanan. O perigo passara, a vida continuava. Mitchel Palmer, homem de ocasião, não foi adiante com sua carreira política. Pior deu-se com Emma Goldman. Ao ver a terrível máquina que os bolcheviques criaram, testemunha do aplastamento da revolta dos marinheiros anarquistas da Fortaleza do Kronsdat, deixou a União Soviética em 1921, apontando-a como "a maior desilusão da minha vida".

SCHILLINGH, Voltaire. América: a história e as contradições do império. Porto Alegre: L&PM, 2004.p. 151-3.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

O Artemísion de Éfeso

O edifício do Templo de Ártemis em Éfeso.
Hendrik van Cleve

No final do 2º milênio a.C., os jônicos se apoderam da região da Ásia Menor situada entre o Hermos e o Meandro. No fundo de um golfo, perto da foz do Caistro, fundam a cidade de Éfeso. Colocada sobre a estrada real da Lídia, Éfeso se torna rapidamente uma cidade comercial muito importante e o centro financeiro da Ásia Menor. Na região, desde tempos imemoriais, venera-se uma divindade da Terra e da Fecundidade que os gregos comparam de maneira inesperada a sua deusa Ártemis. Uma primeira área cultural é edificada em Éfeso, mas destruída no século VII pelos cimérios.

Ártemis de Éfeso.  
Esta cópia da Ártemis do templo de Éfeso, com seus múltiplos seios e seu corpo encaixado, mostra a estranheza dessa divindade, que não se assemelha à deusa grega da Caça. 
Foto Klaus-Peter Simon

Em 560 a.C., o rei Creso da Lídia se apodera de Éfeso e decide reconstruir um templo esplêndido para Ártemis. Sua ambição é de rivalizar com os dois maiores templos da época, o de Hera em Samos e o de Apolo em Mileto. Para edificar o monumento sobre o solo instável, toma-se por modelo o arquiteto Teodoro, mestre de obras do Heraion em Samos, que tinha mandado colocar peles de carneiro e carvão de lenha sob as fundações. Dois arquitetos cretenses, Quersífron e seu filho, Metagenés, são os projetistas do magnífico Artemísion de Éfeso, em mármore branco azulado, cuja construção demorou quase cento e vinte anos.

Hermes vestindo um manto. 
Detalhe de uma coluna de mármore do Templo de Ártemis, Éfeso. 
Foto Marie-Lan Nguyen

Com seus 155 metros de comprimento e seus 55 metros de largura, o Artemísion é o maior monumento jônico. Nas 127 colunas de 19 metros de altura que cercam o edifício, 36, oferecidas pelo próprio Creso, apresentam a originalidade de ter tambores esculpidos em baixo-relevo. No ano 356 a.C., um desequilibrado, Eróstrates, põe fogo nesse esplêndido edifício, que desaparece completamente. Os efésios se empenham imediatamente na reconstrução do Artemísion, fazendo-o ainda mais belo e maior. Esse templo passa a fazer parte então das sete maravilhas do mundo.

A justa Antia levando suas companheiras para o templo de Diana em Éfeso.
Joseph Paelinck

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das civilizações antigas 2: Da Babilônia ao Exército Enterrado Chinês. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 129.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Deodoro da Sicília: a utilidade da História



Em todas as circunstâncias da vida, dever-se-ia acreditar que a história é a mais útil das disciplinas. Aos jovens ela confere a prudência dos adultos. Em relação aos velhos, ela redobra e multiplica a experiência já adquirida. Ela torna simples particulares dignos de governar, e, em relação aos governantes, ela os inclina a façanhas admiráveis pela imortalidade advinda da glória! Graças aos elogios que estes merecerão depois de sua morte, ela predispõe mais os militares a correr os riscos pela Pátria! E desvia os criminosos da senda do mal pelo temor às ignomínias eternas!

Deodoro da Sicília. In: PINSKY, Jaime. 100 textos de história antiga. São Paulo: Contexto, 2009. p. 149.

sábado, 8 de abril de 2017

Costumes bárbaros

Mulher Dacota e garota Assiniboin, Karl Bodmer

Os conquistadores britânicos ficaram zonzos de assombro.

Eles vinham de uma civilizada nação, onde as mulheres eram propriedade de seus maridos e a eles deviam obediência, como mandava a Bíblia, mas na América encontraram um mundo de cabeça para baixo.

As índias iroquesas e outras aborígenes eram suspeitas de libertinagem. Seus maridos não tinham nem mesmo o direito de castigar as mulheres que pertenciam a eles. Elas tinham opinião própria e bens próprios, o direito ao divórcio e o direito ao voto nas decisões da comunidade.

Os invasores brancos já não conseguiam dormir em paz: os costumes das pagãs selvagens podiam contagiar suas mulheres.

GALEANO, Eduardo. O caçador de histórias. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 24.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Conceito de civilização segundo o historiador Fernand Braudel

A consagração dos templos pagãos e a primeira missa no México-Tenochtitlán. José Vivar y Valderrama

Em um verbete de enciclopédia que escreveu em 1959, o historiador francês Fernand Braudel assim definiu uma civilização:

Em primeiro lugar, um espaço, uma "área cultural" [...], um lócus. Com o lócus [...] você deve imaginar uma grande variedade de "bens", de características culturais, desde a forma das casas, o material com que são construídas, seus telhados, até habilidades como a colocação de plumas em flechas, um dialeto ou grupo de dialetos, as preferências culinárias, uma determinada tecnologia, uma estrutura de crenças, um modo de fazer amor, e até mesmo o compasso, o papel, a imprensa. É o agrupamento regular, a frequência com que determinadas características ocorrem, sua ubiquidade em uma área precisa [combinada com] [...] alguma espécie de permanência temporal [...]

FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo: Planeta, 2012. p. 19.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Inglaterra, século XVIII: Céus e chãos

Humores de uma eleição, cena 3: A sondagem. William Hogarth

Inglaterra, século XVII: tudo subia.

Subia a fumaça das chaminés das fábricas,
subia a fumaça dos canhões vitoriosos, 
subia a maré dos sete mares dominados pelos cem mil marinheiros do rei inglês,
subia o interesse dos mercados por tudo o que a Inglaterra vendia e subiam os juros do dinheiro que a Inglaterra emprestava.

Qualquer inglês, por mais ignorante que fosse, sabia que ao redor de Londres giravam o mundo e o sol e as estrelas.

Mas William Hogarth, o artista inglês do século, não se tinha distraído contemplando os esplendores de Londres no alto do universo. As baixuras o atraíam mais que as alturas. Em suas pinturas e gravuras, tudo caía. Arrastavam-se pelo chão os bêbados e as garrafas,
as máscaras rasgadas,
as espadas quebradas,
os contratos rasgados,
as perucas,
os espartilhos,
a roupa íntima das damas,
a honra dos cavaleiros,
os votos comprados pelos políticos,
os títulos de nobreza comprados pelos burgueses,
os baralhos das fortunas perdidas,
as cartas do amor mentido
e o lixo da cidade.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 146-7.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Billie Holiday, diva do jazz

Billie Holiday, 1949.
Foto Carl van Vechten

Na tarde de 1º de dezembro de 1955, os 50 mil habitantes negros do bairro de Montgmery, no Alabama, Estados Unidos, estavam em polvorosa. A secretária da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que lutava pelo fim da segregação racial, Rosa Parks, tinha sido presa por ter utilizado um assento no ônibus, reservado por lei para brancos. Em 1954 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha declarado ilegal a discriminação racial nos colégios. Isso impulsionou a numerosa comunidade negra a empreender diversas lutas contra o racismo. O ápice desse processo se deu no dia do julgamento de Parks. Um boicote geral aos transportes foi marcado, contando com cerca de 90% de participação da comunidade negra local. Rosa Parks foi considerada culpada. O boicote foi ampliado. Nesse cenário, um jovem de 26 anos desponta como uma liderança capaz de aglutinar desejos, anseios por mudanças numa sociedade profundamente desigual. Seu nome era Martin Luther King, ou para alguns posteriormente, como o presidente Barack Obama, apenas o rei. Devido à forte atuação de Luther King, o boicote atingira seu objetivo, e em 13 de novembro de 1956 o Supremo Tribunal confirmava a decisão de um Tribunal Distrital transformando em inconstitucional a separação dos lugares dos ônibus de acordo com as raças. Essas vitórias judiciais vieram com duras e constantes lutas do movimento negro para se tornar reais, chegando ao ponto de o presidente D. Eisenhower ter de enviar tropas de paraquedistas para fazer cumprir o direito dos estudantes negros e brancos a uma educação comum. Foi nesse tumultuado contexto que a mais comovente cantora de jazz, Billie Holiday, narrou sua autobiografia.

Lançada nos Estados Unidos em 1956, a autobiografia, escrita com a colaboração do jornalista William Duft, da musa do jazz Billie Holiday, Lady Sings the Blues, foi fortemente influenciada pelo contexto das lutas raciais, da qual ela foi importante ativista. [...]

Com um estilo único e muito mais ligado ao jazz do que ao blues, a cantora americana Billie Holiday dava às músicas uma interpretação única que envolvia ao mesmo tempo uma técnica muito pessoal e uma dramatização vocal, transformando em belos sons músicas muitas vezes simples. Poucos foram os cantores ou cantoras que conseguiram influenciar músicos instrumentistas tão variados como os clarinetistas Artie Shaw e Tony Scott, o saxofonista Lester Young e os trompetistas Buck Clayton e Miles Davis, este último reconhecido como um dos principais músicos do século XX, além, é claro, de sua forte influência em cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Por não ter estudado música nem tampouco fazer leitura de partituras, talvez a única grande influência externa à obra de Holiday tenha sido o cinema, de onde tirou seu nome artístico em homenagem a atriz Billie Dove. Essa influência que o cinema exerceu no início desse modelo de canção não é perceptível apenas nas escolhas de Billie Holiday, podemos lembrar que Eunice Waymon adotou o nome Nina Simone em homenagem à atriz Simone Signoret.

Nascida no estado da Filadélfia em 1915, Eleanor Fagan, filha do músico Clarence Holiday e de Sarah Fagan, sua vida foi marcada por traumas e abandonos que a conduziram a um temperamento forte e, muitas vezes, impaciente e rude. Desde quando ainda era muito criança, seu pai saiu em excursão com sua banda e, a partir de então, ficou apenas com sua mãe, que ora a deixava com parentes, ora com vizinhos. Muito cedo começou a trabalhar como empregada e com 10 anos sofreu abusos sexuais de um vizinho, marcando para sempre sua vida. Aos 14 anos passou a morar definitivamente com sua mãe em Nova Iorque, onde começou a prostituir-se. Aos 15, então, começa seu contato mais próximo com a música. Desde cedo, quando trabalhava como empregada, Holiday pagava para escutar discos na casa de uma família. Seu dinheiro era gasto no aluguel de uma vitrola em que pudesse escutar seus discos prediletos, ou, em larga medida, os discos possíveis. Suas principais influências foram a popular cantora da década de 1920 Bessie Smith, conhecida como "A imperatriz do blues", e o trompetista Louis Armstrong, que, mesmo com estilos diferentes daqueles apresentados por Holiday ao longo da carreira, tiveram importância basilar em sua vida. Sua carreira teve início no Harlem, região com várias casas de música onde diariamente se apresentavam os mais variados músicos de jazz dos anos 1930. Depois de alguns anos cantando em casas noturnas, gravou seu primeiro LP com a banda do famoso clarinetista judeu Benny Goodman.

A partir de então sua carreira deslancha, chegando a gravar com as renomadas big bands de Artie Shaw e Count Basie. Seu sucesso passou a representar não só sua vitória pessoal, mas também a vitória do movimento negro contra o apartheid nos Estados Unidos, visto que ela foi a primeira negra a cantar com uma big band.

A música If my heart could talk fala de sonho, amor, e representa parte do que Billie Holiday sempre desejou. Ela teve relacionamentos com vários músicos, cineastas, artistas, e seu casamento foi um desastre, a conduzindo a um rude rompimento e uma profunda depressão. Na década de 1940, já estava presa ao mundo das drogas, sendo detida, processada, tendo shows cancelados e seu cabaret card cassado pela polícia, o que a proibia de cantar em bares que vendessem bebidas alcoólicas. O mundo das drogas, com uma constante pressão da mídia por conta de seus internamentos para tratamento, levou Holiday a um beco sem saída. O alcoolismo e a cocaína enfraqueceram sua já fragilizada saúde, levando Holiday a diversos problemas no fígado e coração. Com 44 anos, em 1959, o mundo perdia a voz mais singular do jazz, que morreu da forma como começou: simples, presa ao medo de não ser lembrada e amada. Holiday morreu com setenta centavos no banco e 750 dólares em notas grandes presos em sua meia. Junto com a cantora francesa Édith Piaf e com o pianista e cantor Ray Charles, foi uma das figuras mais polêmicas e discutidas de sua geração. Desde sua aparição no cinema em New Orleans, onde interpretava a empregada Endie, até suas canções de maior sucesso, como Strange fruit, que conta a história dos linchamentos sumários e das execuções públicas de negros nos Estados Unidos do século XX utilizando-se de metáforas extremamente singulares e chocantes, todos foram rodeados por muitas histórias de uma cantora que falou em forma de vida, uma vida contada e cantada. O compositor e ativista Josh White relembra o quanto Strange fruit era mais do que uma canção para Billie Holiday:

Ouvi o disco de Billie, e era algo tão forte que percebi que a canção [Strange Fruit] deveria ser usada para abrir os olhos das pessoas a certas coisas que não deveriam existir. Não queria lhe roubar nada. Amava sua interpretação da canção, mas queria apresentar Strange Fruit do meu jeito. Expliquei isso a Billie e acho que ela entendeu, depois veio frequentemente ao Café - em geral para o último espetáculo [...]. Por vezes arrastava-se e nem sequer entrava. Vinha de carro ao Village e sentava-se do lado de fora, ouvindo o rádio do carro, em companhia do seu grande boxer, Mister. Então começávamos a rodar de automóvel por todos os locais que ainda estavam abertos [...].

Falar de Billie Holiday, ou melhor, de Lady Day, como a chamava Lester Young, é ao mesmo tempo lembrar-se do quão popular foi o jazz e do quanto alguém conseguiu mergulhar em seu próprio tempo.

Mais do que uma singularidade complexa, Billie Holiday é, sem quaisquer dúvidas, uma das principais representantes da difusão do jazz e do blues nos Estados Unidos do início do século XX. Ultrapassando os núcleos de preconceitos raciais, Billie conseguiu atingir uma gama enorme de ouvintes ainda em vida e, a partir daí, demonstrar as fragilidades da sociedade americana. O famoso historiador inglês Eric Hobsbawn, em seu livro História Social do Jazz, estava correto quando afirmou que o jazz representou, em grande medida, uma forma de inserção social dos negros na preconceituosa sociedade norte-americana. O jazz em sua raiz é uma música popular tanto do mundo rural do sul quanto do urbano do norte. E, segundo o próprio Hobsbawn, algumas de suas caracterísitcas, mais no que concerne ao popular, foram mantidas por toda sua história: a importância da tradição oral na transmissão, a improvisação e velocidade de trocas e execução, dentre outros. Muitos desses aspectos podem até ser pouco reconhecidos no jazz contemporâneo, mas isso só comprova a tese de que é uma arte que não está morta, ao contrário, se mostra em constante desenvolvimento e dinamismo, ainda vinculada diretamente às percepções da sociedade nas quais está inserida.

SOUZA NETO, José Maria Gomes de [et alli]. Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. p. 383-87.

sábado, 1 de abril de 2017

Manuelas

Todos homens. Mas era uma mulher, Manuela Cañizares, quem os recrutava e os reunia para conspirar na casa dela.

Retrato de Manuela Cañizares. Antonio Andrade

Na noite de 9 de agosto de 1809, os homens passaram horas e horas discutindo, e sim, e não, e quem sabe?, e não se decidiam a proclamar, de uma vez por todas, a independência do Equador. E uma vez mais estavam adiando a questão para outra ocasião mais propícia, quando Manuela os encarou e gritou covardes medrosos, nascidos para servir. E ao amanhecer do dia, abriu-se a porta do novo tempo.

Outra Manuela, Manuela Espejo, também precursora da independência americana, foi a primeira jornalista do Equador. E como esse era um ofício impróprio para as damas, publicava com pseudônimo seus audazes artigos contra a mentalidade servil que humilhava a sua terra.

Retrato de Manuela Sáenz. Autor desconhecido.

E outra Manuela, Manuela Sáenz, ganhou fama perpétua por ser amante de Simón Bolívar, mas além disso ela foi ela: a mulher que combateu contra o poder colonial e contra o poder macho e seus puritanismos hipócritas.

GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 256.