"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O "chef" e o médico

O rápido aumento das viagens para o exterior, impulsionado por tarifas aéreas baratas e férias anuais mais longas, estimulou o apetite pelo exótico. Em Bonn, Toronto e outras 50 cidades ocidentais, o número de restaurantes finos cresceu - na França e na Itália, já havia vários. O banqueiro e a mulher, o advogado e a família, a diretora de escola e o marido, bem como todas as pessoas do mesmo estrato social, que na década de 1930 entravam em restaurantes somente para festas de casamento, passaram a sair para comer fora com estilo. Os almoços de negócios tornavam-se mais frequentes e mais longos.

A moda de comer fora se popularizou graças à prosperidade crescente e às famílias menores, auxiliada também pelo enfraquecimento dos movimentos pela austeridade e abstinência, vigorosos até mesmo durante a década de 1930 em países como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e em alguns outros. No ápice da cruzada pela moderação, grupos de protestantes evitavam entrar em restaurantes ou hotéis que servissem refeições, para não verem sobre a mesa a imagem da tentação em forma de uma garrafa de vinho alemão ou francês.

Jovem mulher na cozinha, Andrea Commodi

No fim do século, essa mudança profunda na maneira de as pessoas cozinharem e comerem, bem como em outros aspectos do dia a dia, encontrava-se em estágio avançado. No início do século, a cozinha era o centro de uma casa típica. Farinha, açúcar e alimentos básicos ficavam guardados em latas e tijelas, e das vigas pendiam réstias de cebola, ervas e carne defumada. Em fogões a lenha ou a carvão, praticamente todas as refeições eram preparadas e também se fervia a água para beber e lavar roupas. Grande parte da vida das mulheres se passava na cozinha, onde preparavam comida e faziam inúmeras outras tarefas. Em 2001, esse modo de vida tornava-se raro na Europa e em boa parte das Américas. A comida pronta, enlatada e congelada tomava conta das despensas. Fogões a gás ou elétricos e fornos de micro-ondas substituíam os antigos fogões e os estoques de carvão ou lenha. Vários equipamentos, como torradeiras, cafeteiras e lavadoras de louça, confinavam-se em espaços minúsculos, chamados de quitenetes. Como resultado, o tempo gasto todos os dias no preparo das refeições foi drasticamente reduzido.

As fábricas de enlatados e de alimentos processados alteraram a importância da cozinha dos velhos tempos. Foram mudanças extraordinárias, ocorridas rapidamente e experimentadas por cerca de metade dos lares em todo o mundo.


O doutor, Luke Fildes

A Segunda Guerra Mundial foi um grande estímulo para as descobertas médicas. A atmosfera de urgência parecia incentivar as pesquisas. A capacidade de salvar vidas humanas nas décadas de 1940 e 1950 superou a de todas as décadas anteriores. O número de mortes durante a Segunda Guerra Mundial foi significativo, porém baixo em comparação com o aumento das técnicas de salvamento.

A habilidade em combater a malária nos trópicos aumentou graças à guerra. Os pântanos de onde vinham os mosquitos portadores da doença foram tratados com um novo produto químico suíço chamado DDT. [...]

A descoberta da penicilina deveu muito a experiências anteriores, sendo fruto de uma longa pesquisa em busca de um medicamento capaz de combater uma doença específica, sem afetar o organismo todo. Em 1910 o alemão Paul Ehrlich, sabendo que as bactérias causavam doenças, inventou uma dose de preparado arsênico que atacava a sífilis sem diminuir a resistência do corpo. Outra nova substância combatia a doença do sono, uma maldição na África Central. Em 1932, os laboratórios alemães da gigante química IG Farben desenvolveram os primeiros tipos de droga à base de sulfonamida que, nos dez anos posteriores, começariam a combater a pneumonia e a desinteria.

Uma descoberta ainda mais importante, na mesma linha de pesquisa, foi feita durante a Segunda Guerra Mundial. Howard Florey, um jovem estudante, tinha viajado da Austrália para Oxford à procura de um modo de combater as infecções microbianas. Lá, fez experiências com um intrigante fungo que inibia o desenvolvimento da bactéria resistente, já observado por Alexander Fleming, bacteriologista londrino que, no entanto, não deu continuidade às pesquisas. Auxiliado pelo dr. Ernst Chain, um químico que havia fugido de Berlim, Florey obteve resultados animadores relacionados a um tipo de droga, a qual chamou de penicilina. Experiências com ratos em maio de 1940 - exatamente quando as tropas de Hitler avançavam em direção ao Canal da Mancha - indicaram que a penicilina tinha potencial para salvar vidas. Após testes clínicos efetivos, o novo antibiótico foi produzido em massa na América, dada a urgência com que era necessário.

Levado para os hospitais de campanha, o medicamento começou a operar milagres, sobretudo em pacientes que haviam sido submetidos a cirurgias graves ou que estivessem sofrendo de doenças venéreas. A penicilina salvou dezenas de milhões de vidas durante os primeiros cinquenta anos de uso e seu sucesso possibilitou a descoberta de drogas contra outras doenças infecciosas.

A tuberculose era bastante comum. Transmitida por tosse e saliva e também pela ingestão de leite contaminado, foi alvo de investigações médicas. Em 1921, a França adotou uma vacina - não tão efetiva quanto se esperava - contra a doença. A Alemanha obrigou seus soldados a fazerem exames de raios X na d[ecada de 1930. Em 1944, na Rutgers University, perto de Nova York, um cientista nascido na Ucrânia, cuja especialidade era microbiologia do solo, fez importantes descobertas. Analisando os micróbios que surgiam nos solos, o professor Selman Walksman e seu auxiliar identificaram um inimigo dessas criaturas: a estreptomicina, que se tornou a base do novo remédio. Após descobertas na Suécia, na Alemanha e nos Estados Unidos ao longo dos dez anos seguintes, a campanha contra a tuberculose parecia encaminhar-se para a vitória. Como tantas outras conquistas, entretanto, dependeria muito de melhorias nas questões de higiene e nutrição.

As doenças infantis eram minimizadas e curadas graças à pesquisa diligente, muitas vezes realizada por cientistas de pouco renome, cujos méritos nem sempre eram facilmente reconhecidos. Entre os anos de 1930 e 1950, muitas crianças foram vítimas de epidemias severas de poliomielite. Mantidas em um "pulmão de ferro" ou deitadas imóveis em camas onde suas pernas ficavam presas por talas, compunham um cenário triste. Depois que Jonas Salk, de Pittsburgh, desenvolveu, em 1955, uma vacina injetável segura, a poliomielite recuou. A febre remáutica, diagnosticada com frequência na primeira metade do século, também perdia força, mas não tão rapidamente.

Os cirurgiões realizavam experiências corajosas, fazendo surgir esperanças, por exemplo, para problemas cardíacos tidos como insolúveis até então. Os que sofriam de certas incapacidades podiam ser curados graças a um aparelho chamado marca-passo. Uma vez que tal instrumento ainda não tinha uma forma miniaturizada, após o procedimento cirúrgico os pacientes tinham de carregar os equipamentos eletrônicos necessários em uma maleta ou no bolso. Para crianças vítimas de males cardíacos congênitos - então a maior causa de morte de bebês norte-americanos -, a cirurgia do coração era arriscada e precisava ser feita de modo cauteloso, mas logo a taxa de intervenções bem-sucedidas cresceria. Para o público em geral, um dos assombrosos eventos da história da Medicina foi o transplante de coração, feito pela primeira vez pelo dr. Christian Barnard, na Cidade do Cabo.

Outra descoberta avançada das pesquisas médicas, uma minúscula unidade chamada gene, despertou pouco interesse no início da década de 1950. Semelhante a um grão de areia microscópico, foi considerado a menor parte do bloco de construção da vida. O gene é capaz de se reproduzir e carregar informações que são transmitidas de pais para filhos e codificadas em moléculas de DNA, abreviação de deoxyribonucleic acid (ácido desoxirribonucleico).

O DNA foi descoberto por dois pesquisadores que não possuíam muita experiência: Francis Crick, um inglês na casa dos 30 anos, e James Watson, um norte-americano ainda mais jovem. Como Watson declarou mais tarde, o caminho mais simples para as descobertas científicas é "permanecer distanciado das teses por demais discutidas", o que se provou uma vantagem. Eles começaram a trabalhar juntos em 1951 na Cambridge University, no laboratório que uma geração antes servira como local para o surgimento do inovador processo chamado de cristalografia de raios X. Com poucos equipamentos e recursos financeiros, ambos foram abençoados com intuição e olho clínico para as pistas oferecidas pelos que ocupavam a vanguarda da teoria química e de cristalografia. Entre eles, estava a cientista Rosalind Franklyn, que generosamente compartilhou suas descobertas, estimulando a teoria experimental então desenvolvida por Crick e Watson. [...]

O sucesso de Crick e Watson chegou em 1953, apenas dezoito meses depois do início de seu trabalho em equipe. A teoria que desenvolveram sobre o DNA, exposta de maneira resumida na revista Nature, não produziu inicialmente nenhuma grande comoção. Meio século mais tarde, perguntaram a James Watson que reação sua descoberta tinha causado. "Silêncio quase absoluto", ele respondeu. Foi somente a partir da década de 1960 que as revistas especializadas passaram a discutir a sério a teoria dele. Uma grande quantidade de investigações e cálculos foi necessária para que a teoria se tornasse uma ferramenta prática.

Nos últimos vinte anos do século, o estudo dos genes se tornou uma chave para várias portas. Descobriu-se que um defeito genético causa a diabete, que determinado gene está ligado ao retardo mental e que outro pode ser a causa da surdez hereditária. A genética se tornou uma aliada das autoridades. Em tribunais, amostras de sêmen, pele ou cabelo colhidas de prisioneiros são cada vez mais consideradas como equivalentes a impressões digitais. A partir de exames semelhantes, descobriu-se, em 1985, que uma campeã espanhola de corrida com obstáculos era na verdade um homem, o que resultou em desqualificação. Boa parte da compreensão sobre plantas, animais e seres humanos vem das teorias de Crick e Watson e das pesquisas subsequentes.

[...]

Outras facetas do conhecimento médico e das técnicas de cirurgia consideradas triviais hoje em dia tiveram sua origem ou atingiram seu auge durante esse espantoso período de vitalidade científica. Uma pílula de controle da natalidade foi desenvolvida. A palavra colesterol passou a fazer parte do vocabulário dos bem-informados. O laser, uma invenção de 1960, começou a modificar alguns tipos de cirurgia.

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BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 236-242.

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