"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Vestir-se e despir-se na Idade Média: Calças de baixo, calças compridas e meias

Catarina de Siena, em seu impulso de caridade, doa até mesmo uma peça – as calças de baixo – que somente o seu ideal de recato tornava indispensável para um pobre; as pessoas de condição humilde, homens e mulheres, dispensavam-nas tranquilamente, como mostra, por exemplo, a iluminura que ilustra o mês de fevereiro no Livro de horas do duque de Berry, de 1413: os camponeses, para melhor se aquecerem ao fogo, levantam as roupas, deixando à mostra os genitais. Os panos de perna, como eram chamadas as calças de baixo na Idade Média, eram uma indumentária que os romanos já conheciam, mas que sempre desprezavam e hostilizavam, considerando-a própria de bárbaros. Um dos primeiros testemunhos no tempo dos lombardos vem de Paulo Diácono, que conta como Alahis, duque de Trento, recebe com grande má vontade um diácono que trazia uma mensagem da parte do bispo de Pavia, Damião, e manda dizer ao prelado que só seria admitido “si munda femoralia habet” (“se tivesse as calças de baixo limpas”); ao que o postulante responde que as tem muito limpas, tiradas naquele mesmo dia da roupa limpa. O duque replica, então, que estava pouco ligando para as tais calças, se limpas ou não; queria saber se limpo era quem estava dentro delas. Prontamente, o diácono respondeu que sobre isso, só Deus podia ser juiz.


Fevereiro: Livro de horas do duque de Berry

As calças de baixo (chamadas exatamente assim [mutande] em um inventário veneziano de 1335) mudaram de nome e de forma ao longo dos séculos. No tempo de Sacchetti, as que estavam na moda eram tão pequenas que – diz cruamente o escritor – os homens “enfiavam a bunda num calcetto, ou seja, em uma meia curta que, na Idade Média, se usava por baixo das meias e que protegia apenas os pés. Calças de baixo em uma versão bastante moderna é o que um grupo de pessoas ansiosas por experimentar os efeitos da “Fonte da Juventude” nos mostra em um alegre afresco da metade do século XV, na sala do castelo de Manta (na província de Cuneo). Há um velho que se despe, macilento e exibindo suas cãs, há alguns que já mergulharam na fonte e outros que estão vestindo as roupas depois de reconquistar os verdes anos. Um dos favorecidos, que recuperou um aspecto agradável, é ajudado por uma amiga a enfiar uma elegante jaqueta munida de uma longa fila de botões com as respectivas casas.

As alças das calças de baixo desse jovem serviam para completar seu vestuário, ou seja, para segurar na cintura as meias justas que a moda impunha. Pode-se perceber nitidamente as casas para botões também nas meias que um velho despe, acocorado ao lado da fonte; mais adiante, um elegante cavaleiro que está para montar no cavalo também as deixa bem à mostra, ao lado de um companheiro cuja mão enluvada segura um chicote; também as luvas, diga-se de passagem, são uma dádiva da Idade Média.

Para inclinar-se, dado que o tecido não tinha nenhuma elasticidade, era preciso desatar as meias, pelo menos em parte. É o que nos mostra, com muita desenvoltura, um dos lapidadores de santo Estevão, em trajes trecentistas tardios, enquanto recolhe no chão uma pedra enorme para dar cabo do mártir. Essas meias, com solas, faziam às vezes de calçados.

A nova moda fez desaparecer o tipo anterior de bragas largas, às vezes longas até os joelhos, às vezes até o tornozelo – exatamente como as nossas calças compridas – que os germanos usavam habitualmente à vista sob a túnica curta, como mostram, por exemplo, alguns dos personagens envolvidos nas histórias de são Paulo, em um díptico de marfim do século VI ou o pobre que providencialmente recebe de são Martinho a metade de seu manto, em uma iluminura do final do século X.

Aos “bárbaros” deve-se igualmente a difusão das fivelas com cravetes para fechar os cintos: podemos admirar um belo exemplar lombardo do século VII, em prata, conservado em Cividade del Friuli.


FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 101-105.

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