"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O colonialismo no século XIX

"As raças superiores têm um direito perante as raças inferiores. Há para elas um direito porque há um dever para elas. As raças superiores têm o dever de civilizar as raças inferiores". 
(Jules-Ferry, Discurso no parlamento francês, jul. 1885. In: Laima Mesgravis. A colonização da África e da Ásia: a expansão do imperialismo europeu no século XIX. São Paulo: Atual, 1994. p. 32.)

Ilustração da edição de 16 de janeiro de 1898 do Le Petit Journal. Nessa charge são representados governantes ou alegorias, respectivamente, da Inglaterra, Alemanha, Rússia, França e Japão - ao fundo, China. Ela revela de modo expressivo os problemas, os conflitos e as angústias que afetavam as sociedades na passagem do século XIX para o século XX.

Os interesses pela conquista de territórios de além-mar, desenvolvidos nos séculos XVI e XVII, arrefecidos no século XVIII, renasceram no último quartel do século XIX. A expansão colonialista seguida por algumas nações chamou-se imperialismo.

Dois fatores principais nortearam os interesses colonialistas:

a) Fatores econômicos. A industrialização crescente e o nível de vida cada vez mais elevado apontaram a necessidade de obter fontes de matérias-primas, várias delas situadas em áreas tropicais. Por outro lado, a concorrência entre as nações industrializadas levou-as à procura de novos mercados e de oportunidades, fora da Europa, onde investir as grandes somas de capitais excedentes.

b) Fatores políticos. Rivalidades nacionais entre os países do mundo ocidental os induziram a aumentar seu prestígio político conquistando territórios em outros continentes. Pareceu-lhes também oportuno, como medida de segurança nacional, apoderarem-se de ilhas longínquas ou estrategicamente localizadas. Essas conquistas fizeram-se, às vezes, por simples motivos de precaução no intuito de impedir que esses pontos estratégicos caíssem em poder de inimigos em potencial.

Assim a grandeza de uma nação começou a ser aquilatada em termos de suas possessões coloniais. As dissidências entre os países provocadas por suas reivindicações imperialistas foram um fator importante que conduziu à Primeira Guerra Mundial.
   
* Parcelamento dos continentes

África. O século XIX assistiu a uma penetração sistemática e intensa do continente africano da parte das grandes potências europeias, movidas por objetivos econômicos e políticos.

Vários exploradores haviam revelado à Europa a riqueza e o significado econômico de vastas áreas africanas, até então desconhecidas: os britânicos Richard Lander (1830-1840, todo o curso do rio Níger), Richard Burton (1858, Tanganika), John Speke (1858, lago Vitória e nascentes do rio Nilo), David Livingstone (1857-1873, sudeste africano e cataratas de Vitória); o alemão Heinrich Barth (1850, lago Chad); o norte-americano Henry Stanley (1871, todo o percurso do rio Congo).

Foi a partir de Stanley – conseguindo interessar a Bélgica na exploração econômica das riquezas naturais da região do Congo – que se iniciou, com a mesma finalidade, a ocupação sistemática e intensiva da África pelas principais potências europeias.

A exemplo de Stanley, outros exploradores, após devassarem territórios virgens, reclamaram para seus países as terras percorrias: Pierre de Brazza reclamou para a França regiões da África Ocidental, Karl Peters reivindicou para a Alemanha região na África Oriental, Vittorio Bottego para a Itália terras ao longo do Mar Vermelho, e Cecil Rhodes para a Inglaterra a Rodésia e a Bechuanalândia.

Em nenhum outro continente o imperialismo colonialista implantou-se tão rapidamente como na África. Em vinte anos, a partir da penetração sistemática do continente, 90% das terras africanas passaram para as mãos dos europeus.

Ásia. A penetração do continente asiático pelos europeus foi também movida, como na África, por objetivos econômicos e políticos, mas se verificou de maneira diversa, pois países de culturas antigas aí existentes resistiram longo tempo às investidas dos ocidentais: China e Japão.

A China, no início da época contemporânea, apresentava-se isolada do resto do mundo, com apenas dois portos abertos ao comércio internacional: Cantão e Macau. No século XIX uma série de guerras forçaram os chineses a abrir seu país e a manter contato com os europeus.

A Guerra do Ópio (1841-1842), com a Inglaterra, começou quando os chineses não mais permitiram o comércio do ópio, contrabandeado da Índia, e destruíram em Cantão um carregamento de propriedade inglesa. Ao protesto armado da Inglaterra a China curvou-se, cedendo aos ingleses a ilha de Hong-Kong, abrindo cinco portos ao comércio britânico e, posteriormente, ao comércio francês.

Invasão britânica de Cantão pelos ingleses em 1858

Sofrendo contínuas pressões da Inglaterra e da França e um ataque imperialista do Japão, que buscava conquistas territoriais, a China viu-se obrigada a abrir vários outros portos ao comércio europeu e a fazer também novas concessões financeiras e comerciais a outros países da Europa.

Todo esse processo levou à Revolta dos Boxers, organização secreta chinesa que exigia a expulsão dos estrangeiros de seu território. Os boxers foram no entanto derrotados por um exército constituído de europeus, norte-americanos e japoneses. A China teve de pagar indenizações e reconhecer as possessões efetuadas anteriormente, recebendo porém em troca a garantia de sua integridade territorial; pôde assim passar por sucessivas transformações modernizadoras que culminaram com a proclamação da República chinesa (1912).

Revolucionário boxer

O Japão, tal como a China, vivia ainda, no século XIX, dentro de uma estrutura feudal, isolado do resto do mundo.

O isolamento quebrou-se quando o imperador japonês – acedendo ao pedido do governo dos Estados Unidos feito por intermédio do comandante de uma frota americana – resolveu assinar dois tratados (1854, 1858) mediante os quais abria vários de seus portos ao comércio dos Estados Unidos. Pouco depois outras nações negociaram tratados semelhantes.

Uma vez tendo entrado em contato com as civilizações ocidentais o Japão demonstrou sua rara capacidade de assimilação rápida. Desfazendo-se das velhas estruturas feudais enveredou pelo caminho do desenvolvimento econômico e industrial que, em poucos decênios, conduziu o país a uma política imperialista e transformou o Império Japonês em uma grande potência.

Oceania. No século XIX, com o aparecimento dos navios a vapor permitindo cobrir grandes distâncias, as ilhas do Oceano Pacífico tornaram-se muito importantes para o Ocidente. Além de servirem de postos de abastecimento de combustível e de víveres, ofereciam novas áreas fornecedoras de matérias-primas, razão pelo qual nações ocidentais disputaram entre si a sua posse. A Inglaterra, a França, a Alemanha, os Estados Unidos conseguiram fixar-se em numerosas ilhas do Pacífico. HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 241-243.

* O legado do imperialismo

"Antes do aparecimento dos europeus, todos os habitantes nativos do território eram economicamente autossuficientes [...]. Cada família banto produzia sua alimentação plantando e criando gado; também construía as próprias cabanas e fazia a maioria de suas roupas e utensílios domésticos [...]. Desde a vinda dos europeus, essa antiga autossuficiência se desmoronou". (WODDIS, J. África, as raízes da revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. p. 25.)

Esta foto de 1993, mostra uma criança do Sudão faminta sem forças para continuar rastejando para um campo de alimento da ONU. Ganhadora do Prêmio Pulitzer em 1994 e publicada pelo The New York Times, a foto foi tirada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter.

A I Guerra Mundial foi um ponto decisivo na história do imperialismo, embora nem as metrópoles nem as colônias parecessem ter consciência disso na época. O princípio de autonomia, defendido pelas nacionalidades europeias na conferência de paz, foi adotado pelos intelectuais asiáticos e africanos, que intensificaram seus esforços antiimperialistas. Após a I Guerra Mundial, as exauridas potências coloniais hesitaram em combater as colônias rebeldes. Além disso, depois de guerrearem para destruir o imperialismo e racismo nazistas, as potências coloniais europeias tinham pouca justificativa moral para negar autonomia a outros povos.

Quase um século após a rápida divisão do mundo entre as potências europeias e os Estados Unidos, e décadas depois da descolonização quase total, as consequências do imperialismo ainda persistem. O imperialismo deixou uma herança de profundas animosidades nos países da Ásia, África e América Latina. Embora a maioria das nações tenha independência política, os nacionalistas se ressentem das influências culturais e econômicas do Ocidente. Grande parte do mundo ainda é pobre e padece de insuficiência de capital, líderes incapacitados e governos instáveis. Muitas pessoas nessas regiões pobres acreditam que a situação de seu país deve-se aos anos de exploração ocidental.

Para os antigos povos coloniais, o imperialismo foi causa de grande ressentimento, não somente devido à exploração econômica, mas também por ter encorajado o racismo e pelo insensível desrespeito às outras culturas. Assim, o nacionalismo não ocidental incluiu muitas vezes elementos antiocidentais. Atualmente, as nações europeias e os Estados Unidos têm de lidar, no âmbito da economia e da política, com nações profundamente conscientes de sua nacionalidade e prontas a condenar qualquer política que lhes pareça imperialista.

O imperialismo acelerou o crescimento de uma economia de mercado global, concluindo a tendência que teve início com a revolução comercial dos séculos XVI e XVII. No começo do século XX, em muitos partes da Europa, tanto as classes trabalhadoras quanto as camponesas tinham condições de comprar mercadorias de lugares distantes - mercadorias que antes eram acessíveis apenas às pessoas muito abastadas. As regiões subdesenvolvidas do mundo, por sua vez, encontraram mercado para suas colheitas e puderam comprar mercadorias europeias - os ricos pelo menos puderam.

O imperialismo também fomentou a difusão da civilização ocidental em todo o globo. A influência das ideias, instituições, técnicas, idioma e cultura ocidentais é manifesta em todos os lugares. O inglês e, até certo ponto, o francês são línguas internacionais. Os países africanos e asiático adotaram, muitas vezes com limitado sucesso, o governo parlamentar e a democracia do Ocidente. O socialismo, uma ideologia ocidental, foi transplantado nos países do Terceiro Mundo. O industrialismo e a ciência moderna, ambos realizações do Ocidente, tornaram-se globalizados, como também as técnicas agrícolas, as práticas comerciais, a medicina, os procedimentos legais, os currículos escolares, a arquitetura, a música e as roupas. A mulher turca já não é mais obrigada a usar véu; a mulher chinesa não precisa mais amarrar os pés; os indianos proscreveram a intocabilidade; os árabes, africanos e indianos já não precisam mais a escravidão - todas essas mudanças ocorreram sob a influência das ideias ocidentais. (Certamente, as formas culturais não se deslocaram apenas numa única direção: os modos africanos e asiáticos também influenciaram os ocidentais.) O impacto das maneiras ocidentais sobre o Terceiro Mundo constitui um dos desenvolvimentos mais importantes de nossa época. PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 479-480.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os conquistadores: homens ou feras?

Os conquistadores rezam antes de entrar em Tenochtitlan, Margaret Duncan Coxhead


Homens ou feras? Como saber! Feras por sua crueldade e seu desumano valor. Homens por suas paixões brutais, fora do comum. Seres capazes de procurar minas de prata a 4.000 metros de altura. E de construir lá, em Potosi, aquela que, em determinado momento, foi uma das grandes cidades do mundo. Ir até o vulcão Popocatepelt - como  fez Diego de Ordaz - a 5.400 metros, enfrentar o frio rigorosíssimo, o vento forte e a nevem para tirar dele o enxofre necessário para fabricar a pólvora.

De que madeira eram feitos os que enfrentaram as febres tropicais que matam num piscar de olho? Enfrentar os mosquitos devoradores. Os pântanos que tragam seres humanos, animais vistos como diabólicos - o iguana foi um deles -, espécie de versão nativa dos fabulosos dragões que Dom Quixote acreditava existir. De que metal eram feitos já que nada os conseguiu deter: a sede, a fome e as flechas envenenadas dos índios caribes?

Talvez fossem, ao mesmo tempo, homens e feras, capazes de perder tesouros num jogo de baralho, tesouros roubados dos índios e que custaram esforços enormes, sacrifícios tremendos. E que se a situação o exige, são capazes de devorar-se a si mesmos, quando já não se aguenta mais a fome. Capazes de colocar no próprio altar de Huitzlopochtli, o grande deus dos astecas (um altar onde ainda está quente o sangue das vítimas imoladas) a imagem de Virgem Maria, e isso diante dos olhares perplexos e raivosos dos derrotados.

Como podemos saber o que eles são! Observemos Balboa, o descobridor do Mar do Sul (Oceano Pacífico), entrando de joelhos na água, uma espada na mão direita e na mão esquerda um estandarte no qual a imagem da Virgem - novamente ela! - tem o reino de Castela a seus pés. Atrás, o capelão com a Cruz. E o grito estremecedor: "Viva os grandes e poderosos reis de Castela!" A cruz e a espada unidas. A cruz para catequizar pagãos, para afugentar o diabo, para crucificar os índios. A espada para vencê-los em combates desiguais, como se fosse um torneio enlouquecedor. A espada, ou o punhal, para assassinar também o desprevenido camarada das duras jornadas e roubá-lo.

Homens e feras ou simplesmente homens? Que nome dar àqueles que, por ordem do Marquês de Montes Claros, vice-rei do Peru, destróem num só dia tudo o que eles chamam de falsa adoração indígena. Que, como uma maldição bíblica, arrasam a cidade de Tenochtitlán e utilizam as próprias pedras de suas ruínas para construir a cidade do México. Como qualificar Juan de Zumárraga, bispo do México que faz um auto-de-fé com os manuscritos que encerram a ciência e a cultura dos astecas, tal como já o havia feito em Toledo (Espanha) o cardeal Cisneros com os manuscritos árabes.

É difícil encontrar a expressão exata para aqueles que, em nome da religião e levados por uma cobiça de aves de rapina açoitaram povos e civilizações. Talvez, simplesmente, conquistadores... Homens de um tempo em que Lutero, reformador religioso, exigia matar camponeses alemães como se fossem raivosos. Homens, provavelmente, não piores que nós.

POMER, León. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 92.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O pensamento egípcio antigo

Pesando o coração. Livro dos mortos. Tumba de Ani.

Em linhas gerais, o pensamento dos antigos egípcios aparece marcado, em primeiro lugar, por seu caráter pré-filosófico e mítico. Note-se que isto não significa que tenha sido um pensamento pré-lógico; quer dizer, simplesmente, que a abstração, a generalização e os jogos mentais "puros" não constituíam suas características centrais. O raciocínio egípcio se baseava na acumulação de exemplos concretos, não em teorias gerais. Estava, outrossim, engajado no esforço de preservar a estrutura político-social vigente e a ordem cósmica, através de uma ética e de observâncias rituais adequadas; ou em fornecer, pragmaticamente, regras ou receitas funcionais às diversas atividades. O mito explicava o mundo descrevendo, em cada caso, como algum fato supostamente se dera pela primeira vez num longínquo passado. Um sentido cíclico do tempo e do universo fazia com que tal ocorrência primordial continuasse tendo vigência e atualidade; o conhecimento (mítico) do passado das coisas permitiria, pois, entender o seu desenrolar atual e futuro.

Dissemos que o pensamento egípcio estava interessado na preservação do estado de coisas: era, assim, conservador e conformista em forma predominante (quando não abertamente oportunista, ao legitimar a ânsia de agradar aos poderosos). Isto se liga, em primeiro lugar, à estabilidade estrutural básica - através de múltiplas mudanças - que caracterizou [...] a civilização faraônica através dos milênios. Tal fato reforçava a convicção de existir uma ordem necessária, legítima e desejável no mundo e na sociedade. Em segundo lugar, é evidente que a minoria de letrados, que nos deixou as únicas fontes escritas disponíveis para o estudo das opiniões e ideias do antigo Egito, estava direta ou indiretamente comprometida com o Estado faraônico. Monarcas, sacerdotes, escribas, funcionários e militares acreditavam que, no princípio da história, os deuses haviam reinado pessoalmente neste mundo, sendo o rei-deus o seu legítimo herdeiro e sucessor: a ordem cósmica e político-social, encarnada na deusa Maat (justiça-verdade ou norma justa do mundo), tinha pois uma base sagrada, tal como o respeito pelas opiniões dos antepassados.

Continuando com as características centrais do pensamento egípcio, mencionemos agora um princípio que o caracteriza, discernível em todas as manifestações religiosas, cosmogônicas e de outros tipos, e que se convencionou chamar de diversidade de aproximações. A um homem de hoje pode parecer incoerente e contraditório que o céu pudesse ser descrito como uma vaca, como uma mulher, e ainda como um rio no qual navega o barco do Sol. Ou que Osíris - deus ligado à ideia do renascer, daquilo que morre e volta a despertar - fosse associado ao mesmo tempo a coisas tão diferentes quanto a cheia do Nilo, que decorreria dos humores que fluem de seu cadáver (em outra versão, aliás, ela seria provocada por outro deus, Khnum, residente na primeira catarata), o grão que é enterrado e germina, a Lua com suas fases, e finalmente o Sol noturno que atravessa o mundo subterrâneo; sem que, por outro lado, Osíris pudesse esgotar qualquer destes fenômenos, que em outros de seus aspectos eram associados a deuses e mitos diferentes. Um egípcio antigo, porém, tratava de esgotar tantos aspectos quanto pudesse de cada fato do mundo visível ou divino, através da justaposição de imagens variadas mas, para ele, complementares - outras tantas aproximações possíveis a uma realidade complexa e talvez inefável ou inesgotável - e não contraditórias ou excludentes. No que para nós pode parecer um amontoado de absurdos e contradições, o raciocínio teológico, por exemplo, tratou de conciliar diferentes tradições paralelas, divergentes entre si, mas todas consideradas igualmente sagradas, através de assimilações, sincretismos e outros recursos. O universo era visto como o domínio de forças que se podem manifestar em formas diversas, todas igualmente válidas. Por que, então, se espantaria um egípcio de que a deusa Hathor se manifestasse sucessivamente como uma vaca, uma mulher, uma serpente, uma leoa, uma chama ou através de uma árvore? Ou de afirmações como a de ser Ra a face de Amon e Ptah o corpo deste, sem que por isto Ra e Ptah deixassem de ser também deuses distintos?

Por fim, os egípcios professavam uma crença no poder criador da palavra e, por extensão, das imagens, dos gestos e dos símbolos em geral, que se articulava com a possibilidade de coagir os deuses e o cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de Mênfis, numa das versões do mito da criação do mundo, gerou deuses simplesmente pronunciando os respectivos nomes. O raciocínio mítico muitas vezes funcionava através de trocadilhos, pois ao ter a palavra poder criador, as coisas designadas por termos homófonos ou de pronúncia semelhante se equivalem - já que o nome é a coisa. Por exemplo, dizia-se que Ra, chorando (rem), criou os homens (romé) e os peixes (ramu). A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas variadas de ações mágicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade, podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais, gesticulação ritual, textos, desenhos... A representação do rei, nos relevos dos templos, dominando os inimigos do Egito, garantiria a segurança do país através da constante vitória sobre tais inimigos. Se um dado rito exigia o sacrifício de um hipopótamo - ação bastante incômoda e complicada -, quebrar uma estatueta de hipopótamo magicamente consagrada surtiria o mesmo efeito. Se os encarregados do culto funerário se descuidassem do oferecimento de vitualhas ao morto, a representação pictórica de pães e outros alimentos nas paredes da tumba teria efeito equivalente. E assim por diante.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p. 83-87.

sábado, 26 de novembro de 2011

Homoerotismo na Idade Média

Ilustração medieval que retrata clérigos sodomitas.

Para os antigos, o homoerotismo não constitui um problema. Eles pensam segundo conceitos que não são os sexuais, a saber, a liberdade, a atividade, a condição social: a homofilia ativa aparece tanto nos textos gregos como nos romanos. Durante a Alta Idade Média, o homoerotismo não foi condenado nem reprimido com dureza, ao contrário do que afirmaram outrora os historiadores. Com o renascimento carolíngio, o ímpeto de crescimento das cidades e o desenvolvimento da cultura eclesiástica, ele teria conhecido, entre os séculos XI e XII, uma expansão apenas comparável à de nossa época.

É bastante evidente que os meios monástico e cavalheiresco - os guerreiros vivem com muita frequência longe dos quartos das damas, e mesmo quando procuram compensações fora do lar - constituem terrenos propícios para a homossexualidade. Mesmo tomando conhecimento, com espanto, de que alguns monges praticam a sodomia, Carlos Magno não publica nenhum texto reprimindo o homoerotismo. Entretanto, um édito aconselha padres e bispos a suprimir esse comportamento sexual, sem indicar nenhuma sanção. Na mesma época, o homoerotismo se desenvolve nas cidades da Espanha onde são recenseadas todas as categorias de relações sexuais, da prostituição ao amor espiritual. A poesia hispano-árabe tem numerosos poemas eróticos celebrando relações homossexuais.

Alguns muçulmanos têm, inclusive, cristãos como amantes, como é o caso do soberano do reino de Sarogoça, no século XI, que se apaixona por seu pajem cristão. O homoerotismo se propaga com o renascimento das cidades, como atesta um grande número de escritos de clérigos fazendo alusão a sentimentos que às vezes permanecem no plano espiritual, mas também podem se concretizar de modo carnal.

Por volta de 1051, são Pedro Damião compõe O livro de Gomorra em que descreve detalhadamente vários tipos de relações homossexuais. Ele acusa alguns padres de serem homossexuais e se confessarem uns com os outros para evitar que fossem descobertos e para ter penitências mais leves. O papa Leão IX recusa-se, porém, a acatar seu pedido, qual seja, o de excluí-los da Igreja. O homoerotismo, aliás, não impede as promoções. Yves de Chartres assinala ao enviado do papa e, depois, ao próprio papa, que o arcebispo de Tours, Raul, persuadiu Felipe I a nomear um certo João como bispo de Orléans. Ora, trata-se de um amante do arcebispo.

Por ocasião da reforma gregoriana, que impõe o celibato aos padres, os contemporâneos observam que os padres homossexuais são mais ardorosos que os heterossexuais no seu cumprimento.

O homoerotismo não é exclusividade dos clérigos. Georges Duby, em sua obra sobre Guilherme, o Marechal - que estudou a partir de um texto em versos escrito por volta de 1230 narrando a história de um valoroso cavaleiro morto em 1219 - mostra bem o lugar do amor no universo cavalheiresco:

"Assim, tudo neste caso gira em torno do amor, mas não nos equivoquemos em torno do amor de homens entre si. Este já não nos espanta. Começamos a descobrir que o amor, aquele que cantavam, depois dos trovadores, os trouvères, o amor que o cavaleiro devota à dama, mascara talvez o essencial, ou melhor, projetava a imagem invertida do essencial dos intercâmbios amorosos entre guerreiros".

É preciso se perguntar, porém, se esse amor implica relações carnais. Para Yannick Carré, tudo indica que o amor masculino medieval constitui uma forma original de amor verdadeiro que o mundo atual não conhece mais. Os ritos de amizade, como beijar e compartilhar o leito, permitem a esse amor exprimir-se livremente quando ele é carnal. O homoerotismo está disseminado nos diversos países do Ocidente cristão como também nos países escandinavos, e inclusive na Terra Santa.

Uma literatura gay ressurge entre 1050 e 1150. A maioria de seus autores são eclesiásticos de posição elevada como Baudri, abade de Saint-Pierre de Bourgueil, depois arcebispo de Dol-de-Bretagne, ou Marbode, bispo de Rennes.

No começo do século XIV, o rei da Inglaterra, Eduardo II (1284-1327), marido de Isabel da França, que lhe deu muitos filhos, é reconhecido como um notório homossexual. Seu primeiro amante, um certo Piers Gaveston, que fora exilado pelo rei Eduardo I, é chamado de volta tão logo ele sobe ao trono; mas é novamente exilado pelo Parlamento antes de ser assassinado. Depois disso, Eduardo mantêm relações com Hugues, o despenseiro. Mas os dois amantes perecem de maneira trágica. Froissart relata que os órgãos genitais de Hugues são cortados e queimados publicamente antes de sua decapitação. Quanto a Eduardo, ele sofre um suplício bárbaro: introduzem-lhe no ânus um ferro em brasa.

Sodomitas queimados na fogueira. Ilustração medieval. Artista desconhecido.

Uma nova época se inicia. À tolerância, sucede a repressão. Todavia, essa regressão não põe fim ao homoerotismo. Além disso, para frear este último, a prostituição é encorajada em alguns casos. Assim foi na cidade de Florença, no início do século XV. Embora se encontrem homossexuais tanto em Nápoles quanto em Veneza ou Gênova, os sermões de pregadores toscanos como Bernardino de Siena, por volta de 1320, certas passagens de Dante em O inferno, as medidas repressivas tomadas pelas autoridades nos séculos XIV e XV mostram que as cidades toscanas, e Florença particularmente, são seus principais centros.

Desfaz-se, assim, a visão de uma Idade Média preocupada, sobretudo, em obedecer prescrições da Igreja.

Jean Verdon. Os bordéis, casas das mais toleradas. In: Revista História Viva. São Paulo: Duettoano 1, n. 5, mar/2004, p. 44-45.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Uma Europa no Brasil: o início do século XX

Au Parc Royal: importados, para pessoas importantes. Rio de Janeiro, início do século XX.

London and Brazilian Bank, National City Bank of New York, Banco Alemão, London and River Plate Bank, British Bank of South America... O número de bancos crescia rapidamente no país! Era o progresso chegando mais uma vez! ("Progresso" interminável esse, quando chegaria para todos?).

Muito progresso sim, mas muitos empréstimos também. Durante toda a República Velha - de 1889 a 1930 - o Governo Brasileiro iria pedir vinte e sete empréstimos aos banqueiros da Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Holanda e França. O Brasil, assim, continuava cheio de dívidas no exterior, e por isso dependente das grandes potências capitalistas.

Au Printemps, Au Louvre, Au Parc-Royal, Notre-Dame de Paris, A La Pendule Suisse. O comércio fino e importado - para as pessoas "importantes"! - era a maior atração da "Terra do Café". As ruas centrais do Rio de Janeiro, iluminadas pela Brazilian Traction Light and Power Co. Ltd., tinham vitrines de luxo. Uma Europa no Brasil!

Frigoríficos? Já tínhamos o Armour, o Swift, o Wilson... Indústrias alimentícias? Tínhamos a Anderson Claybon e a Sanbra. Também já eram montados no Brasil os primeiros automóveis: a proeza ficava por conta da General Eletric e da General Motors.

As indústrias estrangeiras iam penetrando no Brasil e em outros países da América Latina, como Argentina, México e Peru. Esses países, apesar dos benefícios trazidos pelos novos investimentos, pagavam caro por isso. Um exemplo: os trabalhadores latino-americanos recebiam salários bem menores que os trabalhadores dos países desenvolvidos. Outro exemplo: grande parte dos lucros dessas indústrias filiais era enviada para as suas matrizes, isto é, as sedes dessas firmas, localizadas no país de origem. Como as matrizes mandavam para as suas filiais as máquinas velhas e ultrapassadas, ficavam sempre em vantagem. O Brasil desenvolvia-se, mas não deixava de ser dependente.

Bancos, lojas, indústrias: o capitalismo avançava no Brasil. Mas o Brasil continuava fazendo parte de uma divisão internacional da produção, que funcionava mais ou menos como nos tempos coloniais: as ex-colônias (como o Brasil), além das colônias que ainda existiam no mundo, deviam servir à mesa dos europeus e norte-americanos! Da Argentina saía o bife; da América Central as frutas e os doces; do Brasil - advinhem? - o cafezinho, claro. E para completar a satisfação dos donos do mundo, charutos especiais de Havana, feitos com fumos finíssimos produzidos pelos trabalhadores cubanos!

Por essa razão é que as firmas de exportação de café, cacau e açúcar davam muitos lucros aqui no Brasil. Os capitalistas ingleses não perderam também essa oportunidade: eram donos de quase todas essas firmas.

Qual era o papel dos países desenvolvidos na divisão internacional da produção? Produzir e exportar para os não desenvolvidos os produtos de suas grandes e poderosas indústrias. 

(A quem essa situação interessava? A quem não interessava?)

Assim como no Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também mudava muito no início do século. O centro da cidade era um retrato da nova época: luxuosos hotéis, como o Hotel da França, o Grand Hotel Paulista e o Club Internacional; grandes jornais, como o Correio Paulistano, o Diário Popular, o Estado de São Paulo, além de firmas comerciais e bancárias. A capital paulista ia-se tornando um verdadeiro centro do capitalismo no Brasil. E o Brasil vivia a sua belle époque, como muitos começaram a dizer: época de progresso, riqueza e otimismo para a burguesia brasileira que nascia.

As famílias mais ricas da burguesia do café, dos grandes comerciantes e dos donos das indústrias foram morar em novos bairros: Santa Ifigênia, Campos Elísios, Consolação e Higienópolis, onde se chegava através da recém-construída e elegantíssima Avenida Paulista.

Nesses bairros foram construídos clubes com piscinas, quadras de esportes e salões de jogos, além de bons colégios e luxuosos cinemas.

As crianças quase não iam à rua. Quando iam era para brincar com meninos e meninas de sua própria classe social. Ou então para tomar a carruagem que as levaria aos seus colégios, onde ainda recebiam as palmatoadas e os beliscões do tempo antigo...

Os colégios católicos continuavam sendo os mais conservadores. Um dos mais tradicionais ficava em Minas Gerais. Era o Colégio do Caraça, fundado em 1774.

- Mando-te para o Caraça! era uma frase que nenhum menino levado gostava de ouvir.

"Matricule sua graciosa filhinha no Notre Dame de Sion. Ensinamos boas maneiras, com curvatura à francesa", dizia um anúncio da época.

Essas escolas - consideradas as melhores - formavam os jovens da burguesia rural e industrial. Lá eles se preparavam para suas futuras e importantes profissões e sonhavam em se tornar adultos modernos, práticos e esportistas. "Sportman", como recomendava o "modelo" de homem que também importávamos dos EUA:

"Adão fuma; Adão joga; Adão bebe, vai ao 'club'; esgrima; é 'captain' de um 'team' de 'football'; campeão de 'tennis'; e do 'cricket'; juiz de um 'club' de regatas; diretor da Sociedade Protetora dos Animais que andam sem coleira; membro honorário do Instituto Histórico e da Sociedade Hanhemaniana contra a hidrofobia e benemérito de quatro associações operárias de resistência ao trabalho", dizia a Revista Feminina, no ano de 1918.

E "Eva"?

Para a maioria das pessoas da época, "Eva" deveria mesmo era continuar no "paraíso". É o que afirmava a Revista Iris em 1905:

"Aos doze anos, a mulher é a crisálida que espera a luz do amor para tornar-se domada borboleta; aos treze, é um poema lírico a que falta a última estrofe; aos catorze, é um hino de harpa; aos quinze, é um astro em torno do qual rodopiam a graça, a harmonia e o amor; aos dezesseis é uma estátua da Madona que procura um coração de homem para dele fazer o seu altar..."

O novo século, porém, já conhecia as "Evas" secretárias, enfermeiras, datilógrafas, advogadas, balconistas, professoras e operárias. "Evas" que iam ficando menos dependentes dos seus "Adões".

Bertha Lutz, bióloga, advogada e líder de um movimento de libertação de mulheres, era uma dessas Evas menos domésticas. Em 1918 ela dizia coisas bem diferentes das publicadas pelas revistas femininas da época:

- Uma das maiores forças de emancipação e do progresso está na educação da mulher e do homem. Dela, para que seja intelectualmente igual e para que sua vontade se discipline. Dele, para que se acostume a pensar que a mulher não é um brinquedo para o distrair; para que, olhando sua esposa, suas irmãs, e lembrando-se de sua mãe, compreenda e se compenetre da dignidade da mulher. Para conseguirmos esse resultado, para mostrarmos a nossa equivalência, um esforço individual e coletivo é necessário. (Bertha Lutz. Cartas de mulher. Revista da Semana. Rio de Janeiro. 28/12/1918)

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 63-67.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Dos lampiões à eletricidade: mudanças no cotidiano

Acendedor de lampião

Quem cuidava da iluminação eram os vaga-lumes. Não o inseto, é claro. Mas os profissionais responsáveis por acender e apagar os lampiões das cidades. Eles eram fundamentais até 1930, quando eletricidade ainda era artigo raro e, no lugar de lâmpadas, os postes usavam gás. Eles tinham de ser acendidos e apagados todos os dias por alguém e já eram uma invenção e tanto. Antes deles, a rotina de todo mundo durava só enquanto houvesse a luz do sol. No Brasil, onde os dias são sempre longos e claros, isso não era um problema tão grande, mas nos países mais frios, como a Inglaterra, isso significava ter apenas seis ou sete horas ativas durante o inverno.

Os ingleses ficaram tão impressionados com a criação dos postes a gás, que não tiveram coragem de usá-los em abundância. Em 1830, Londres só acendia todos os postes duas vezes por ano: no aniversário da rainha Vitória, 24 de maio, e no aniversário do príncipe de Gales, 9 de novembro. Nos outros dias, só se houvesse uma notícia muito boa, como o fim de uma guerra.

Para sair de casa à noite, adultos usavam tochas, e crianças, uma espécie de lanterna improvisada. Ela era feita com uma lata de óleo cheia de gravetinhos com fogo e tinha de ser girada vez por outra para que não apagasse.

Domingo à noite em Neustift am Walde, Hans Larwin 

Dentro das casas, as pessoas resolviam o problema do mesmo jeito que você faz hoje quando a luz acaba: ligavam lanternas e acendiam velas. A diferença é que as lanternas eram à base de querosene e as velas, feitas de sebo. Ou seja, nada funcionava tão bem quanto agora. Os lampiões de querosene eram tão fracos que às vezes era preciso riscar um fósforo para ter certeza de que a chama estava acesa. Já as velas, difíceis de conseguir, deviam ser usadas com economia. Só os ricos abusavam. Nos palácios, grandes castiçais, cheios de velas, faziam o trabalho das lâmpadas de hoje.

As duas mães, Giovanni Segantini 

Quando a luz elétrica se espalhou pelo país, os acendedores de lampião não foram os únicos a desaparecer. Também sumiram o fogão a lenha, o forno a brasa, as lavadeiras nos chafarizes, o banho frio... A vida de todo mundo foi completamente transformada pela invenção do americano Thomas Edison. Morar, comer e cuidar da higiene se tornaram tarefas muito mais confortáveis.

Outra mudança importante com a chegada da energia foi a limpeza das casas. No Brasil, os quartos costumavam não ter janelas. Assim, ficavam na penumbra durante o dia e na escuridão durante a noite, deixando a sujeira pouco visível. Mas foi só acenderem uma lâmpada para verem o chiqueirinho em que eles estavam se transformando!

Como sempre, também houve quem reclamasse da eletricidade. As vaidosas madames inglesas não gostavam nem um pouco quando aquelas lâmpadas brilhantes revelaram sem dó as suas rugas e imperfeições. "A luz elétrica, tão boa para os papéis de parede e os móveis, nem sempre é conveniente para as mulheres", dizia uma propaganda na Inglaterra em 1901. O anúncio vendia sombrinhas, que as mulheres passaram a usar dentro das casas para esconder o rosto da tal luz elétrica!

SOALHEIRO, Bárbara. Como fazíamos sem... São Paulo: Panda Books, 2006. p. 128-131.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O mito do progresso

Homem primitivo (sentado na sombra), Odilon Redon

Com a descoberta e a exploração das Américas pelos europeus, filósofos, autoridades políticas, teólogos e cientistas conheceram uma realidade de contrastes espantosos da condição humana no planeta. Com as grandes navegações do século XVI, pela primeira vez na história da humanidade, determinada cultura - a civilização ocidental - teve contato com culturas humanas espalhadas por todo o globo, fato até então inédito.

No período conhecido como Iluminismo (século XVIII), surgiram as primeiras tentativas sistemáticas para explicar as diferenças culturais. A ideia central era a noção de progresso. Acreditava-se que a humanidade havia passado por um estágio não civilizado: sem leis, governos, agricultura ou qualquer conhecimento técnico. Gradualmente, no entanto, guiada pela razão, evoluiu do estado natural para o estado civilizado iluminista. As diferenças culturais eram atribuídas aos diversos estágios de progresso moral e intelectual dos povos.

No século XIX, a ideia de progresso cultural ganhou impulso com as profundas transformações da sociedade industrial. Augusto Comte postulou um progresso em que o pensamento teológico cedia lugar ao pensamento científico. Hegel via o movimento de um passado onde só havia um homem livre (despotismo oriental), passando por um estágio intermediário onde poucos homens podiam exercer a liberdade (cidades-Estados da Grécia), até o estágio final onde todos os homens eram livres (monarquias constitucionais e democracias modernas). Um dos modelos mais influentes foi o de Morgan, que dividiu a evolução cultural em estágios - selvagem, barbárie e civilização -, detalhando minuciosamente a passagem de um para outro em estudos etnográficos.

Após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, surgiu o social-darwinismo, movimento que acreditava ser o progresso biológico e cultural dependente da competição das espécies pela sobrevivência. Assim: espécie contra espécie, indivíduo contra indivíduo, nação contra nação e raça contra raça lutam pela existência segundo a lei da sobrevivência dos mais fortes, que mantém o êxito reprodutivo.

Adepto ardoroso desta visão, Herbert Spencer usou a teoria evolucionista darwinista para justificar o sistema de livre iniciativa capitalista e a superioridade racial do homem branco.

Também o pensamento marxista, embora diametralmente oposto ao socialdarwinismo, foi fortemente influenciado pela noção de progresso do século XIX. Marx e Engels avaliavam as culturas por meio de estágios progressivos: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e comunismo. Morgan, cuja teoria serviu de base para o livro de F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, tornou-se um dos pilares da antropologia marxista. Ele sustentava que no primeiro estágio da evolução cultural não havia propriedade privada e que nos estágios seguintes, o progresso surgira com as transformações nos modos de produção, transformações determinadas pela luta de classes visando ao controle dos meios de produção.

No século XX, os antropólogos se dividiram em diversas correntes de pensamento, criticando tanto os esquemas social-darwinistas como o pensamento marxista. Sem encampar nenhuma das correntes, há conceitos de uma e de outra que devem ser considerados para uma compreensão ampla do processo de evolução cultural.

* Particularismo histórico. Para Franz Boas, antropólogo americano do início do século, todas as tentativas de esquematizar estágios ou determinar leis para a evolução cultural são infrutíferas. Segundo ele, cada cultura possui sua própria história e é única. Sustenta o relativismo cultural, em que não há formas culturais superiores ou inferiores e os conceitos de selvageria, barbárie e civilização são etnocêntricos, refletindo a preocupação de cada povo em afirmar que seu próprio meio de vida é melhor que os demais. Uma das mais importantes contribuições de Boas é a demonstração de que raça, linguagem e cultura são inerentes à condição humana e, desde que entre povos de mesma raça se encontram culturas e línguas distintas, não há base de sustentação para os argumentos socialdarwinistas.

* Difusionismo. Surgiu como reação ao evolucionismo do século XIX e sustenta que a maior fonte de semelhanças e diferenças culturais observadas não são fruto apenas da criatividade humana, mas do fato de que humanos imitam outros humanos. O difusionismo teve e tem importante papel na transformação das culturas humanas, mas não se pode generalizar sua importância ao ponto de sustentar, por exemplo, como muitos difusionistas, que os egípcios influenciaram a arquitetura e práticas religiosas das civilizações astecas e incas da América.

* Novo evolucionismo. Após a Segunda Guerra Mundial, muitos antropólogos estavam céticos quanto ao antievolucionismo e às generalizações das diversas correntes de pensamento. Retomaram os trabalhos de Morgan, corrigiram e ampliaram suas observações etnográficas e postularam que a evolução cultural dependia largamente da quantidade de energia que se poderia obter do meio ambiente. Por volta de 1950, Julian Stewart lançou as bases da teoria conhecida como ecologia cultural, que explica tanto as particularidades como as semelhanças interculturais pela interação das condições de vegetação, solo, pluviométricas etc. com os fatores econômicos e tecnológicos.

* Materialismo cultural. Revendo a teoria de Marx e do materialismo dialético e com base nos trabalhos de ecologia cultural, o materialismo cultural sustenta que a antropologia deve explicar as semelhanças e diferenças culturais a partir das contradições materiais a que está sujeita a existência humana. Essas contradições surgem da necessidade de produzir alimento, vestuário, ferramentas, máquinas para a reprodução humana nos limites impostos pela biologia, pelo ambiente, e sobretudo pelas relações de dominação vigentes.

* Estruturalismo. Surgido na França durante os anos 60 sob a liderança do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o estruturalismo se ocupa das semelhanças psicológicas por trás das aparentes divergências de pensamento e comportamento. Para ele, essas semelhanças surgem da estrutura do cérebro humano e do processo inconsciente de elaboração do pensamento. Defende que uma das estruturas básicas da mente humana é a tendência à dicotomização, ou seja, pensar em termos oposições binárias.

GUGLIELMO, Antonio Roberto. A Pré-História: uma abordagem ecológica. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 53-57.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O legado da II Guerra Mundial

Hiroshima após a bomba atômica. A total destruição de Hiroshima prenunciou uma nova época. As armas nucleares deram à humanidade a capacidade de destruir a civilização.

A II Guerra Mundial foi a mais destrutiva da história. As estimativas do número de mortos sobem a 50 milhões, incluindo 20 milhões de russos, que sacrificaram, em população e recursos materiais, mais do que os outros participantes. A guerra provocou uma enorme migração de povos, sem paralelo na história europeia moderna. A União Soviética anexou as terras bálticas da Letônia, Lituânia e Estônia, deportando pela força muitos dos habitantes para a Rússia central. A maior parte da Prússia oriental foi ocupada pela Polônia, e a Rússia anexou a parte leste. Milhões de alemães fugiram, ou foram expulsos, da Prússia, de regiões da Tchecoslováquia, Romênia, Iugoslávia e Hungria, onde seus ancestrais haviam vivido durante séculos. Os custos materiais foram espantosos. Por toda parte, cidades estavam em ruínas, pontes, sistemas ferroviários, vias fluviais e portos destruídos; terras agrícolas devastadas, gado morto e minas de carvão desabadas. Pessoas sem lar e famintas vagavam pelas ruas e estradas. A Europa enfrentou uma gigantesca tarefa de reconstrução. Recuperou-se, porém, e com surpreendente rapidez, de sua desgraça material.

A guerra provocou uma modificação nas estruturas de poder. Os Estados Unidos e a União Soviética surgiram como os dois mais poderosos Estados do mundo. As grandes potências tradicionais - Inglaterra, França e Alemanha - foram obscurecidas por essas superpotências. Os Estados Unidos tinham a bomba atômica e um imenso poderio industrial; a União Soviética tinha o maior exército do mundo e estendia seu domínio à Europa oriental. Com a Alemanha derrotada, o principal incentivo para a cooperação soviético-americana desaparecera.

Enquanto a I Guerra Mundial foi seguida de uma intensificação das paixões nacionalistas, depois da II Guerra os europeus ocidentais tenderam para a cooperação e a unidade. O período hitlerista convencera muitos europeus dos perigos inerentes ao nacionalismo extremado, e o medo da União Soviética fortificou a necessidade de maior cooperação.

A II Guerra Mundial acelerou a desintegração dos impérios europeus de além-mar. Os Estados europeus não poderiam justificar o domínio de africanos e asiáticos depois de terem lutado para libertar as terras europeias do imperialismo alemão. Nem poderiam pedir a seus povos, esgotados pelo período de Hitler e empenhados com todas as forças na reconstrução, que travassem novas guerras contra os africanos e asiáticos que desejavam a independência. Imediatamente depois da guerra, a Grã-Bretanha abriu mão da Índia, a França deixou o Líbano e a Síria e os holandeses partiram da Indonésia. Nas décadas de 1950 e 1960, praticamente todos os territórios coloniais conquistaram a independência. Nos casos em que a potência colonial resistiu à independência desejada pela colônia, o preço foi o derramamento de sangue.

A consciência da Europa, profundamente atingida pela I Guerra Mundial, foi, mais uma vez, gravemente ferida. As teorias raciais nazistas mostraram que numa era de ciência sofisticada, a mente continua atraída por crenças irracionais e imagens míticas. As atrocidades nazistas revelaram que o homem torturará e matará com zelo religioso e uma indiferença maquinal. O ataque nazista à razão e à liberdade demonstrou novamente a precariedade da civilização ocidental.

Esse ataque para sempre lançaria dúvidas sobre a concepção iluminista da bondade e da racionalidade secular humanas e do progresso da civilização mediante os avanços científicos e tecnológicos. Ele corrobora o ponto de vista sustentado por Walter Lippmann de que "os homens foram bárbaros por mais tempo do que foram civilizados. São apenas precariamente civilizados, e dentro de nós existe a propensão, persistente como a força da gravidade, a retornar, quando sob pressão e tensão, ou tentação, à nossa natureza primitiva". Tanto a tradição cristã quanto a iluminista fracassaram no Ocidente.

Alguns intelectuais, chocados com a irracionalidade e os horrores da era hitlerista, caíram em desespero. Para esses pensadores, a vida era absurda, sem significado; os seres humanos não eram capazes de compreendê-la nem controlá-la. Em 1945, somente os ingênuos conseguiam ter fé no progresso contínuo ou acreditar na bondade essencial do indivíduo. O futuro vislumbrado pelos philosophes parecia mais distante do que nunca. Contudo, essa profunda desilusão foi temperada pela esperança. A democracia tinha, com efeito, prevalecido sobre o totalitarismo e o terror nazistas. Talvez então as instituições e os valores democráticos se espalhassem pelo globo, e a recém-fundada Organização das Nações Unidas conseguisse promover a paz mundial.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma História concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 625-627.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Intelectuais e artistas em épocas conturbadas: a Era do Fascismo

Desempregado, (1934) - George Grosz

Os pressupostos do Iluminismo, já erodindo nas décadas anteriores à I Guerra Mundial, pareciam à beira do colapso após 1918 - outra baixa provocada pela guerra de trincheiras. A difícil situação econômica, sobretudo durante a depressão, também causou profunda desorientação na mente europeia. Os ocidentais não possuíam uma estrutura de referência, uma perspectiva comum para compreender a si mesmos, sua época ou o passado. Os valores essenciais da civilização ocidental - a auto-suficiência da razão, a inviolabilidade do indivíduo e a existência de padrões objetivos - não pareciam mais servir de inspiração nem de elo de ligação.

A crise de consciência evocou diversas nações. Alguns intelectuais, perdendo a fé no significado essencial da civilização ocidental, voltaram-lhe as costas ou procuraram refúgio em sua arte. Outros buscaram uma nova esperança na experiência soviética ou no fascismo. Outros ainda reafirmaram a tradição humanista racional do Iluminismo. Rechaçados pelo secularismo, pelo materialismo e pelo desenraizamento da era moderna, os pensadores cristãos convocavam os ocidentais a encontrar novo significado e propósito em sua religião ancestral. O movimento filosófico denominado existencialismo, que ganhou destaque após a II Guerra Mundial, aspirava a uma vida autêntica num mundo destituído de valores universais.

Após a I Guerra Mundial, os europeus passaram a olhar de maneira diferente para si mesmos e sua civilização. Parecia que na ciência e na tecnologia haviam desencadeado forças que não podiam controlar, e a crença na estabilidade e segurança da civilização europeia revelou-se como uma ilusão. Também ilusória era a expectativa de que a razão baniria os indícios remanescentes de escuridão, ignorância e injustiça, e anunciaria uma era de progresso incessante. Os intelectuais europeus sentiam que estavam vivendo num "mundo falido". Numa era de extrema brutalidade e irracionalidade ativa, os valores da velha Europa pareciam irrecuperáveis. "Todas as grandes palavras", escreveu D. H. Lawrence, "foram invalidadas para esta geração." As fissuras que se discerniam na civilização europeia antes de 1914 haviam se tornado maiores e mais profundas. É evidente que havia também os otimistas - aqueles que encontraram motivo para esperança na Sociedade das Nações, no abrandamento das tensões internacionais e na melhoria das condições econômicas em meados da década de 1920. Entretanto, a Grande Depressão e o triunfo do totalitarismo intensificaram os sentimentos de dúvida e desilusão.

Depois da I Guerra Mundial, as manifestações de pessimismo tornaram-se abundantes. Em 1919, Paul Valéry declarou: "Nós, as civilizações modernas, aprendemos a reconhecer que somos tão mortais quanto as outras. Percebemos que uma civilização é tão frágil quanto a vida." "Vivemos hoje sob o estigma do colapso da civilização", afirmou o humanitarista Albert Schweitzer em 1923. O filósofo alemão Karl Jaspers observou em 1932 que "há uma consciência cada vez maior da ruína iminente, semelhante a um medo do fim próximo de tudo aquilo que faz a vida valer a pena".

Terra devastada (1922) de T. S. Eliot também transmite um sentimento agourento. Em sua imagem de uma civilização europeia agonizante, Eliot cria um cenário macabro. Hordas encapuzadas de bárbaros modernos enxameiam as planícies e devastam as cidades. Jerusalém, Atenas, Alexandria, Viena e Londres - cada um dos grandes centros espirituais ou culturais de outrora - são agora "torres desabando". Em meio a essa destruição, ouve-se "alto no ar/O murmúrio do lamento materno".

O psicólogo suíço Carl Gustav Jung declarou em O homem moderno em busca de uma alma (1933):

Acredito não estar exagerando quando digo que o homem moderno sofreu, psicologicamente falando, um choque quase fatal, em razão do qual caiu em profunda incerteza [...] A revolução em nossa perspectiva consciente, produzida pelos resultados catastróficos da Guerra Mundial, evidencia-se em nossa vida interior pela destruição de nossa fé em nós mesmos e em nosso próprio valor [...] Percebo perfeitamente bem que estou perdendo a fé na possibilidade de uma organização racional do mundo; o velho sonho do milênio, no qual reinariam a paz e a harmonia, ofuscou-se.

Em 1936, o historiador holandês Johan Huizinga escreveu num capítulo intitulado "Apprehension of Doom" (Medo do Juízo):

Vivemos num mundo demente. E sabemos disso [...] Em todo lugar há dúvidas quanto à solidez de nossa estrutura social, temores vagos quanto ao futuro iminente, um sentimento de que nossa civilização está a caminho da ruína [...] quase todas as coisas que outrora pareciam sagradas e imutáveis tornaram-se agora incertas, verdade e humanidade, justiça e razão [...] A sensação de viver em meio a uma violenta crise da civilização, ameaçando ao colapso completo, difundiu-se por toda parte.

A mais influente expressão desse pessimismo foi A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler. O primeiro volume foi publicado em julho de 1918, quando a Grande Guerra aproximava-se do fim, e o segundo em 1922. A obra conquistou notoriedade imediata, particularmente na Alemanha, terra natal de Spengler, arruinada pela derrota. Spengler via a história como um conjunto de muitas culturas diferentes que, como organismos vivos, experimentavam nascimento, juventude, maturidade e morte. O que mais preocupava os contemporâneos era a insistência de Spengler em que a civilização ocidental ingressava em seu estágio final e sua morte não poderia ser evitada.

Para o já conturbado mundo ocidental, Spengler não oferecia nenhum conforto. O Ocidente, como outras culturas e qualquer ser vivo, está destinado a morrer; seu declínio é irreversível, sua morte inevitável, e os sintomas de degeneração já são evidentes. O sombrio prognóstico de Spengler deu força aos fascistas, que afirmavam estar criando uma nova civilização sobre as ruínas da agonizante civilização europeia.

O pessimismo do pós-guerra não impediu escritores e artistas de dar continuidade às inovações culturais iniciadas antes da guerra. Nas obras de D. H. Lawrence, Marcel Proust, André Gide, James Joyce, Franz Kafka, T. S. Eliot e Thomas Mann, o movimento modernista alcançou magnífico florescimento. De maneira geral, esses escritores deram expressão às aflições e incertezas do período pós-guerra.

Franz Kafka [...] compreendeu o dilema da era moderna melhor talvez que qualquer outro romancista de sua geração. No mundo kafkaniano, os seres humanos estão presos numa teia burocrática que não podem controlar. Vivem numa sociedade de pesadelo, dominada por oficiais opressivos, cruéis e corruptos e algozes amorais [...] Em O processo (1925) [...] o herói é preso sem saber por quê e acaba sendo executado [...] Kafka revelou-se um profeta do emergente Estado totalitário. [...]

Kafka expressou os sentimentos de alienação e isolamento que caracterizam o indivíduo moderno; explorou os temores e absurdos da vida, sem oferecer nenhuma solução nem consolo. Nas palavras de Kafka, as pessoas são derrotadas e não conseguem compreender as forças irracionais que contribuem para sua destruição. [...]

[...]

Em 1931, dois anos antes de Hitler tomar o poder, Mann, num artigo intitulado "Um apelo à razão", descreveu o nazismo e seu nacionalismo radical como uma rejeição da tradição racional do Ocidente e uma regressão a modos de comportamento primitivos e bárbaros. O nazismo, escreveu ele, "distingue-se por [...] sua absoluta falta de restrição, por seu caráter orgiástico, radicalmente anti-humano e freneticamente dinâmico [...] Tudo é possível, tudo é permitido enquanto arma contra a decência humana [...] O fanatismo converte-se num meio de salvação [...] a política torna-se um ópio para as massas [...] e a nação encobre seu rosto".

Abalados com a I Guerra Mundial, descontentes com a força cada vez maior do fascismo, e comovidos com o sofrimento ocasionado pela depressão, muitos escritores aderiram a causas sociais e políticas. O livro Nada de novo no front ocidental (1929), de Erich Maria Remarque, foi um dos muitos romances antiguerras. The Road to Wigan Pier (1937), de George Orwell, relatou a vida melancólica dos mineiros de carvão ingleses. Em As vinhas da ira (1939), John Steinbeck captou a angústia dos fazendeiros norte-americanos expulsos de sua terra por causa do dust bowl e da execução de hipotecas durante a depressão. Poucas questões agitaram a consciência dos intelectuais quanto à Guerra Civil espanhola, e muitos deles apresentaram-se como voluntários para lutar ao lado dos republicanos espanhóis contra os fascistas. A obra Por quem os sinos dobram (1940), de Ernest Hemingway, expressou os sentimentos desses pensadores.

As novas tendências seguidas pela arte antes da I Guerra Mundial - a abstracionismo e o expressionismo - prosseguiram nas décadas pós-guerra. Picasso, Mondrian, Kandinsky, Matisse, Rouault, Braque, Modigliani e outros mestres continuaram a aperfeiçoar seus estilos. Além disso surgiram novas correntes artísticas, espelhando o trauma de uma geração que tinha passado pela experiência da guerra e perdido a fé nos valores morais e intelectuais da Europa.

Em 1915, na cidade de Zurique, artistas e escritores fundaram o movimento dadaísta, para manifestar seu repúdio à guerra e à civilização que a produzira. Partindo da neutra Suíça, o movimento difundiu-se para a Alemanha e Paris. O dadaísmo compartilhava o estado de ânimo de desorientação e desespero predominante no pós-guerra. Os dadaístas consideravam a vida essencialmente absurda (Dada é um termo absurdo) e cultivavam a indiferença. "Os anos da vida não têm começo nem fim. Tudo acontece de maneira completamente estúpida", afirmou o poeta Tristan Tzara, um dos fundadores do movimento e seu principal porta-voz. Os dadaístas demonstravam desprezo pelos padrões artísticos e literários e rejeitavam tanto a Deus quanto à razão. "Através da razão, o homem torna-se uma figura trágica e hedionda", disse um dadaísta; "a beleza está morta", disse outro. [...]

[...]

O dadaísmo terminou como movimento em 1924, sendo substituído pelo surrealismo. Os surrealistas herdaram dos dadaístas o desprezo pela razão; ressaltavam a fantasia e em sua arte recorreram aos insights e símbolos freudianos para reproduzir o estado bruto do inconsciente e chegar a verdades que a razão não pode apreender. Em sua tentativa de romper com os impedimentos da racionalidade a fim de alcançar uma realidade superior - ou seja, uma "surrealidade" -, os principais surrealistas, tais como Max Ernst (1891-1976), Salvador Dali (1904-1989) e Joan Miró (1893-1983), produziram obras de inegável mérito artístico.

Como os escritores, os artistas demonstravam uma consciência social. George Grosz combinou o sentimento dadaísta da ausência de significado da vida com um novo realismo, para retratar a degeneração moral da sociedade classe média da Alemanha. Em After the Questioning (1935), Grosz, vivendo então nos Estados Unidos, dramatizou a brutalidade nazista; em O fim do mundo (1936), expressou seu medo de outra guerra mundial iminente. Käthe Kollwitz, também um artista alemão, revelou profunda compaixão pelos sofredores: os desempregados, famintos, doentes e politicamente oprimidos. [...]

Em suas gravuras de soldados mutilados, agonizantes e mortos, o artista alemão Otto Dix fez uma poderosa denúncia visual da crueldade e do sofrimento da Grande Guerra. [...] Em Guernica (1937), Picasso imortalizou o vilarejo espanhol dizimado por bombardeios durante a guerra civil. Em White Crucifixion (1938), Marc Chagall, pintor russo [...] que se estabelecera em Paris, retratou o terror e a fuga dos judeus da Alemanha nazista.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma História concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 587-593.

domingo, 20 de novembro de 2011

I Guerra Mundial: a guerra como celebração

Os sobreviventes (1922), Käthe Kollwitz. Com a estimativa de 10 milhões de mortos e 31 milhões de feridos, a I Guerra Mundial destruiu a esperança de que a Europa ocidental vinha progredindo continuamente rumo a uma civilização racional e esclarecida.

Quando a guerra era certa, ocorreu um fenômeno extraordinário. Multidões reuniram-se nas capitais e manifestaram sua lealdade à pátria e sua disposição para lutar. Parecia que o povo desejava a violência pela violência. Era como se a guerra proporcionasse uma fuga da rotina monótona da sala de aula, do emprego e do lar, do vazio, da insipidez e da mediocridade da sociedade burguesa - "um mundo envelhecido, frio e exausto", disse Rupert Brooke, um jovem poeta inglês. Para alguns, a guerra era um "momento belo [...] e sagrado, que satisfazia um anseio ético". Porém, de modo mais significativo, a efusão de sentimentos patrióticos demonstrou o imenso poder que o nacionalismo exercia sobre a mentalidade europeia. Com um êxito extraordinário, o nacionalismo uniu milhões de pessoas numa coletividade pronta a dedicar-se de corpo e alma à nação, especialmente em sua hora de necessidade.

Em Paris, os homens marcharam pelos bulevares entoando as palavras vibrantes do hino nacional francês, a Marselhesa, enquanto as mulheres faziam chover flores sobre os jovens soldados. Um participante daqueles dias recorda: "Jovens e velhos, civis e militares inflamados com o mesmo entusiasmo [...] milhares de homens, ansiosos por lutar, acotovelavam-se nos pátios dos centros de recrutamento, aguardando para se alistarem [...] A palavra 'dever' tinha um significado para eles, e a palavra 'país' tinha recuperado seu esplendor." Cenas semelhantes ocorreram em Berlim. "É uma alegria estar vivo", lia-se no editorial de um jornal. "Ansiamos tanto por este momento [...] A espada que foi colocada em nossa mão não será embainhada até que nossos objetivos sejam consumados e o nosso território ampliado tanto quanto a necessidade exige". Escrevendo sobre aqueles dias tão importantes, o filósofo e matemático Bertrand Russel relembrou seu horror e "assombro com o fato de que homens e mulheres comuns se deliciassem com a perspectiva da guerra [...] A antecipação da carnificina era um deleite para cerca de 90% da população. Tive de rever minhas opiniões sobre a natureza humana".

Cartaz de 1914 alusivo à Tríplice Entente, mostrando alegorias da França (Marianne), Rússia e Reino Unido.

Os soldados destinados à batalha agiam como se estivessem partindo para uma grande aventura. "Meus queridos, orgulhem-se de viverem em tal época e em tal nação e de [...] terem o privilégio de enviar aqueles que amam para uma batalha tão gloriosa", escreveu a seus familiares um jovem alemão estudante de direito. Os jovens guerreiros desejavam fazer algo nobre e altruísta, conquistar a glória e experimentar a vida em sua máxima intensidade.

Muitos dos mais ilustres intelectuais europeus também foram cativados pela atmosfera marcial. Eles compartilhavam os sentimentos de Rupert Brooke: "Agradeçamos agora a Deus/Que nos colocou em harmonia com Sua hora,/E cativou nossa juventude, e nos despertou do sono." Para o ilustre historiador alemão Friedrich Meinecke, agosto de 1914 foi "um dos grandes momentos da minha vida, que subitamente encheu minha alma com a mais profunda confiança em nosso povo e a mais intensa alegria". Em novembro de 1914, Thomas Mann, o proeminente escritor alemão, via a guerra como "purificação, liberação [...] uma enorme esperança; inflama o coração dos poetas [...] Como poderia o artista, o soldado que há no artista", perguntou ele, "não louvar a Deus pelo colapso de um mundo pacífico com o qual ele estava aborrecido, tão excessivamente aborrecido?" Além de sua sede por exaltação e sua busca do heróico, alguns intelectuais saudaram a guerra porque ela unificava a nação num espírito de fraternidade e auto-sacrifício. Era um retorno, sentiam alguns, às raízes orgânicas da existência humana, um meio de superar um sentimento de isolamento individual.

Assim, uma geração de jovens europeus marchou alegremente para a guerra, incentivados por seus professores e encorajados por suas declinantes nações. Deve-se enfatizar, porém, que os soldados que foram para a guerra cantando e os estadistas e generais que saudaram a guerra, ou não se empenharam em evitá-la, contavam com um conflito curto, decisivo e galante. Poucos intuíam o que a I Guerra Mundial viria a ser: quatro anos de matança bárbara e sem sentido. Os gritos dos chauvinistas, dos tolos e de idealistas iludidos sufocaram as palavras daqueles que perceberam que a Europa estava tropeçando na escuridão. "As luzes estão se apagando em toda a Europa", disse o secretário do Exterior britânico Edward Grey. "Nunca em nossas vidas voltaremos a vê-las acesas."

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma História concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 521-522.

sábado, 19 de novembro de 2011

Os indomáveis araucanos

Lautaro, habitualmente considerado como o maior estrategista mapuche da guerra. Toque de guerra, óleo de Pedro Subercaseaux.
 (Imagen idealizada do século XIX)

“Educación del cacique”

Lautaro era una flecha delgada.
Elástico y azul fue nuestro padre.
Fue su primera edad sólo silencio.
Su adolescencia fue dominio.
Su juventud fue un viento dirigido.
Se preparó como una larga lanza.
Acostumbró los pies en las cascadas.
Educó la cabeza en las espinas.
Ejecutó las pruebas del guanaco.
Vivió en las madrigueras de la nieve.
Acechó la comida de las águilas.
Arañó los secretos del peñasco.
Entretuvo los pétalos del fuego.
Se amamantó de primavera fría.
Se quemó en las gargantas infernales.
Fue cazador entre las aves crueles.
Se tiñeron sus manos de victorias.
Leyó las agresiones de la noche.
Sostuvo los derrumbes del azufre.
Se hizo velocidad, luz repentina.
Tomó las lentitudes del otoño.
Trabajó en las guaridas invisibles.
Durmió en las sábanas del ventisquero.
Igualó la conducta de las flechas.
Bebió la sangre agreste en los caminos.
Arrebató el tesoro de las olas.
Se hizo amenaza como un dios sombrío.
Comió en cada cocina de su pueblo.
Aprendió el alfabeto del relámpago.
Olfateó las cenizas esparcidas.
Envolvió el corazón con pieles negras.
Descifró el espiral hilo del humo.
Se construyó de fibras taciturnas.
Se aceitó como el alma de la oliva.
Se hizo cristal de transparencia dura.
Estudió para viento huracanado.
Se combatió hasta apagar la sangre.
Sólo entonces fue digno de su pueblo.
(Pablo Neruda)


Batalha entre araucanos e soldados argentinos, Johann Moritz Rugendas 

Em todo o continente conquistado pela Espanha, não houve melhores guerreiros que estes índios do sul do Chile. Escaparam à dominação do Império inca, que se estendeu quase até o rio Maule; mais tarde, cobraram caro aos espanhóis suas pretensões de submetê-los.

Os araucanos estavam longe do elevado nível da civilização incaica, mas, talvez por isso mesmo [...] negaram-se tenazmente à dominação. Incorporaram o cavalo e o utilizaram melhor que seus inimigos. Na montaria, fizeram uma sela mais leve que a espanhola; protegeram os flancos do animal com couro e eliminaram os estribos de ferro. Quando atacavam, usavam instrumentos de sopro - como trombetas - feitos com as tíbias dos espanhóis ou de índios que colaboravam com estes, produzindo um sinistro e triste som que apavorava os europeus. Criaram uma infantaria montada, na época uma verdadeira inovação na arte bélica. Cada cavaleiro conduzia na anca do seu animal um arqueiro ou lanceiro que, no momento oportuno, desmontava e lutava a pé, voltando a montar quando preciso. Sua habilidade e destreza foram unanimemente reconhecidas e admiradas, principalmente pela capacidade criativa de inventar artifícios. Construíram fossos - verdadeiras armadilhas - dissimulados com arbustos espinhosos. Fizeram fortes, escavaram trincheiras com pedras pontiagudas, protegeram-se com verdadeiras armaduras de couro, pintavam seus rostos com cores que impressionavam os conquistadores. No cerco ao forte Arauco, em 1563, juntaram grande quantidade de palha e ramos, colocaram-nos em volta do forte e atearam fogo, tentando sufocar os que se encontravam no seu interior com o calor e a fumaça. Simultaneamente, cortaram os canais que levavam água ao forte e, conseguiram secar um poço no seu interior, cavando outro do lado de fora, mais profundo, fazendo com que a água corresse para este. Para privar os espanhóis da água,  jogaram cadáveres e ervas venenosas nos poços e vertentes.

Relata um cronista que a quantidade de flechas atiradas no interior do forte foi tão grande que durante 15 dias foram utilizadas como lenha, para cozinhar a comida da tropa. Mas, como sobraram muitas, os soldados se entretinham contando-as e chegaram à extraordinária cifra de 160.000.

Exagero? É o mais provável. Mas indica o respeito e a admiração que os espanhóis votaram a esses engenhosos, bravios e indomáveis guerreiros. O cronista - Mariño de Lovera - acrescenta ainda que, graças aos fossos escavados em torno do forte, as balas dos alcabuzes e da própria artilharia foram ineficazes.

Em 1580, os araucanos surpreenderam o acampamento de Lorenzo Bernal de Mercado, e cercaram os locais onde havia fogo para impedir que os brancos acendessem as mechas dos seus arcabuzes. Em 1600, em novo assalto as forte Arauco, usaram grande quantidade de escadas para escalar os muros e os telhados da fortaleza. Mais de 400 deles conseguiram penetrar no forte, guiados por um mestiço de Quito, autor da ideia e que encabeçou o assalto. No ataque ao forte Boroa (1606), reuniram três mil infantes de elite e 600 cavaleiros, todos esplendidamente vestidos com penachos e roupas roubadas nas cidades de Imperial, Valdívia e Villarica. Muitos luziram, junto às armas de aço, roupas sacerdotais, hábitos de clérigos.

Ainda que desconhecessem os venenos usados, por exemplo, pelos caribes, que embebiam suas flechas tornando-as uma arma temível, os araucanos usavam a seiva do coligue (planta típica do Chile) que provocava inflamações nas feridas e, às vezes, a morte.

Como os espanhóis devastavam habitualmente as plantações e colheitas dos nativos, esses acabaram plantando em lugares recônditos, inacessíveis. Em grutas, organizaram depósitos de alimentos para não serem derrotados pela fome. E, obviamente, pagaram com a mesma moeda, devastando plantações às vésperas da colheita.

Quando compreenderam que os arcabuzes não eram o raio do céu - e isto foi compreendido logo - aprenderam a manejá-los, talvez ensinados por índios e mestiços desertores das tropas europeias. O citado cronista Mariño de Lovera diz que em 1599 a infantaria araucana usa a arma de fogo, pólvora e munições obtidas de seus inimigos derrotados. Um mestiço chamado Prieto elabora um plano que os conquistadores acham "diabólico": fabrica pólvora. Conseguira que os índios extraíssem enxofre dos vulcões Llaima e Villarica; em fornos especialmente preparados fabricaram carvão e acumularam salitre. Os espanhóis conseguiram convencer Prieto a não levar adiante seus planos - com a promessa de salvar a vida - e assim evitaram dores de cabeça mais graves do que as que já tinham.

Os índios araucanos dominaram a técnica do arcabuz a tal ponto, que em uma emboscada preparada em 1606 a um destacamento do forte Imperial mataram tranquilamente todos seus inimigos, pois sabiam que as armas destes estavam sem mecha. Foram mestres nas táticas de hostilizar o inimigo. Marchando paralelamente às tropas inimigas - que usualmente se deslocavam pelos vales - atiravam do alto das montanhas, rochas e troncos de árvores, dificultando a marcha e, por vezes, detendo-a. Sabiam que contavam com total impunidade, pois tinham aprendido a conhecer perfeitamente a distância máxima alcançada por uma bala do arcabuz. Chegaram ao ponto de enfrentar os espanhóis avançando em saltos, desconcertando a pontaria dos atiradores e colocando-se de tal maneira que a luz do sol dificultasse a visão dos soldados para atirar. Escolhiam, admiravelmente, o terreno para as batalhas, fazendo com que seus corpos não ficassem expostos à mira do inimigo.

De um tipo de guerra primitiva nos momentos iniciais do ataque europeu, os araucanos evoluíram para táticas altamente sofisticadas, com chefes e oficiais no comando, seguindo o próprio exemplo europeu. Isso lhes permitiu, em 1598, desencadear uma grande contra-ofensiva que os levou a recuperar grande parte do território perdido, onde já havia sete cidades espanholas, e as mais ricas minas de ouro do Chile.

Se tamanha criatividade, inteligência e astúcia foram aplicadas na guerra, é óbvio que se o fossem na construção pacífica, teriam dado grandes frutos. Mas, não era da índole dos conquistadores permitir tal coisa; para eles, os índios eram força de trabalho, animais de carga, energia a serviço do seu enriquecimento.

LEÓN, Pomer. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 127-128.