"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Arte rupestre do Brasil: Tradição Nordeste

Embora certas pinturas rupestres talvez tenham sido realizadas já no período anterior, a maioria dos grafismos encontrados em abrigos data provavelmente dos últimos seis milênios antes da Era Cristã. Com certeza não eram obras de "arte" no sentido que damos hoje à palavra. É claro que, durante todos esses milênios e em tantos lugares, algumas pessoas podem ter deixado simples graffitti, e outros desenhos talvez fossem feitos para fins decorativos. No entanto, o mais provável é que a maioria dos grafismos tenha sido feita como afirmação de etnicidade, expressão de uma crença, ato mágico, proclamação política de status, trato ou posse. O reconhecimento da existência de complexos temáticos estáveis ao longo de séculos e milênios levou os arqueólogos a definirem as "tradições" rupestres, nas quais variações menores de uma região para outra permitem reconhecer fácies, ou subtradições, enquanto modificações ocorridas ao longo do tempo permitem sucessivos estilos.

Não se encontram grafismos pré-históricos em todo o Brasil central ou nordestino. Em algumas regiões, faltavam suportes rochosos abrigados, e talvez as populações deixassem suas marcas em árvores, retirando as cascas para criar figuras em negativo - como faziam os índios Bakari no século XIX. Mas mesmo em locais onde existem paredes naturais protegidas, há regiões nas quais a "arte rupestre" é inexistente ou raríssima - como as de Arcos e de Pains, em Minas Gerais -, enquanto no vale do rio Peruaçu e na serra da Capivara é difícil andar ao longo dos paredões além de poucas centenas de metros sem encontrar um painel pintado.

[...]

Os sítios da região de São Raimundo Nonato (PI) serviram de referência para estabelecer a sequência de base do Nordeste brasileiro.

O conjunto de pinturas mais antigo é formado por representações humanas agrupadas em cenas, eventualmente acompanhadas por animais. Esses grafismos definem a Tradição Nordeste, que, segundo as pesquisadoras locais, se teria desenvolvido entre 12.000 e 6.000 anos atrás, no Piauí meridional. Nesse estado, o estilo mais antigo, denominado Serra da Capivara, apresenta figuras monocrômicas cuja cor contrasta com a do suporte natural. As representações humanas mostram cabeças por vezes ornadas com cocar, isoladas, e as figuras parecem assexuadas. Quando estão em grupo, o sexo é indicado de maneira convencional (um traço para o pênis, sempre erguido, e um círculo para a vulva). As personagens são geralmente muito dinâmicas. Formam cenas familiares (dois adultos e uma criança), relações sexuais (casais em várias posições, ou vários homens segurando uma mulher, homens segurando um pênis enorme); caça ao tatu (o animal é segurado pelo rabo) ou ao veado (com uma rede). Uma cena muito característica é conhecida como a "da árvore": várias pessoas, de braços erguidos, rodeiam uma árvore, ou uma delas segura um galho. Figuras antropomorfas também formam correntes, evocando acrobatas. As figuras zoomorfas são sobretudo de cervídeos e emas.

Tradição Nordeste: Toca da Extrema II, Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí

Por volta de 9.000 anos atrás, as cenas de violência se multiplicam: estupros, combates, execução de pessoas amarradas a um poste (complexo Serra Talhada). Finalmente, com o estilo Serra Branca, o movimento desaparece e as figuras tornam-se angulosas, com um grande corpo retangular preenchido por desenhos geométricos eventualmente bicrônicos dos quais se destacam pequenos membros filiformes.

Os dois primeiros estilos da Tradição Nordeste se propagaram fora do Piauí, para os estados do Nordeste, o norte de Minas Gerais, o sul de Goiás e até o Mato Grosso. No Rio Grande do Norte desenvolveu-se uma versão original - chamada "Subtradição Seridó", onde os animais são muito raros (somente tucanos e emas), e as figuras humanas apresentam um bico parecido com o de pássaros. Sua influência alcançou as terras baixas da Bolívia e da Colômbia orientais.

A Tradição Agreste substitui aos poucos a tradição Nordeste e seria a única representada na arte rupestre do sul do Piauí entre 6.000 e 2.000 anos atrás. Trata-se de grandes figuras monocromas, toscamente executadas, representando seres humanos isolados ("bonecões") ou animais pouco naturalistas, por vezes acompanhadas por impressões de mãos. Essa Tradição é considerada intrusiva no sul do Piauí, e seria originária de Pernambuco, onde essas figuras são muito mais numerosas.

PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros: a pré-história do nosso país. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 73-77.

domingo, 29 de setembro de 2013

O mundo em 1913

Quando Henry Ford iniciou sua primeira linha de montagem, em 1913, o mundo estava agitado. Uma das evidências mais marcantes acerca disso era quantas pessoas havia, em comparação com qualquer outro momento do passado. Nos 150 anos desde 1763, a população mundial mais do que dobrara, indo de 800 milhões para mais de 1,6 bilhão de pessoas. Isso se deveu em parte aos avanços na medicina. Graças a um melhor entendimento dos processos infecciosos e da importância da higiene, melhorias no saneamento, introdução da vacinação e fornecimento de água limpa, a expectativa de vida em muitos aumentara. Isso era particularmente verdadeiro nas cidades dos países industrializados. Antes do século XIX, as cidades eram um escoadouro populacional, em que as pessoas morriam precocemente. Somente o constante reabastecimento oriundo do campo possibilitara manter a quantidade de gente existente. Agora o número de habitantes das cidades crescia rápido e, em muitos países, ocorrera um notável aumento na proporção de população total vivendo em um ambiente urbano.

Nesses países, a queda de taxa de mortalidade tivera lugar contra um cenário de taxas de natalidade estáveis, com o resultado de que o crescimento populacional fora particularmente acelerado. Um dos exemplos mais marcantes dessa tendência foi a Inglaterra, onde uma população de cerca de 7 milhões de pessoas em 1763 aumentara em 1913 para 40 milhões, a despeito da emigração de quase 20 milhões de pessoas.

Mas higiene melhorada e avanços médicos não teriam levado a aumentos populacionais não fosse a quantidade cada vez maior de alimento disponível. Entre 1763 e 1913, a área de terra cultivada do mundo praticamente triplicara e, em muitos países, técnicas melhoradas haviam resultado em produção maior por hectare tanto de colheitas como de gado. Os padrões de vida melhoraram consideravelmente, a despeito de dobrar a população no mundo todo.

Nem todo país se beneficiou do aumento de alimento disponível. A tiranizada colônia britânica da Irlanda registrara uma população de 6,5 milhões ainda em 1840, mas, devido à fome e ao empobrecimento esmagador, perdera 5 milhões para a emigração e, agora, tinha menos de 4 milhões. Essas regiões de privação contra um cenário de comparativa abundância revelam que ocorreu um grande aumento da desigualdade nos padrões de vida entre as nações prósperas e as menos afortunadas.

O crescimento populacional global durante o século precedente ou um pouco além disso fora acompanhado de um volume assombroso de deslocamentos entre os países. Em 1890, essas migrações vinham ocorrendo havia setenta anos, mas atingiram um pico no quarto de século entre 1890 e 1913. O motivo para isso incluía:

1. a remoção de obstáculos legais à migração em inúmeros países;
2. uma queda acentuada no custo da viagem oceânica;
3. uma depressão agrícola causada pela importação de grãos baratos de países como Argentina e Estados Unidos, o que culminou em escassez para os trabalhadores rurais europeus.

O fator mais importante nessas migrações foi a queda nos custos de transporte associada à chegada do barco a vapor, que atuou não só como "empurrão", mas também como "puxão". Facilitando o transporte de gêneros alimentícios por longas distâncias, ele tornou grande parte da atividade agropecuária tradicional pouco rentável em face da competição de países como Estados Unidos e Austrália, lançando no desemprego trabalhadores de outros países. Esse foi o "empurrão". Ao mesmo tempo, proporcionou viagens mais baratas, tornando possível à gente pobre deixar seus lares pela oportunidade de uma vida melhor em outro lugar. Esse foi o "puxão".


Os emigrantes, Angiolo Tommasi

Algumas dessas migrações atingiram proporções fenomenais. Entre 1840 e 1913, algo como 60 milhões de europeus partiram de suas casas para tentar a sorte em outro lugar. Por volta de três quartos deles foram parar na América do Norte, onde as estradas de ferro haviam desbravado o país e a terra era barata. Outros 10 milhões e tanto, na maioria espanhóis, portugueses e italianos, acabaram desembarcando na América Latina. Quantidades substanciais vindas da Inglaterra e da Irlanda encontraram um novo lar em países como Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Essa foi uma época em que os impérios europeus atingiram seu ápice e foi de muitas maneiras uma era dourada de oportunidade para emigrantes europeus em busca de um novo lar em países onde ainda podiam se sentir "em casa";

Não foi apenas da Europa ocidental e meridional que as pessoas saíram para tentar fazer fortuna em terras estrangeiras. Na segunda metade do século XIX, quatro ou cinco milhões de pioneiros russos encontraram um novo lar na Sibéria. E no sul e no leste da Ásia as pessoas estavam igualmente se deslocando à procura de uma vida melhor, ou apenas um modo de ganhar a vida. Entre 1830 e 1913, dezenas de milhões de trabalhadores indianos com contratos de curta duração supriram a mão de obra necessária em minas e fazendas em colônias britânicas como Trinidad, África do Sul, Ceilão e Burna. Durante esse mesmo período, talvez até 15 milhões de camponeses chineses, desesperados por fugir de dívidas, tiraram vantagem do comércio de "cules", que os fornecia como mão de obra para patrões do mundo todo, mas sobretudo para as fazendas de borracha e as minas de estanho da Malásia.

Graças à disponibilidade maior de alimentos, e a essas grandes migrações, algumas áreas do mundo haviam registrado grandes crescimentos populacionais desde 1763. A população da Europa, excluindo a Rússia, mesmo com suas perdas para a migração, explodira de cerca de 110 milhões para algo em torno de 350 milhões. A própria Rússia, incluindo a Sibéria, tinha agora uma população de 150 milhões. A população dos Estados Unidos, na outra ponta dessa maré de imigração europeia, atingira os 100 milhões.

Entre as nações asiáticas, o Japão abrigava 60 milhões de pessoas: um povo próspero, instruído e transbordando de autoconfiança nacional. A China, com mais de 500 milhões, e um passado brilhante, deveria ter se tornado uma das grandes potências mundiais. Mas os anos de guerra e fome, governo complacente e ineficaz e maus-tratos por parte dos algozes estrangeiros haviam-na reduzido a uma sombra de seu antigo eu e deixado grande parte de sua população atolada em dívidas e ignorância.

A população de 350 milhões da Índia - igual à da Europa - continuava sujeita aos caprichos de uma certa ilha ao largo da costa europeia. Por ora, as classes cultas indianas não tinham outra escolha a não ser se deixar ficar sob a tutela de pessoas cujos ancestrais iletrados ainda corriam por aí em peles de animais quando seus próprios ancestrais criavam obras-primas supremas da arte e da literatura. Mas elas não iam continuar aturando isso por muito mais tempo.

Dois outros vastos territórios, Austrália e Canadá, continuavam teoricamente parte do império britânico, mas seus habitantes não podiam ser tutelados como era o povo da Índia. A Índia britânica fora criada por um empreendimento comercial, que obtivera controle de um subcontinente densamente povoado por intermédio de armamentos superiores e velhacarias diplomáticas. O Canadá e a Austrália, por outro lado, haviam sido efetivamente esvaziados de seus povos nativos por uma combinação de doenças europeias e limpeza étnica. Esses lugares haviam sido repovoados, como acontecera nos Estados Unidos, por imigrantes europeus de mentalidade independente, que teriam rapidamente afirmado sua independência se a Inglaterra tentasse tratá-los como o fez com aquelas colônias cujos povos tinham uma cor de pele diferente. O Canadá vinha se autogovernando na prática desde a promulgação da Lei do Governo do Canadá, em 1867. Um terço de seu povo era cultural e linguisticamente francês e muitos deles teriam preferido formar uma nação separada. Mas em 1913 os sentimentos separatistas não eram fortes o bastante para ameaçar a sobrevivência do Estado.

A Austrália se tornara uma commonwealth autogovernada desde 1901, com uma constituição que proporcionava a seus estados individuais, como as províncias canadenses, uma grande dose de controle sobre os próprios negócios. Como o Canadá, ela era abençoada com extensas terras de cultivo de trigo e rica em recursos minerais. Os cidadãos de ambos os países usufruíam um padrão de vida que causava inveja a outros povos.

Também a antiga colônia britânica da Nova Zelândia era, para todos os propósitos práticos, agora um país independente. Ela fora administrada separadamente de New South Wales desde 1841 e, em 1907, fora designada um "domínio", assumindo seu lugar junto a Austrália e Canadá como um território autogovernado unido à Inglaterra apenas por laços de amizade e um rei compartilhado.

Conforme o ano de 1913 se aproximava do final, os bronzeados jovens desportistas da Austrália e da Nova Zelândia, como os atletas de todas as nações bem nutridas, já ansiavam pelos próximos Jogos Olímpicos. Excetuando as mulheres. Ao contrário dos gregos, o mundo moderno não estava preparado para o espetáculo de mulheres atletas exibindo suas habilidades físicas em público. O antigo festival grego fora revivido em 1896 como resultado do entusiasmo de um aristocrata francês, o barão Pierre de Coubertin, que visitara a pequena vila inglesa de Much Wenlock na época de seus Jogos Olímpicos anuais, uma mistura de "esportes viris e recreações ao ar livre" que atraía atletas de toda a região. O que viu por lá o persuadiu de que um festival similar em escala internacional podia ser um meio de promover a paz e a boa vontade entre as nações. As Olimpíadas de 1896 foram tal sucesso que ficou resolvido que se repetiriam a intervalos de quatro anos. Em 1916 o lugar planejado para sediá-las era Berlim. Mas em 1914 ocorreu um evento que comprometeu os países do mundo numa disputa muito mais desesperadora.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 309-313.

sábado, 28 de setembro de 2013

O desenvolvimento da metalurgia no Peru

Na América do Sul, a metalurgia é um processo complexo que aparece na região andina (Colômbia, Equador e norte do Peru), por volta de 1800 a.C. Uma vez que o ferro era desconhecido, é especialmente o ouro e o cobre que são explorados. Os sítios de Waywaka Andalahuaylas, nos Andes centrais (Apurimac), forneceram assim folhas de ouro e de cobre, marteladas e gravadas, datadas de 1500 a.C. Nos Andes meridionais, restos de cobre foram recolhidos nos sítios de Wankarani e Chiripa (1800-500 a.C.) nos altos platôs bolivianos. E, ao norte da Argentina (Condorwasi, Cienaga e La Aguada) e do Chile (Atacama), a utilização de ligas de cobre e prata e de bronze com arsênico e estanho é atestada a partir do 1º milênio a.C.

O metal era fundido em pequenos fornos ventilados com a ajuda de tubos direcionados para o forno e nos quais era suficiente soprar para reativar o fogo. Martelado quente, permitia obter folhas que eram recortadas em seguida, rebatidas e soldadas para confeccionar ornamentos (alfinetes, broches, braceletes, colares, ornamentos de nariz...) de ouro ou de cobre dourado, destinados aos dignitários locais e, mais raramente, utensílios (tesouras, facas, louça).

Joalheria, Tolima, Colômbia, c. 400-1000 AD.

De 200 a 500, com o desenvolvimento das culturas Vicus, Moche e Recuay, todas as técnicas de ourivesaria foram empregadas, como a fundição em cera perdida, a coloração, a filigrana e a utilização de uma liga de ouro e de cobre (chamada tumbago) na Colômbia, ou de ouro e prata (ou de ouro e platina) no Equador.

SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 1: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 52-53.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os Vedas, literatura sagrada da Índia

Críxena (à esquerda), a oitava encarnação de Vishnu, com sua consorte, Rada. Pintura do século XVII.

Os textos védicos são os primeiros monumentos literários da Índia. Considerados como "Revelação", constituem os textos fundamentais do hinduísmo. Os Vedas, palavra sânscrita que significa o "Saber" por excelência, cada uma das quatro grandes coletâneas de textos, entre os quais o Rigveda, o "Saber disposto em estrofes", que é o mais antigo. Se os Vedas só foram postos por escrito a partir de 500 a.C., concorda-se que esses escritos fixaram tradições bem anteriores.

Os primeiros textos foram compostos por volta de 1500 a.C., a seguir foram transmitidos oralmente durante gerações pelos árias (ou arianos), um povo originário da Ásia central que se estabeleceu na Índia a partir de 1000 a 800 a.C. Nada tem de surpreendente o fato de o período de transmissão oral ter sido tão longo - prosseguindo mesmo depois que a escrita entrou em uso: para os hindus, tal como foi transposto em palavras por sábios míticos, os Vedas, que são intemporais e de inspiração divina, devem ser "ouvidos". É por isso que Veda é também chamado de a "audição" e, hoje, ainda a regra é que seja aprendido de cor, da boca de um mestre.

Além dos conhecimentos relativos aos mitos e aos ritos sacrificiais, o Rigveda nos ensina que a religião védica preconiza uma sociedade ideal dividida em quatro grandes classes hierárquicas: no alto estão os brâmanes, sacerdotes depositários dos Vedas, seguidos dos guerreiros e dos produtores de bens. Vêm, por fim, os servidores, que não têm acesso aos textos sagrados. Essa estrutura sociorreligiosa está na base do sistema de castas que sobrevive até nossos dias.

SALLES, Catherine [dir.]. Larousse das civilizações antigas 1: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 43.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Conservador é liberal, liberal é conservador

Charge na qual D. Pedro II aparece controlando “carrossel” político da época

O que é um conservador?

É aquele para quem a História é uma carroça abandonada. Ele quer conservar a sociedade do jeito que a encontrou, evitando mudanças. Isso é lógico, a sociedade o favorece:

- Se está boa para mim, deve estar para todo mundo - pensa o conservador.

Nada deve ser mudado, mesmo que a maioria esteja puxando a carroça da História, e ele, o conservador, esteja em cima, sendo levado sem se cansar...

Para os conservadores, o Brasil não podia existir sem a grande propriedade, sem a agroexportação, sem a escravidão, sem os partidos políticos da elite. E sem os conservadores! Eles acreditavam que só uma minoria é capaz de dirigir a nação. E quando não houver mais jeito, quando alguma mudança for inevitável, que ela seja pequena e consiga evitar transformações maiores:

- Vamos mudar um pouco, para continuar tudo como está. - Vão-se os anéis, mas ficam os dedos!

Não se pense que os conservadores achavam o Brasil uma maravilha! Eles reconheciam os nossos problemas e julgavam saber os motivos:

- O brasileiro é preguiçoso e atrasado. Uma raça ruim, resultado da mistura de negros e índios. Um povo mestiço, inferior. Ai do país se não fôssemos nós, da elite!

O que é um liberal?

Como o nome diz, é a pessoa que defende a liberdade. Na História da Europa, os liberais surgiram com a burguesia, lutando contra as imposições do tempo do feudalismo e do absolutismo.

No Brasil Império, entretanto, a maioria dos políticos liberais era contra a liberdade dos escravos. Sobretudo porque muitos deles eram donos de escravos... Os liberais queriam mudanças, desde que feitas sob o controle da classe dominante. No duro, só eram liberais quando estavam fora do governo, na oposição. Quando mudava a situação política e os liberais ficavam por cima, tornavam-se tão conservadores quanto os conservadores.

Os liberais brasileiros eram liberais-conservadores. Donos de fazendas de gado, de açúcar ou de café - como os conservadores - os liberais daqui não podiam agir da mesma maneira que os liberais europeus, que surgiram na História como revolucionários. Nem sempre a nossa aristocracia conseguiu imitar a velha Europa!

ALENCAR, Chico [et al]. Brasil vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 137.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Egito: a arte da imortalidade

Em vista da obsessão da sociedade egípcia com a imortalidade, não é de surpreender que a arte tenha se mantido sem mudanças por três mil anos. Sua mais alta preocupação era garantir uma vida após a morte confortável para seus soberanos, que eram considerados deuses. A colossal arquitetura e as obras-de-arte existiam para cercar o espírito do faraó de glória eterna.


"Grande Pirâmide de Queóps", Gizé.

Nessa busca de permanência, os egípcios definiram o essencial para uma grande civilização: literatura, ciências médicas e alta matemática. Não apenas desenvolveram uma cultura impressionante - apesar de estática - mas, enquanto outras civilizações nasciam e morriam com a regularidade das cheias do Nilo, o Egito sustentou o primeiro estado unificado de grande porte durante três milênios.

Muito do que se conhece sobre o Egito provém das tumbas que restaram. Como os egípcios acreditavam que o ka, o espírito, do faraó era imortal, depositavam em sua tumba todos os seus bens terrenos para que ele os usasse na eternidade. As pinturas e os hieróglifos nas paredes eram uma forma de inventariar a vida e as atividades diárias do falecido nos mínimos detalhes. Estátuas do faraó ofereciam uma morada alternativa para o ka, caso o corpo mumificado se deteriorasse e não pudesse mais hospedá-lo.

A pintura e a escultura obedeciam a padrões rígidos de representação da figura humana. Em muitos quilômetros de desenhos e entalhes em pedra, a forma humana é representada em visão frontal do olho e dos ombros, e em perfil de cabeça, braços e pernas. Nas pinturas em paredes, a superfície é dividida em painéis horizontais separados por linhas. A figura despojada, de ombros largos e quadris estreitos, usando adorno na cabeça e tanga, posa rigidamente com os braços para os lados e uma perna adiante da outra. O tamanho da figura indica sua posição: os faraós são representados como gigantes sobressaindo entre criados do tamanho de pigmeus.


"Cena de caça de aves selvagens". Tumba de Nebamun, Tebas. c. 1450 a.C.

Feitas para durar eternamente, as estátuas eram esculpidas em substâncias duras, como granito ou diorito. Sentadas ou em pé, tinham poucas partes protuberantes que pudessem se quebrar. A pose era sempre frontal e bissimétrica, com os braços próximos ao torso. A anatomia humana era, no máximo, uma aproximação.


"Nefertiti". c. 1360 a.C.

Uma das oitenta pirâmides remanescentes, a Grande Pirâmide de Queóps, em Gizé, é a maior estrutura em pedra de todo o mundo. Os antigos egípcios nivelaram sua base de cerca de 52 quilômetros quadrados - um quadrado perfeito - com tanta maestria que o ângulo sudeste é apenas um centímetro mais alto que o ângulo noroeste. O interior é massa praticamente sólida de lajes de calcário, o que exigiu excelentes técnicas de engenharia para proteger as pequenas câmaras mortuárias do peso maciço das pedras acima. O teto da Grande Galeria foi construído em camadas e escorado, enquanto a câmara do faraó recebeu um teto de seis camadas de granito sobre compartimentos separados, para aliviar a tensão e deslocar o peso dos blocos diretamente acima. Construída em 2600 a.C. para durar para sempre, permanece até nossos dias.


"Grande Pirâmide de Quéops", Gizé.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 8-10.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Mesopotâmia: os arquitetos

"O berço do mundo" foi como o rei Nabucodonosor chamou a cidade da Babilônia. Esta primeira cidade foi o berço da arte e da arquitetura antigas, bem como o local dos Jardins Suspensos e da Torre de Babel.

Os autores bíblicos viam a magnífica Torre de Babel, de noventa metros de altura, como um emblema da arrogância humana tentando chegar ao céu. O historiador grego Heródoto descreveu-a como um amontoado de oito torres empilhadas, com 120 leões em cerâmica vitrificada vivamente colorida conduzindo a portões de metal maciço. Uma escada em espiral externa levava ao topo da torre, onde um santuário interno continha um sofá e uma mesa de ouro ricamente adornados. Os babilônios diziam que era a câmara em que seu deus dormia.

"Torre de Babel", Bruegel, o Velho

Os Jardins Suspensos, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, eram igualmente grandiosos. Consistiam em uma série de quatro terraços de tijolos erguendo-se sobre o rio Eufrates, com árvores e arbustos de flores luxuriantes se debruçando sobre a cidade. Alguns acreditam que a Mesopotâmia abrigava um jardim histórico ainda mais famoso - o Jardim do Éden.

Em 3500 a.C., os sumérios, primeiros habitantes dessa região, dominaram as técnicas de irrigação e de controle do fluxo de água a ponto de criar um oásis fértil em meio às planícies arenosas que hoje constituem o Iraque. Instalados entre os rios Tigre e Eufrates, inventaram a cidade-estado, a religião formal, a escrita, a matemática, as leis e muito da arquitetura.

Usando o tijolo seco como bloco básico da construção, os mesopotâmicos planejaram cidades complexas ao redor do templo. Esses amplos complexos arquitetônicos incluíam não só um santuário fechado, mas também oficinas, armazéns e zonas residenciais. Pela primeira vez a vida era regularizada, com divisão do trabalho e ações coletivas, como a defesa e os projetos de obras públicas.

O palácio de Sargão II, dominando Nínive, cobria mais de cem quilômetros quadrados e continha mais de duzentos aposentos e jardins, uma bela sala do trono, haréns, áreas de serviço e da guarda. Situado num outeiro artificial de 15 metros de altura, o palácio ocupava cerca de 1.600 metros quadrados da cidade. Seu ponto mais alto era um zigurate (torre em forma de pirâmide), um grande templo de tijolos de sete andares de seis metros de altura cada um, e cada um pintado de uma cor diferente. A imensa altura dos zigurates refletia a crença de que os deuses habitavam as alturas. Foi destruído por volta de 600 a.C.

Além da arquitetura, a forma de arte predominante da Mesopotâmia era o baixo-relevo. Combinados com a escrita cuneiforme, em forma de cunha, os entalhes descrevem escrupulosamente, cena após cena, os feitos militares.

Outro tema predileto nos baixos-relevos era a coragem pessoal do rei durante as expedições de caça. Numa caçada típica, os criados incitavam os leões à fúria e depois os soltavam da jaula, para que o rei os matasse. "A Leoa Agonizante" retrata o animal ferido, paralisado pelas flechas. As orelhas baixas e os músculos contraídos da figura transmitem a agonia da morte com um realismo convincente.

"A Leoa Agonizante", Nínive. c. 650 a.C.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 6-7.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Guerra do Vietnã (1961-1975)

Laos, Camboja e Vietnã, países que resultaram da decomposição do domínio francês na Indochina, foram violentamente atingidos pelos conflitos decorrentes da divisão do mundo em dois blocos. O mais sangrento e dramático foi a Guerra do Vietnã (1961-1975), que, a rigor, foi continuação das lutas de independência.


"Diante das dificuldades para se lutar num território desconhecido e com florestas muito densas, os norte-americanos desenvolveram armas químicas, como o napalm, objetivando a queima de árvores, e o "agente laranja", um poderoso desfolhante, que poderiam facilitar a localização de redutos de soldados vietnamitas. O napalm era uma espécie uma espécie de gasolina gelatinosa que queimava ao contato. Calcula-se que os Estados Unidos lançaram sobre o Vietnã cerca de 340 mil toneladas de napalm. Na foto, crianças fogem de um ataque no qual foi utilizado esta substância. À direita, fotógrafos registram a cena. A divulgação de imagens como esta comprometeu a posição dos EUA tanto no plano externo como junto à opinião pública interna." (BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem 3. Curitiba: Base Editorial, 2010. p. 134.)

A tensão política no Vietnã, dividido em norte e sul, persistiu depois da independência (1954), apesar dos acordos feitos em Genebra. No sul, o primeiro-ministro Ngo Dinh Dien, católico e anticomunista, com ajuda norte-americana, adiou as eleições previstas para 1956, afastou Bao-Daí do governo e proclamou a República do Vietnã do Sul, declarando-se presidente. Em contrapartida, os comunistas organizaram a resistência, criando, em 1960, a Frente de Libertação Nacional (FLN) e, em 1961, o Exército de Libertação Nacional, chamado pelos norte-americanos de Vietcong.

Em 1963, a tensão política agravou-se com o assassinato de Ngo Dinh Dien. O governo norte-americano, sob a presidência de Lyndon Johnson, resolveu intervir militarmente e, em agosto de 1964, ordenou ataques aéreos ao Vietnã do Norte. A partir daí a guerra se generalizou no país. O Vietnã do Sul e as forças norte-americanas passaram a lutar contra as tropas do Vietnã do Norte e o Vietcong, que usava táticas de guerrilha. Os efetivos norte-americanos na área chegaram a contar com 541 mil homens.


Big Guns, David Fairrington

Em 1968, com o avanço do Vietcong, foram suspensos os bombardeios norte-americanos e iniciaram-se, em Paris, as negociações entre Washington e Hanói (capital do Vietnã do Norte).

Os encontros, porém, arrastavam-se, sem solução. Nos Estados Unidos cresciam as manifestações contrárias à guerra¹, conforme eram divulgados pela imprensa (principalmente a TV) a violência e os ataques norte-americanos à população civil das cidades e aldeias camponesas indefesas², além da devastação das plantações e dos recursos naturais provocada pelo uso de agentes químicos proibidos por convenções internacionais.³

Em 1970, contrariando a opinião pública do país e a internacional, o presidente dos Estados Unidos Richard Nixon ampliou o conflito, bombardeando o Camboja sob o pretexto de eliminar “redutos” comunistas. Em 1972, tropas norte-americanas atacaram, com intensidade sem precedentes, a capital norte-vietnamita. As forças do Vietnã do Norte, a FLN e o Vietcong resistiram. Em 1973 foi assinado, em Paris, um acordo, segundo o qual as forças norte-americanas deveriam se retirar do Vietnã, seria formado um conselho para organizar eleições no Vietnã do Sul e os prisioneiros seriam libertados.

Contudo, a saída dos Estados Unidos não significou o fim das lutas. De 1973 a 1975 a guerra foi “vietnamizada”, ou seja, as forças comunistas do norte avançaram sobre as províncias do sul e acabaram dominando todo o país. Em 1975, os comunistas ocuparam Saigon, encerrando-se a guerra com a reunificação do país, que passou a constituir a República Socialista do Vietnã. 

Mas o fim da Guerra do Vietnã não trouxe a paz para a região. Além dos graves problemas internos – determinados pelas divergências político-ideológicas, não eliminadas pelo conflito, e pelos efeitos devastadores das lutas prolongadas -, o Vietnã enfrentou os países fronteiriços: Camboja, em 1977; China, que em 1979 chegou a invadi-lo por 15 dias; e Tailândia, em 1980.

Wietnamska Pieta, Edward Knapczyk.

¹ "Assim, a guerra foi se tornando extremamente impopular junto à opinião pública nacional e internacional, deixando o governo dos EUA praticamente isolado no plano político internacional. No final da década de 60 e início da década de 70, manifestações contrárias à guerra aconteceram em quase todas as grandes cidades da Europa Ocidental e da América Latina. A queima de bandeiras norte-americanas em frente às sedes diplomáticas dos EUA no exterior tornou-se uma cena comum relatada pelo noticiário internacional.

Na Europa, foi criado até mesmo um tribunal internacional, formado por figuras eminentes do mundo cultural, que julgou e condenou o governo dos EUA de ter praticado crimes de guerra no Vietnã. [...]


O termo Vietnã entrou para o vocabulário político com o significado de 'o atoleiro em que se mete um país quando intervém em outro'. [...] Aparentemente, a chamada maioria silenciosa apoiava os atos do governo, mas o "barulho" feito pelos ativistas - estudantes, intelectuais, liberais, pacifistas etc. - teve um efeito muito grande sobre a opinião pública. Os jovens, especialmente, questionavam não apenas a guerra em si, mas o próprio estilo de vida americano - american way of life -, cujos dogmas tinham permanecido praticamente intocáveis durante décadas (os movimentos hippies, undergrounds e de contracultura surgiram mais ou menos nessa época).


Contudo foram as cenas mostradas pela TV que abalaram sensivelmente a sociedade norte-americana - pois a imagem da guerra transmitida pelo governo era muito diferente da realidade. [...] As feridas deixadas pela Guerra do Vietnã ainda não cicatrizaram de todo. Os mais de 50 mil mortos, os mais de 300 mil feridos e o drama vivido por inúmeros veteranos do Vietnã, que não conseguiram superar psicologicamente os traumas causados pela guerra, ainda estão vivos nas lembranças do povo norte-americano." (OLIC, Nelson Bacic. A Guerra do Vietnã. São Paulo: Moderna, 1988. p. 45-46.)

² "A Guerra do Vietnã foi marcada, entre outros aspectos, pelo grande sofrimento da população civil. Durante os 15 anos de conflito, essa população sofreu agressões sem precedentes do maior aparelho militar do mundo, que inclusive utilizou armas químicas e bacteriológicas contra militares e mesmo contra a população civil. Muitas aldeias foram atacadas por soldados norte-americanos, como foi o caso de My Lai, em abril de 1968. Os 120 soldados da "Companhia Charlie" foram encarregados de "limpar" a aldeia, que, segundo os norte-americanos, estaria servindo de abrigo a soldados inimigos. Ao final da invasão, 508 aldeões foram mortos em suas choupanas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos." (BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem 3. Curitiba: Base Editorial, 2010. p. 134.)

³ "Entre 1961 e 1971, o exército norte-americano realizou pulverizações maciças de desfolhantes sobre o Vietnã. Pretendia arrasar a cobertura vegetal, para impedir que o adversário se camuflasse, e destruir as colheitas para matar de fome as populações e os combatentes. O segundo objetivo era explícito: como as operações de guerrilha dependiam estreitamente das colheitas locais para seu abastecimento, os agentes antiplantas possuíam um elevado potencial ofensivo para destruir ou limitar a produção de alimento.

Os desfolhantes compreendiam essencialmente o agente laranja - que contêm a dioxina, um produto químico particularmente tóxico. [...] Foi uma catástrofe sanitária e ambiental para o Vietnã. E ainda é, porque a dioxina, produto químico muito estável, degrada-se lentamente e se integra na cadeia alimentar. Seus efeitos persistem no ambiente e afetam os habitantes das zonas atingidas. [...] Trinta anos após o fim das pulverizações, o agente laranja continua a provocar mortes, patologias de extrema gravidade e malformações no nascimento. [...]

Em relação ao meio ambiente, ainda que as taxas de dioxina no solo sejam felizmente baixas, regiões inteiras tornaram-se impraticáveis para os agricultores. [...] Perante a amplitude do desastre, a questão fundamental permanece: responsabilidade." (GRENDEU, Francis. Quem faz as guerras químicas. Le monde diplomatique, 1º jan. 2006.)

BERUTTI, Flávio. Caminhos do homem 3. Curitiba: Base Editorial, 2010. p. 134.
NEVES, Joana. História Geral – A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 499-500.
OLIC, Nelson Bacic. A Guerra do Vietnã. São Paulo: Moderna, 1988. p. 45-46.

domingo, 22 de setembro de 2013

A questão do Oriente

Foi o conjunto de problemas políticos internacionais surgidos em consequência do declínio do Império Otomano - "o guardião dos Estreitos". A área dos estreitos de Dardanelos e do Bósforo passou a ser alvo da disputa das potências europeias, tais como a Rússia, a Inglaterra, a França e a Áustria.

As grandes potências europeias ora defenderam a integridade do Império Otomano - chamado pelo czar Nicolau I de "O Homem Doente da Europa" -, ora defenderam a sua desintegração em vários Estados, sempre em função dos interesses políticos e econômicos dessas potências.

A Rússia constituía uma das únicas potências europeias que não possuía bons portos. Os portos da Rússia estavam situados em zonas afastadas das rotas comerciais, regiões de águas geladas, ou então facilmente bloqueáveis. Durante todo o século XIX, a Rússia desenvolveu uma política de buscar uma saída para o Mediterrâneo através dos estreitos do Bósforo e de Dardanelos, daí o seu interesse em intervir no Império Otomano, a pretexto de proteger os cristãos eslavos.

"Como a Europa compreenderia a importância vital que para nós constitui semelhante questão? Qualquer rumo a que possam conduzir as atuais conversações diplomáticas, cedo ou tarde Constantinopla deverá nos pertencer". 
(Dostoievski, em 1877)

A Inglaterra tinha grandes interesses econômicos e políticos no Mediterrâneo Oriental e em garantir as rotas terrestres e marítimas que possibilitavam comunicação com a Índia, fundamental para o Império Britânico. Por isso, não admitia uma expansão russa à custa do Império Otomano. Além disso, os ingleses tinham interesses comerciais nessa região. Durante o século XIX, a Inglaterra procurou frustrar os projetos russos e manter a "integridade" do Império Otomano.

A França, após a derrota de Napoleão Bonaparte, ficou isolada na Europa, e procurou sair desse isolamento aliando-se, por vezes, à Inglaterra. Ao mesmo tempo, a França tinha interesses econômicos em relação a várias áreas do Império Otomano, especialmente o Egito.

A Áustria era outro Estado europeu que necessitava de bons portos e por isso estava interessada na livre navegação do Rio Danúbio. Além do mais, procurou evitar que o Princípio das Nacionalidades atingisse igualmente as nações a ela subordinadas naquela área. A Áustria só veio intervir decisivamente na Questão do Oriente a partir da segunda metade do século XIX, quando foi afastada da Itália e da Alemanha por ocasião da unificação política daqueles países.

Em consequência dos interesses das potências europeias, o Império Otomano sofreu constantes desmembramentos devido aos choques internacionais daquelas quatro grandes potências interessadas nos Balcãs. Essa fragmentação representou o recuo dos turcos da Península Balcânica e o surgimento de novos Estados com base nas nacionalidades não turcas ali assinaladas: búlgaros, romenos, gregos, sérvios e outros.


Germanos de Patras abençoando a bandeira em Agia Lavra, Theodoros Vryzakis

As principais "questões" do Oriente no século XIX foram: a independência da Grécia (1829), apoiada pela Rússia; a Convenção dos Estreitos (1841), vitória da diplomacia inglesa desejosa de assegurar a sobrevivência do Império Otomano, estabelecendo, contra os interesses da Rússia, que os Estreitos (Bósforo e Dardanelos) estariam livres para navegação em tempo de paz e fechados em tempo de guerra; a Guerra da Crimeia (1853-1856), em que a França, com o apoio da Inglaterra e, depois do Piemonte, converteu-se em defensora da integridade do Império Otomano contra a invasão russa; a Rússia foi vencida e pelo Tratado de Paris perdeu tudo o que havia obtido anteriormente; e a Crise Oriental (1875-1878), que resultou na independência da Bulgária, da Romênia, do Montenegro e da Sérvia, além da cessão da Bósnia e da Herzegovina à Áustria, que recebeu a incumbência de administrar aquelas províncias turcas.

Já no século XX outras crises balcânicas ocorreram e se constituíram em antecedentes da Primeira Guerra Mundial.

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al]. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 246 e 248.

sábado, 21 de setembro de 2013

Exemplos de palavras de origem africana usadas no português do Brasil

Baloeiros, Heitor dos Prazeres

abóbora, angu,


bagunça, balangandã, banguela, batucada, beleléu, berimbau, biboca, borocoxó, brucutu, bunda,

cabaça, cabala, caçamba, cachaça, cachimbo, caçula, cafua, cafuné, cafundó, cafungar, cafuzo, calango, calombo, cambada, camburão, camundongo, canga, cangaço, canjica, cantiga, capanga, capenga, capote, carimbo, catinga, caxinguelê, cochilo, cotoco, curinga,

dendê, dengo, dengosa, desbundar,

embalo, encabulado, encafifado, enxerido, esmolambado,

forró, fubá, fuçar, fungar, futrica, fuxico, fuzarca, fuzuê,

galalau, gangorra, garapa, ginga,

iaiá, inhaca,

jabaculê, jagunço, jegue, jiló, jurema,

lambada, lelé, lengalenga, lundu,

macaco, maconha, macumba, mafuá, mambembe, mandinga, mandraque, mangar, maracutaia, marimba, marimbondo, marombeiro, maxixe, meganha, miçanga, milonga, minhoca, mocambo, mocotó, molambo, moleque, mondrongo, monjolo, moqueca, moringa, muamba, mucama, murundu, muvuca, muxibento, muxoxo,

orixá,

perrengue,

quengo, quiabo, quibebe, quilombo, quindim, quitanda, quitute, quizomba,

sacana, samba, senzala, songamonga, sunga,

tanga, tipóia, tiritar, titica, tribufu,

urucubaca,

vatapá,

xaxado, xingar, xodó,

zabumba, zangar, zonzo, zumbi.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 129.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

"Apartheid"

“A liberdade de um homem é o jugo de outro”.
(Provérbio africano, Benin)

Mural Huddleston, Josef Langerman 

Na África do Sul, cuja independência dentro da Commonwealth (ou Comunidade Britânica) ocorreu em 1931, os brancos africanos (descendentes de holandeses e ingleses) intensificaram a segregação racial (conhecida como Apartheid – privava os não brancos de todos os direitos políticos e civis e da maior parte dos direitos humanos) a partir da vitória do Partido Nacionalista, sobretudo nos governos de Daniel Malan (1948-1954) e Hendrik Verwoerd (1958-1966). “O aguçamento do racismo parece-nos ter correspondido a um novo perigo de proletarização de amplas camadas brancas da população”. (PEREIRA, J. M. N. Descolonização. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 1973. p. 39) Foi justamente o Apartheid que levou o governo de Verwoerd a cortar todos os laços com a Inglaterra e a proclamar a República Sul-Africana (1961).

Em 1985, na África do Sul, havia 5.500.000 brancos (os africânderes), 22.500.000 negros (chamados africanos), 3.250.000 mestiços (denominados coloureds) e 975 mil asiáticos. Durante as quatro décadas de existência do Apartheid, a luta entre a minoria branca (17%) e a maioria não branca (83%) foi constante, principalmente pelo crescimento da consciência negra.¹ Ficou conhecido o Massacre de Sharpeville, ocorrido em 21 de março de 1960, tornado o Dia Mundial contra a Discriminação Racial. Sabe por quê? Neste dia, as autoridades brancas massacraram uma centena de negros e prenderam mais de 200 que protestavam contra o Apartheid. Também em 1960 foi colocado fora da lei o Congresso Nacional Africano e encarcerado seu principal líder, Nelson Mandela – que permaneceu preso até 1990 -, decisões que levaram o partido a pregar a luta armada para conquistar direitos que os negros não possuíam. Graças, inclusive, às imagens transmitidas pela televisão, a opinião pública mundial tomou conhecimento da violência das autoridades brancas contra os protestos negros. Nessa luta destacou-se Desmond Tutu, primeiro bispo negro do país e Prêmio Nobel da Paz em 1984.

¹ “A minoria branca, que compunha um quinto da população total em meados do século, dominava a nação, conduzindo a mais bem-sucedida economia do continente, da Cidade do Cabo até Durban. Os africanos negros e os chamados mestiços do Cabo formavam 80% da população e serviam como mineiros, trabalhadores rurais, reparadores de estradas, varredores de ruas, garçons e empregados domésticos. Eram mal remunerados, pelos padrões do país, mas bem pagos em comparação com a maioria das nações africanas.” (BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 188-189).

Massacre de Sharpeville, Godfrey Rubens

Em 1988, o governo sul-africano proibiu toda e qualquer atividade de organizações oposicionistas, alegando que essas entidades “insistem em manter e promover um clima revolucionário”. Aliás, desde que decretou o estado de emergência, em junho de 1986, o governo sul-africano prendeu 25 mil pessoas sem julgamento, assassinou milhares de outras e, em 1987, estabeleceu feroz censura aos meios de comunicação.

E sabe por que toda essa violência? Para garantir à burguesia empresarial branca a disponibilização de mão de obra farta e barata, sem dispor de qualquer proteção das leis. Ao contrário, a legislação existente colocava a maioria não branca inteiramente à mercê da minoria branca.

Entretanto, a oposição cada vez mais violenta do Congresso Nacional Africano levou o governo do presidente Frederick de Klerk a revogar as leis do Apartheid: oficialmente deixou de haver o Apartheid (1991).²

Um plebiscito, no ano seguinte, aprovou, por maioria de votos, as decisões governamentais.

Mesmo assim, continuou instável a situação do país:
- a crise econômica permaneceu:
- aumentou a violência da organização branca neonazista Movimento de Resistência Africânder, com suas milícias fardadas de cáqui, usando a suástica e a saudação nazista;
- articularam-se organizações e partidos negros defensores de uma democracia baseada no princípio de um-homem-um-voto e na aprovação de nova Constituição.

Em 1994, Nelson Mandela, velho militante negro, foi eleito presidente da República, sendo formado um ministério de conciliação nacional. Desistindo de concorrer à reeleição, Mandela foi sucedido, em 1999, por Thabo Mbeki, também do CNA.

² “De qualquer forma os negros puderam votar e, principalmente, locomover-se livremente pelo país, geralmente em busca de empregos e melhores condições de vida. Por esta razão surgiram enormes favelas junto às grandes cidades, mostrando uma pobreza que estava oculta em regiões afastadas onde as “comunidades tribais” eram obrigadas a permanecer. Mas houve melhorias, apesar do alto índice de desemprego, pois o acesso à saúde, à educação, à eletricidade e, gradativamente, à moradia está sendo conquistado. Contudo, inegavelmente, há frustração pela falta de emprego, desigualdade social (agora há termo de comparação) e o resultado é o aumento da criminalidade, especialmente juvenil.

O país também recebe muitos imigrantes das regiões mais pobres da África, o que complica a situação e cria “bodes expiatórios” para os descontentes e forças políticas que buscam a instabilidade. Há um processo de Black empowerment, um programa governamental destinado a aumentar a presença dos negros nos negócios e na administração. Mas o que isto gerou até agora foi a formação de uma pequena elite negra, claramente cooptada pelo modo de vida dos antigos senhores, como o rico cinema sul-africano tem mostrado.

Embora a situação interna sul-africana seja complicada, especialmente quanto aos problemas sociais que afetam a maioria negra, começa a esboçar-se uma área de integração na África Austral em torno da “nova” África do Sul. O processo de paz traz implícita a integração econômica da região, permitindo virtualmente uma maior estabilidade social e diplomática, bem como uma inserção internacional menos onerosa desta área no movimento de globalização econômica em curso.” VISENTINI, Paulo Fagundes [et al]. História da África e dos Africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 152-153.


AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al]. História das sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 584-585.
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 188-189.
VISENTINI, Paulo Fagundes [et al]. História da África e dos Africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 152-153.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Homofobia: crimes de ódio

Toda homofobia tem em algum aspecto da heterossexualidade sua base fundamental. Contudo, a heteronormatividade não passa de uma crença. Uma crença convencionalizada e mal fundamentada construída no costume e em suas repetições acríticas. Nunca no conhecimento e na verdade. A simples existência dos homossexuais no mundo, por si só, comprova a contradição e o tendencionismo dessa crença. Inclusive, o preconceito faz parte do domínio da crença por ter base irracional.  Preconceitos não dizem respeito ao conhecimento – não usam de raciocínios, argumentos e evidências lógicas para se fundamentarem. Preconceitos não são justificáveis. Principalmente quando acompanhados de altas dosagens de violência, intolerância e discriminação. Discriminar alguém com base em sua orientação sexual é promover tratamento desigual – geralmente inferiorizando-o. E promover tratamento desigual é crime no Brasil.

Dois homens nus, François-Xavier Fabre

São indícios preocupantes em todo o mundo. Nosso país tem apontado graus de intolerância contra os homossexuais que estão além da imagem acolhedora que propagamos pelo globo. Em 2009, foram vítimas de homofobia no país em torno de 198 pessoas. Em 2010, nossa sociedade chocou o mundo com imagens de jovens homossexuais sendo agredidos gratuitamente e à luz do dia em plena Avenida Paulista – coração da maior e mais cosmopolita metrópole do país. Mas a homofobia não é peculiaridade brasileira. No país mais poderoso do planeta, os EUA, 17,6% dos crimes de ódio, em 2008, foram motivados por orientação sexual. Outras culturas também indicam intolerância e ignorância ao tratar do tema. Na China pós-Revolução Cultural, por exemplo, os homossexuais se tornaram alvo regular de perseguições policiais – acusados de vandalismo e perturbação da ordem pública. Na Coréia do Norte a homossexualidade é condenada enquanto vício promovido pela decadente cultura ocidental capitalista – supostamente deturpadora de caráter. Todavia, curiosamente, todos os dias noticiários estão abarrotados de casos de violência abusivos por parte de heterossexuais e nem por isso atribuímos tal violência e agressividade a essa orientação sexual. A verdade é que o suposto medo homofóbico desencadeia níveis de violência injustificáveis. Superiores a qualquer ameaça que os homossexuais possam vir a representar aos tradicionais costumes sociais.

Bacanal, Wilhelm von Gloeden

Em suma, a prática homofóbica se manifesta num conjunto de atitudes segregadoras, agressivas e discriminatórias de inferiorização dos homossexuais por parte dos heterossexuais. Trata-se de um preconceito fundamentado numa crença equivocada e irracional de que somente são possíveis no mundo aqueles que se atraem sexualmente pelo sexo oposto (heterossexualidade). Essa falsa crença deve ser sobreposta à conscientização de que homossexuais são seres vivos, seres humanos. Eles existem e estão ativamente dentro da sociedade. Pagam impostos como todo mundo, compram propriedades e se relacionam como todo mundo. Estudam, trabalham, amam, se frustram, possuem amigos e inimigos, são gordos e magros, bonitos e feios, gentis e sacanas, são tímidos e atrevidos como todo mundo. Se eles estão vivos é porque têm lugar para eles no mundo, caso contrário estariam mortos ou não existiriam. Mas existem. Eles existem. Existem. Nascem, têm vida própria, mães, pais e amigos. E, por existirem, seus direitos devem ser preservados e garantidos como os de qualquer outro ser humano, membro da sociedade civilizada e organizada legalmente.


A massagem, Édouard Debat-Ponson

Nossa constituição zela pelo bem-estar da população e prevê que o respeito pelo outro independe das suas escolhas afetivas pessoais. A Constituição Federal Brasileira define como objeto fundamental da República: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação”. A expressão quaisquer outras formas refere-se a todas as formas de discriminação não mencionadas explicitamente no artigo, tais como a orientação sexual, entre outras. Além de a Constituição proibir qualquer forma de discriminação de maneira genérica, várias outras leis estão sendo discutidas no Congresso a fim de se proibir especificamente a discriminação aos homossexuais. Vale lembrar também que países como o Canadá, a Holanda, Portugal, Argentina e Uruguai já legalizaram o casamento homossexual com o objetivo de reconhecer os direitos civis básicos dessa população.


Amantes do sol, Henry Scott Tuke

No sentido de regulamentar os direitos civis dos homossexuais no Brasil, a partir de 2011 passamos a permitir a legalidade da união estável entre indivíduos do mesmo sexo. O que a legitimação desse tipo de união vem estimular é a defesa de que a união deve ser legal em função do afeto nela presente. Casamentos não são mais (desde o século XVIII) obrigações sociais, nem alianças sociais e políticas entre famílias, não são meios de salvação da alma nem garantias de renda e muito menos mecanismo para manutenção da espécie. Casamentos são celebrações do direito de união afetiva com parceiros de nossa livre escolha. Legitimar a união e, daqui para frente, o casamento entre os homossexuais é afirmar que seus direitos fundamentais estão preservados, bem como o de qualquer outro brasileiro. É uma questão de justiça. O texto das uniões estáveis padronizado nos cartórios brasileiros é enfático: uniões estáveis asseguram direitos civis e a constituição familiar (não a tradicional, mas todos os tipos de família). Afinal, quem é a favor da família – enquanto núcleos funcionais de afeto e compreensão – tem de ser a favor de todos os tipos de famílias possíveis no mundo.


Duas mulheres valsadoras, Henri de Toulose-Lautrec

Por fim, extinguir a homofobia e legalizar os homossexuais na sociedade são atos imperativos para a garantia da qualidade de vida de toda uma geração que está por vir. Seja por adoção, seja por inseminação artificial e uso de barrigas de aluguel ou ainda pela reprodução genética entre duas mulheres, o que importa é que novas famílias estão se constituindo a partir das relações afetivas homossexuais. Assim como no século XX, novas famílias também se constituíram a partir de relações afetivas oriundas de divórcios. E a nova geração de brasileiros que se forma agora não pode vir a sofrer com a homofobia lançada sobre seus pais e mães. Assim como filhos de mulheres e homens divorciados não mereciam sofrer preconceito nas décadas passadas, quando o divórcio ainda era tabu social. Temos de minar a homofobia agora, não só pelo movimento LGBT em si, mas para que as novas gerações não precisem viver marginalizadas e clandestinas dentro da sociedade. Os recentes debates – mesmo que 20 anos atrasados – sobre o assunto são frutíferos e necessários para o amadurecimento de toda a sociedade brasileira. Espera-se que seus resultados sejam racionais, tolerantes, imparciais e objetivos – como toda verdadeira Ética deve ser.

Ana Augusta Carneiro. Crimes de ódio. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 49-50.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Homofobia: um preconceito crescente

“[...] as novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas; implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de “realidade”; subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer”. (Guacira Lopes Louro, professora aposentada da UFRGS)


Bandeira gay. Dia do Orgulho Gay, Madri, Espanha, 2008. Onanymous

Homofobia é uma palavra cujo significado implica medo daquele que sente atração sexual por indivíduos do mesmo sexo. Ou seja, é o medo do homossexual. Apesar do nosso costume em usar essa palavra, sua prática extrapola a fobia propriamente dita. Podemos afirmar, sem correr o risco de estarmos exagerando, que há em todo o mundo um conjunto de atitudes marginalizadoras que segregam aqueles de orientação homossexual. Nesse sentido, o termo homofobia, tão comumente usado, é incapaz de abarcar tudo o que a homofobia realmente envolve. Esse termo deveria ser substituído minimamente pelo conceito de preconceito sexual. O preconceito sexual se caracteriza no dia a dia pela totalidade das atitudes marginalizadoras de sexualidades não heterossexuais.

Esse tipo de preconceito sexual parece estar vinculado ao fato de existir em grande parte das diferentes culturas uma predominância heterossexual. A predominância heterossexual vem sendo usada para justificar o que chamamos de heteronormatividade. Heteronormatividade é a crença dos heterossexuais em determinar sua orientação sexual, não só como predominante, mas também como uma possibilidade unânime absoluta. Há embutida nessa visão de mundo que os seres humanos recaem em duas categorias distintas e complementares: macho e fêmea. E, por isso, relações sexuais e maritais são normais somente entre pessoas de sexos diferentes. Há também a defesa que em função da heteronormatividade cada sexo tem certos papéis naturais na vida. Em outras palavras, o ato sexual físico, a identidade de gênero e o papel social de gênero deveriam enquadrar qualquer pessoa dentro de normas integralmente masculinas ou femininas – sendo a heterossexualidade considerada a única orientação sexual normal. As normas às quais a heteronormatividade implica podem ser abertas, encobertas ou implícitas. Essa é uma tese ultrapassada desde 1789, quando entramos na contemporaneidade e com isso num mundo de inclusão e entendimento da diversidade. A contemporaneidade nos deu o direito de aceitação daquilo que é plural – daquilo que é diversificado. Qualquer um que acredite e defenda a heteronormatividade com base em sua predominânica estará em última instância negando seu próprio tempo e realidade.

Os músicos, François Barraud 

Além da predominância dos indivíduos heterossexuais, na maioria das culturas, outra premissa usada para justificar a heteronormatividade consiste na associação heterossexual com a reprodução. Crê-se que a reprodução da espécie e sua manutenção estão necessariamente vinculadas ao ato sexual heterossexual, considerado o único legítimo por natureza. O ato homossexual, por não permitir reprodução da espécie, se torna automaticamente, dentro dessa perspectiva, um ato inadequado e inapropriado. Assim sendo, sujeito a ser banido, perseguido e combatido.

A utilização desse tipo de raciocínio para sustentar a normatividade heterossexual poderia ser plausível no mundo antigo, medieval e moderno, quando pouco ou nada se sabia sobre reprodução humana. Era tamanha a ignorância nesses períodos sobre tal assunto que o sexo dos bebês era atribuído às mulheres. Mulheres que por sua vez pagavam preços altíssimos quando não pariam os varões que a sociedade tanto cobrava. Pagavam o preço da nossa ignorância. Do mesmo modo como a contemporaneidade responsabilizou os cromossomos XY pelo sexo dos bebês, também libertou a reprodução humana das vias naturais. Ou seja, a reprodução da espécie não depende mais do ato sexual físico e pode ser garantida artificialmente. São técnicas inovadoras de inseminação que beneficiam todos os tipos de famílias. Não só as técnicas de inseminação artificial permitem novas formas de reprodução, como também a legalização de barrigas de aluguel proporciona que casais homossexuais se reproduzam consaguineamente. Na verdade já estamos caminhando para algo mais elaborado do que o simples uso de ovócitos e barrigas de aluguel. O avanço científico permitirá que casais de mulheres homossexuais sejam capazes de se reproduzirem consanguineamente tal qual casais de heterossexuais. Tudo indica ser perfeitamente possível extrair e isolar cromossomos dos gametas de uma mulher inserindo-os, posteriormente, no ovócito de sua parceira. A gestação poderia ser feita no útero de qualquer uma das duas. Somente nasceriam meninas, dada a predominância de cromossomos XX. Essas meninas seriam biologicamente filhas de duas mães, e quando submetidas ao teste do DNA, só haveria, necessariamente, vínculo genético das duas mulheres que a geraram – com total ausência de DNA masculino.

Nesse sentido, para aqueles que ainda procuram sustentar a homofobia com base na impossibilidade reprodutiva entre os homossexuais haveria novo problema: a continuidade da espécie somente pelo sexo feminino e a extinção do sexo masculino. Isso implicaria a real supremacia feminina no que concerne à reprodução humana – dado que, até o momento, o útero é a única garantia de reprodução insubstituível.

Portanto, a crença de que somente relações heterossexuais são legítimas com base na reprodução da espécie, ou com base numa reprodução natural, se torna irracional. É uma tese passada (primitiva) e deixada para trás desde que a inseminação artificial foi inventada em meados finais do século passado.

Contudo, a normatização da sexualidade heterossexual com base na possibilidade reprodutiva tem ainda outro grande equívoco: a premissa de que nós nos relacionamos sexualmente exclusiva e estritamente para procriarmos. Essa tese vem sustentando atos de violência em todo o mundo, não só contra os homossexuais como também contra as mulheres. O absurdo das mutilações de clitóris feminino em tribos africanas e os recentes estupros coletivos indianos provam o tamanho do equívoco em restringir sexo a procriação. A mesma violência que considera relações sexuais homossexuais antinaturais também sustenta a mutilação do clitóris. Os estupros coletivos denotam a mentalidade primitiva de que mulheres não devem ter espaço no mundo profissional – muito menos autonomia. É uma mentalidade inverossímil que considera a existência de mulheres exclusivamente para a vida doméstica e para a procriação da espécie. Considerar os homossexuais uma aberração comportamental porque são incapazes de procriar naturalmente inclui exatamente esse tipo de pensamento irracional e intolerante. É intrigante que em pleno século XXI ainda haja tanta gente considerando o sexo exclusivamente para procriação.


Hoerle Zwei Frauen, Heinrich Hoerle

O ato sexual deveria ser considerado por todos algo fisiológico e natural do corpo humano. Precisamos de sexo tanto quanto de alimento e água. E não para por aí. Tendemos a procurar parceiros sexuais também na expectativa de trocarmos experiências afetivas e emocionais. Ou seja, fazemos sexo ora por carência, ora por alegria e ora por interesse em conhecer melhor outra pessoa – numa busca constante por intimidade. Na verdade, os caminhos que nos levam à prática sexual são diversos. Incluem a procriação, mas não se esgotam nessa possibilidade. [...] Quando buscamos parcerias afetivas procuramos quem ofereça afinidades de valores e estilo de vida, interesses econômicos semelhantes, expectativas de uma vida em comum, construção de núcleo familiar funcional, buscamos parceiros admiráveis, confluências de interesses e gostos pessoais. [...] Homossexuais, como todos os demais seres humanos, querem ser amados, querem construir família, querem melhorar de vida, querem encontrar cumplicidade e comprometimento em seus parceiros afetivos. [...] A grande e única diferença entre heterossexuais e homossexuais está em heterossexuais procurarem tal parceria de vida no sexo e gênero oposto, enquanto homossexuais a procuram no mesmo sexo e gênero.


Doze meninos nus na praia, Charles Demuth

Há também outro tradicional equívoco heteronormativo. Boa parte da discriminação se baseia na repulsa ao ato sexual físico homossexual. Muito da chamada fobia calca-se no incômodo causado pela presença de dois órgãos genitais idênticos presentes num mesmo ato sexual. [...] Contudo, quando avaliamos mais detalhadamente tal aversão normalmente encontramos nela muita fantasia e imaginação. Os heterossexuais comumente criam uma imagem mental do ato sexual homossexual num cenário promíscuo e pervertido. Heterossexuais fantasiam com o ato sexual homossexual envolto numa atmosfera de vulgaridade digna de filmes pornográficos da pior qualidade. Fazem isso sem se darem conta do quão distante da vida real está a pornografia. Trata-se de uma repulsa estigmatizada, imatura e estúpida. Não condiz com a realidade dos relacionamentos afetivos e prende os homossexuais num estereótipo vulgar e empobrecido. Uma prisão enclausurante e sem saída. Trata-se de um preconceito que simplesmente nega vínculos afetivos. 

Ana Augusta Carneiro. Homofobia: preconceito nega vínculos afetivos. In: Filosofia. Ano VII, nº 83, junho de 2013. p. 45-49.