"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

Carta às nações civilizadas do mundo

Brasil, primeiro quartel do século XXI


Às nações civilizadas do mundo


Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
Clarice Lispector


Como primeira medida tomada pelos líderes da irmandade fundamentalista cristã, que tomaram o poder em nome de Deus, temos uma nova Constituição. Ela foi outorgada pelos teólogos. Nela está escrito que “todo poder emana de Deus” e, portanto, o Estado é teocrático. Na Educação ocorreram mudanças drásticas: os manuais de Biologia agora trazem em suas capas uma tarja preta com os dizeres “a evolução é apenas uma teoria”; livros de História e Arte não tem mais ilustrações de obras produzidas na Antiguidade Clássica ou no Renascimento – afinal, o nu artístico é pecado - está escrito na Bíblia, dizem os fundamentalistas cristãos; os clássicos da literatura universal estão sendo queimados em grandes fogueiras; professores de Filosofia e História que insistem em trabalhar com manuais antigos são perseguidos; um grupo mais radical da irmandade fundamentalista cristã quer abolir essas disciplinas dos currículos das escolas. Antropólogos estão sendo coagidos a reescrever suas obras e tem que afirmar publicamente que os índios são bárbaros, primitivos e precisam ser convertidos de sua bestialidade; também foram obrigados a dizer que os negros trazidos da África eram idólatras e que a escravidão foi a forma encontrada para que eles pagassem seus pecados. Praticantes de religiões de matriz afro, ateus e seguidores de outras religiões tradicionais são demonizados, presos ou convertidos à força. Gays, lésbicas e travestis são presos e usam cruzes invertidas e coloridas e são sumariamente enviados a campos de "purificação da alma" - lá realizam trabalhos forçados para purgarem seus "abomináveis pecados" e, depois de algumas semanas - se os psicólogos não conseguem curá-los - são queimados vivos em fogueiras nas praças públicas; Evas se tornaram submissas ao homem – sexo só para efeitos de reprodução -;  Marias Madalenas são apedrejadas nas ruas. Comunistas, socialistas e libertários são aprisionados, banidos ou viram desaparecidos políticos; artistas são severamente vigiados e proibidos de produzir poesia, literatura, romances, obras de arte sob pena de serem exilados ou presos. Danceterias e clubes são fechados e tem suas portas lacradas com uma cruz invertida e os dizeres "aqui frequentavam libertinos e pecadores"; cinemas, bibliotecas, galerias de arte e museus também estão sendo fechados; as rádios só tocam música gospel; as emissoras de TV tem horários nobres pautados por cultos teatrais onde tudo é demonizado; novelas e séries são todas com temáticas bíblicas. O Estado  não é mais laico: o país agora tem religião oficial. Tudo em nome do Deus único e verdadeiro - deles. Da Bíblia reescrita. Tem até uma passagem exdrúxula: Cristo transformou "água em Coca-Cola". Só há um partido político permitido: o PFC (Partido Fundamentalista Cristão). O Congresso e o Senado foram fechados por tempo indeterminado. Tudo é demonizado. Tudo é pecado. Tudo é proibido. O terror e o horror avassala. Há toque de recolher. Resistências? Quase não há. Apenas os lúcidos resistem. O povo tem medo do fogo dos infernos e dos gladiadores fundamentalistas. O mundo assiste atônito ao obscurantismo que eclipsou a terra do carnaval, do samba e do futebol. A alegria estampada no rosto do brasileiro se esvaiu em dor, sofrimento e humilhação. Tenho medo. Muito medo. Queria acordar desse pesadelo tenebroso e ter a sensação de alívio de que tudo isso que relatei foi apenas um delírio. Mas é real. Muito real.

De um cidadão brasileiro que pede asilo em qualquer parte do mundo onde não é proibido sonhar, viver em paz e ser feliz!


MAURER JUNIOR, Orides. Ecos do tempo: uma viagem pela história. Joinville: Letradágua, 2015. p. 69-70.

Orides Maurer Jr. é historiador e autor do blog ϟ●• História e Sociedade •●ϟ

© 2015 by Orides Maurer Jr.

2 comentários:

  1. Infelizmente o Brasil corre esse risco. Temos que ficar atentos.

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    1. Com certeza Prof. Adinalzir. O risco é real. O povo precisa acordar dessa letargia em que se encontra. Não podemos retroceder às trevas medievais. Abraços.

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