"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Que ódio é esse?

Teu Cristo é judeu; teu carro, japonês; tua pizza, italiana; tua democracia, grega; teu café, brasileiro; tuas férias são turcas; teus números, árabes; teu alfabeto é latino. E teu vizinho é tão somente estrangeiro? 

[De um outdoor afixado no centro da cidade de Frankfurt, na Alemanha, no início dos anos 90, denunciando o racismo e a discriminação contra os estrangeiros naquele país.] Citado em: SALEM, Helena. As tribos do mal: o neonazismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Atual, 1995. p. 83.

Manifestação neonazista em Los Angeles (EUA), em 2010

Após assistir, ainda muito recentemente em termos históricos, à avalanche de xenofobia e racismo que dominou a Europa durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos que a precederam, sob a hegemonia nazi-fascista; após atravessar os séculos de intolerância religiosa, que resultou nos processos da Inquisição contra todos aqueles que discordavam dos cânones da Igreja Católica na Idade Média e na Moderna, o mundo depara hoje, mais uma vez com novas ondas de racismo, antissemitismo e nacionalismo xenófobo (do grego xenos, “estrangeiro”, e phobos, “fobia”, “horror”; ou seja, aquele tem ódio aos estrangeiros). Mesmo em alguns países, como o Brasil, onde essas ideologias nunca chegaram a ter presença expressiva, vê-se o seu renascimento.


Verdade que os tempos são outros. Há diferenças de tempo e espaço – entre os nazistas de ontem e os neonazistas de hoje; entre os inquisidores medievais que jogavam os dissidentes na fogueira e os fanáticos encapuzados da Ku Klux Klan que lançaram seu terror contra negros e comunistas nos Estados Unidos, nos anos 1960. Diferentes também entre os integralistas que atuavam na política brasileira dos anos 1930 e grupos como os skinheads/Carecas do Subúrbio de agora. (...)

(...) o contingente de excluídos se diversificou: aos judeus somaram-se os turcos, os árabes, os africanos e toda a mão de obra barata procedente do Terceiro Mundo que buscou a rica Europa e os Estados Unidos como mercado de trabalho nas últimas décadas.

No Brasil, os preconceitos dos neonazistas e neofascistas foram adaptados à realidade local: em vez dos turcos, o alvo são os nordestinos – a mão de obra miserável que migra em massa para o Sul do país -, incluindo também os negros e os homossexuais, além dos judeus.

Qual a dimensão efetiva desse ressurgimento do nazi-fascismo no mundo? O que ele significa? Quem são esses enlouquecidos skinheads que, como os inquisidores medievais ou a SS nazistas dos fornos crematórios, queimam hoje, imigrantes turcos na Alemanha, assassinam africanos na Itália, rejeitando o pobre, o diferente? E no Brasil, como esses movimentos se organizam? (...) SALEM, Helena. As tribos do mal: o neonazismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Atual, 1995. p. 1-3.

“Quanto mais penso nos problemas que nos afligem, tanto mais me convenço de que devemos tomar a Ironia e a Piedade por conselheiras e juízas, como os antigos egípcios, que invocavam a proteção da deusa Ísis e da deusa Néftis sobre os seus mortos. Tanto a Ironia quanto a Piedade são boas conselheiras. A primeira, com seus sorrisos, torna a vida agradável; a segunda santifica a vida com suas lágrimas. A Ironia que invoco não é uma divindade cruel. Não zomba do amor nem da beleza. É gentil e bondosa. Seu júbilo nos desarma, e é ela quem nos ensina a rir dos malfeitores e dos tolos, pelos quais, se não fosse por ela, nossa fraqueza nos levaria a sentir desprezo e ódio”. (Hendrik Willem van Loon)

Sexo, gênero e família: a história da mulher

Uma "suffragette" presa na rua por dois policiais. 
Londres, 1914

Na etapa dos caçadores-coletores, a mulher era encarregada [...] da coleta e das primeiras etapas da agricultura, enquanto que o homem cuidava da caça e da pecuária. Com o desenvolvimento da agricultura e com o envolvimento dos homens no trabalho rural, uma das principais atividades da mulher passou a ser a de fiar e tecer, o que alcançou uma importância considerável quando os tecidos converteram-se em produto essencial de comércio.

A situação de domínio dos homens na sociedade, o patriarcado, surgiu com o Estado arcaico e demorou 2500 anos para se definir: em determinar as atitudes de gênero necessárias para sua sustentação. Os Estados arcaicos, disse Gerda Lerner, organizaram-se sobre a base da família patriarcal e aprenderam a submeter outros povos através da prática de submeter suas próprias mulheres, culminando com a institucionalização da escravidão, que começara pela escravização das mulheres dos povos vencidos. [...] A separação entre mulheres respeitáveis e não respeitáveis (a origem da distinção entre "senhoras" e "mulheres") esteve marcada, desde muito cedo, pelo uso do manto para cobrir o corpo das que eram consideradas respeitáveis.

Durante muito tempo, as mulheres tiveram um importante papel na esfera da religião, unido a seu poder de dar vida. Eram sacerdotisas, profetisas, videntes, adivinhadoras, curandeiras... Pouco a pouco, com o estabelecimento de monarquias fortes, as deusas foram sendo relegadas, convertendo-se em simples esposas do deus masculino. O monoteísmo hebreu afastaria, inclusive, estas deusas da fertilidade. O Gênesis atribui a capacidade criadora a um deus masculino, associando a sexualidade feminina que não esteja diretamente relacionada à reprodução dentro da família, às ideias de pecado e de mal.

No mundo clássico, a mulher era subordinada: na Grécia era mantida em uma posição inferior pela convicção de que sua "natureza" submetida aos impulsos físicos a incapacitaria para funções mais responsáveis do que as ligadas ao lar e à procriação. [...] Em Atenas, as mulheres não tinham direitos de cidadania, sendo consideradas, deste ponto de vista, em situação semelhante a dos escravos ou dos estrangeiros. Se na Grécia, praticava-se o abandono de meninas, no mundo romano, o pai estava autorizado a matá-las. 

O cristianismo, que recebera do judaísmo um legado de hostilidade para com as mulheres, não teve dificuldade para assumir os valores da sociedade romana. Só os grupos agnósticos e algumas "heresias" que praticavam o rigor moral valorizavam melhor as mulheres, libertando-as do papel "sujo" que lhes era atribuído na relação sexual.

A sociedade cristã "ortodoxa" retirava a mulher das funções religiosas [...]. A mulher desapareceria da história, agora, convertendo-se em pouco menos que invisível, limitada aos papéis de esposa virtuosa ou de virgem pura por um lado e de prostituta ou de bruxa, por outro.

Consolidava-se, assim, a diferença entre senhoras - damas ou freiras - e as mulheres, que tinham uma função essencial na sociedade agrária, tanto por seu trabalho como por sua condição de transmissora da cultura e que, nas cidades, podiam ser, também, prostitutas, atividade condenada, porém tolerada. [...]

Na Sevilha do século XVI, uma cidade em que muitos maridos haviam ido para as Índias e onde os bordéis situavam-se em casas de propriedade do clero, as mulheres eram muito importantes: havia muitas freiras e muitas prostitutas, as duas funções que o gênero atribui às que não podiam se converter em mães de família: uma, para as ricas, e outra, para as pobres. [...]

[...]

O século XIX seria um século de retrocesso para as senhoras e as mulheres. As primeiras aceitaram adaptar-se à função que lhes era destinada. Para distinguir-se das trabalhadoras deviam aparecer pálidas e delicadas, inúteis para qualquer atividade física, com pés pequenos e cintura estreitíssima, o que conseguiam graças ao espartilho: uma peça equipada com varetas flexíveis e colchetes metálicos [...]. 

As senhoras estavam destinadas a embelezar a vida de seus maridos e a parir filhos. [...]

Nem as mulheres das camadas populares ficaram livres das mudanças nesta época. O papel que haviam desempenhado na agricultura tradicional, tanto por seu trabalho no campo como pelas atividades de elaboração e venda de produtos, viu-se seriamente ameaçado pelas transformações da "revolução agrícola". [...] No trabalho assalariado, a posição das mulheres sempre foi inferior. Tradicionalmente recebiam um terço ou a metade do que os homens, pois entendia-se que o salário da mulher servia para cobrir apenas a sua subsistência enquanto o do homem devia manter, também, a sua família. Na fábrica, a divisão das tarefas proporcionou a recolocação do trabalho feminino numa categoria inferior [...].

[...]

A ocupação principal das mulheres no século XIX era o serviço doméstico [...]. No transcurso do século XIX, preferiram a segurança e a liberdade da fábrica, produzindo-se assim, a crise do serviço doméstico que favoreceu a mecanização das atividades do lar que foram delegadas, agora, à "senhora", com a possível ajuda ocasional de uma mulher que trabalhava por hora.

A vida das mulheres das camadas populares era, originalmente, muito menos regulada pelas convenções do que a das senhoras. [...] A homogeneização da sociedade burguesa exigia, entretanto, eliminar estas exceções e impor uma função subordinada, vinculada ao serviço do marido, à realização das tarefas do lar e à educação dos filhos. [...]

Desfile de "sufraggettes".
Nova Iorque, 6 de maio de 1912

O século XX assistiu a mudanças importantes na condição feminina nos países desenvolvidos. Nos anos posteriores à Primeira Guerra Mundial, as mulheres obtiveram o voto em alguns países e reivindicavam a imagem de uma "nova mulher", liberada do papel que lhes havia sido atribuído e auto-suficiente [...]. Na segunda metade do século, o feminismo ganhou destaque e a mulher ocupou novos espaços sociais, com uma participação maior em todas as profissões e não somente naquelas que eram consideradas como próprias de seu sexo. Além deste reconhecimento público de seus direitos e das medidas de "ação positiva" [...] continuaram, sem dúvida, existindo muitos elementos de desigualdade, visíveis em alguns casos, como nas diferenças salariais por um mesmo trabalho [...].

Sem esquecer que, nos países subdesenvolvidos, permanecem vigorando o infanticídio feminino, a distribuição desigual de alimentos e a assistência de saúde prioritária para com os meninos, fatos que levaram Amartya Sen a calcular que, na população mundial, "faltam cem milhões de mulheres" vítimas de uma discriminação que tem precipitado sua morte.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 203-212.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

A trilogia das catástrofes medievais: a fome, a peste e a guerra

"O triunfo da morte",  Pieter Bruegel


Mesmo já identificando males de origem para a crise dos séculos XIV e XV, é importante caracterizar os efeitos que causaram a fome, a peste e a guerra na estrutura feudal. [...] estes momentos críticos nos possibilitam perceber as mentalidades e atitudes de uma sociedade em transformação.

* A fome. A fome sempre foi um problema de grandes proporções para o homem medieval [...]. 

A hagiografia da Idade Média está permeada de casos em que uma aldeia faminta vê como verdadeiro santo aquele que consegue provê-la de alimentos em um momento de penúria. Morrer de fome, portanto, não era incomum para o homem medieval.

É bastante expressiva também a comprovação de que os quatro mitos mais populares da Idade Média (o Graal, Avalon, o Reino de Preste João e o País da Cocanha) tivessem conotações ligadas não só a funções alimentares, mas a temas referentes à abundância e à fartura.

Apesar dos incrementos dos séculos XI-XIII, a fome não desapareceu por completo do Ocidente cristão, continuando a rondar principalmente as regiões mais isoladas dos circuitos de abastecimento. O início do século XIV [...] foi marcado por um ciclo de chuvas torrenciais generalizadas, o que acarretou a perda de colheitas em vários pontos da Europa.

[...]

À escassez agrícola seguiam-se frequentemente convulsão social, agudização de tensões políticas já existentes, mas principalmente a disseminação em larga escala da fome e de inúmeras moléstias ligadas a carências alimentares.

O impacto econômico da Grande Fome foi desastroso, já que os recursos existentes foram canalizados principalmente para a aquisição de alimentos, ocasionando a retração do comércio e do artesanato. [...]

Jeffrey Richards assim sintetizou os efeitos da Grande Fome:

"A fome e doenças graves que se seguiram (depois de 1377) reduziram as pessoas a comerem cães e gatos, folhas e raízes, e, em alguns lugares, ao canibalismo. À medida que o povo foi levado a atitudes desesperadas para obter comida, houve uma onda de crimes. Em seguida, uma desastrosa epizzotia dizimou boa parte do rebanho." (RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. p. 26.)

* A peste. As doenças povoaram o Ocidente medieval em função das próprias condições alimentares e dos limitados recursos médicos. As cidades, mais sobrecarregadas pelo crescimento demográfico, concentravam enfermos e, consequentemente, contribuíam para difundir enfermidades. A tuberculose foi a mais mortífera de todas as doenças endêmicas da Idade Média. Entretanto, foram as doenças de pele - notadamente a lepra - que mais marcariam o imaginário medieval, pelo menos até o século XIV. Os leprosos, párias por excelência do mundo medieval, promoviam uma atitude ambígua da cristandade em relação às doenças - de repulsa e, ao mesmo tempo, de compromisso caridoso. A peste negra, por sua vez, roubaria a cena, transformando-se na doença mais marcante do final da Idade Média.


A morte negra. Miniatura da Bíblia Toggenburg, 1411. Artista desconhecido

Vinda da Criméia em um navio genovês, a peste negra varreu a Europa em quatro anos (1347-1350), atingindo uma população vulnerável e uma estrutura econômica em crise. Os incidentes que cercam a contaminação inicial não deixam de ser interessantes:


"Todos os testemunhos concordam em situar a origem da peste na Ásia Central, onde existia em estado endêmico. O grande viajante Ibn Batuta, que visitou a Índia Meridional pouco depois de 1342, aí a assinala. Em 1347, os mongóis, que assediavam o entreposto genovês de Caffa, no Mar Negro, foram eles os próprios contaminados e, por um requinte de crueldade, catapultaram para dentro da cidade vários cadáveres. Um navio, partido de Caffa para a Itália, à passagem por Constantinopla, semeou aí a peste." (WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? Lisboa: Edições 70, 1986. p. 25.)


Sabemos que não só a Europa foi atingida pela epidemia. Enquanto a peste alastrava-se pelo continente europeu [...] também causava estragos em Alexandria, Síria e Palestina, chegando violentamente até a China, em 1351.


[...]


Os locais de maior concentração humana foram os que mais sofreram. As cidades, além de insalubres [...] eram zonas de fácil circulação, o que contribuiu para agravar as possibilidades de propagação do mal. [...]


[...]


* A guerra. Afetadas pela crise, as classes dominantes feudais recorreriam a um expediente clássico dos momentos de maior instabilidade: a guerra. Irromperam conflitos em diversos pontos da Europa (na Península Ibérica, no norte da Europa, entre as cidades italianas), sendo o mais importante de todos a Guerra dos Cem Anos, durante a qual se defrontaram França e Inglaterra entre 1337-1453. [...]


Nas guerras do período, muitas vezes, a existência de vínculos feudais e/ou familiares contribuía para as soluções armadas entre as monarquias nascentes. [...]


A Guerra dos Cem Anos, entretanto, não se tratava de um combate medieval clássico entre senhores em litígio mas sim de um conflito com algumas cores modernas. Entre elas podemos apontar a própria durabilidade, as novas tendências militares, a utilização de bloqueios econômicos, a noção crescente de um sentimento patriótico ligado à sensação de se estar lutando por um reino e não mais por um senhor. Encontramos alguns autores que chegam a referir-se ao episódio como primeira grande guerra nacionalista.


"É evidente que o sentimento 'nacional' dos séculos XIV e XV é muito diferente dos nossos sentimentos nacionais. Ele se forma através de um nome comum, de um príncipe comum, de interesses comuns, de uma língua comum, da consciência de uma origem comum, do orgulho de uma história comum e de uma religião comum." (GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV. São Paulo: Pioneira, USP, 1981. p. 110.)


A centralização política foi acelerada em ambos os países. [...] De forma geral, o saldo para a nobreza foi negativo. A monarquia, fortalecida desde o século XIII através de alianças com a burguesia, e o revigoramento do Direito Romano [...], foram preenchendo o vácuo proporcionado pela aristocracia arruinada ou à beira da ruína. [...]


* Os desdobramentos econômicos e sociais da crise. Os efeitos econômicos da Crise dos Séculos XIV e XV foram extremamente drásticos e abrangentes [...].


A perda de boa parte dos mercados produtores e consumidores fez com que o comércio diminuísse sensivelmente de intensidade. A insegurança provocada pelas guerras atingiu em cheio a possibilidade de deslocamento dos mercadores, contribuindo para a retração comercial.


As relações servis sofreram alterações em praticamente todas as áreas da Europa Ocidental. A tendência geral foi a expressiva renúncia dos senhorios às antigas obrigações camponesas, por pagamentos em dinheiro. [...] Quase todas as aldeias e áreas de cultivo sofreram enormemente com a constante passagem de combatentes. [...] Bois, cavalos, moinhos e plantações eram frequentemente alvos de guerreiros de um exército ou mesmo de bandos armados. Quanto às cidades, estas sempre se encontravam mais guarnecidas, tanto por muralhas quanto pelas milícias burguesas.


Além da destruição, guerra e peste provocavam migrações expressivas e muitas vezes as colheitas de determinadas regiões não chegavam sequer a ser devidamente aproveitadas. [...]


Alguns setores da aristocracia procuravam fugir da crise bloqueando o aumento dos salários através da promulgação de uma legislação especificamente elaborada com este propósito. Por outro lado, os impostos pagos ao reino contribuíram para agravar a situação dos trabalhadores. Foi este o pano de fundo das diversas rebeliões camponesas do século XIV. Dentre elas, podemos destacar a Jacquerie, ocorrida na França em 1358, e a Revolta dos Camponeses, em 1381, na Inglaterra, onde foram difundidos protestos que questionavam da ordem vigente [...]. Mesmo as áreas urbanas foram palco de revoltas parecidas, como o episódio dos Ciompi, que irrompeu em 1378 em Florença.


[...]


O desmoronamento do mundo tradicional foi sentido por toda a sociedade feudal. Além do impacto sobre os trabalhadores, vítimas em potencial da crise, muitas casas nobiliárquicas foram atingidas e desapareceram no decurso da Baixa Idade Média. As rendas senhoriais cada vez menores e as desvalorizações monetárias crescentes contribuíram para a liquidação das pequenas fortunas feudais. [...]


[...]


No decurso da crise, em determinadas regiões, a reação à desastrosa conjuntura passou pelo recrudescimento de tendências excludentes já arraigadas na sociedade medieval, culminando com as perseguições promovidas aos leprosos, judeus, prestamistas e às mulheres solitárias. Em alguns momentos, explosões de violência contra estes marginalizados irromperam na sociedade medieval com o incentivo das próprias autoridades.


O inquisidor Bernardo Gui afirmava:


"Em 1321, foi detectado e desbaratado um plano maligno dos leprosos contra as pessoas saudáveis do reino da França. De fato, conspirando contra a segurança do povo, estas pessoas, insalubres do corpo e insanas da mente, haviam planejado infectar as águas dos rios, fontes e poços em toda a parte, colocando veneno e material infectado nelas, e misturando [na água] pós preparados, de modo que os homens saudáveis que delas bebessem, ou usassem as águas desta forma infectadas, tornar-se-iam leprosos ou morreriam, ou quase morreriam, e assim o número de leprosos aumentaria e o de saudáveis diminuiria. E, o que parece incrível dizer, eles aspiravam a se tornarem senhores de cidades e castelos, e já haviam dividido entre eles os títulos e locais, e dado a si mesmos os mesmos nomes de príncipes e condes ou barões em várias terras, se aquilo que haviam planejado tivesse se concretizado." 


AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 42-50.

Da toga "praetexta" à toga viril: um "rito de passagem" para a cidadania em Roma

Augusto

"Numa lista de festas que, em Cumas, na Campânia, deviam ser celebrados todo ano em honra de Augusto e de alguns membros de sua família, o dia 18 de outubro tinha o registro: 'Nesse dia, César (Augusto) recebeu a toga viril. Sejam feitas súplicas à Esperança e à Juventude'.

O fato de que esse dia também tivesse de ser celebrado anualmente, junto com as demais grandes datas que haviam marcado a vida do príncipe (por exemplo, o dia do nascimento, o primeiro consulado, a nomeação para pontífice máximo, as batalhas por ele vencidas), indica com extrema clareza o valor que os romanos atribuíam a semelhante rito: verdadeiro 'rito de passagem' que consistia no abandono da toga praetexta (franjada de púrpura) e na envergadura da toga viril. Embora pouco saibamos a respeito dos 'ritos de passagem' arcaicos que tinham lugar na gruta Lupercal sob o signo do deus Fauno, sob a proteção conjunta de Ianus Curiatius e Iuno Sororia, conhecemos relativamente bem essa cerimônia de mudança de hábito que introduzia de pleno direito o jovem romano enquanto cidadão livre - claro que sempre sob o vínculo do patria potestas - no interior de sua cidade.

Em geral, entre os quinze e os dezesseis anos, para o rapaz a cerimônia acontecia em primeiro lugar em casa, e não devemos nos admirar, depois do que se disse sobre o 'poder dos pais' romanos, de que fosse presidida pelo pai de família.

Na noite precedente, o jovem, como sinal de bom augúrio (omnis causa), vestira uma túnica particular, com a qual dormira (a tunica recta), assim como faziam as virgines na noite anterior às núpcias. Portanto, na manhã seguinte, o rapaz abandonava os 'emblemas da infância' (insígnia pueritiae). A bulla, ornamento que levava no pescoço com fins protetores, era dedicada aos Lares, divindades que protegiam o território da casa e consequentemente a família que a habitava. Além disso, junto com a bulla, ele abandonava a toga praetexta e vestia a toga viril, a cândida toga 'livre' que em Roma era a roupa por excelência dos cidadãos: a mesma vestimenta, observe-se bem, da qual se privavam, uma vez por ano, os jovens lupercos quando, durante as Lupercálias, corriam 'nus' ao redor do Palatino.

A parte privada da cerimônia era complementada por outra mais propriamente 'pública', na qual acompanhava-se o jovem até o Fórum e o Capitólio. Tratava-se de cortejos compostos por amigos e parentes que, dependendo do nível social, da riqueza e das conexões gentílicas da família, podiam assumir feições muito faustosas. Sobretudo, eram cortejos que, segundo seu fausto e ostentação de riqueza e poder, podiam até ser comparados aos triunfos."

FRASCHETTI, Augusto. O mundo romano. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). História dos jovens: da Antiguidade à Era Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 72-74.

Ritos de passagem e cidadania na Grécia Antiga

Jovem grego

"De acordo com numerosos testemunhos escritos, na Grécia Antiga, os rapazes passavam por um período longo de iniciação, através do qual se preparavam para o seu futuro papel de cidadãos e pais de família, incorporando-se definitivamente ao grupo social. Isso implicava casar-se e participar ativamente da falange dos infantes no exército ou na marinha. Privado de uma dessas coisas, o jovem permaneceria à margem da comunidade e do Estado, não sendo, portanto, cidadão em sua plenitude.

Dois tipos de iniciação persistiam nas épocas clássica e helenística em Atenas. A primeira, de origem mais arcaica, era a apresentação do adolescente à fratria paterna, e a segunda, provavelmente estabelecida na época clássica, era o serviço militar, chamado efebia. Ambas tinham igual importância (...) e era indispensável que o jovem passasse pelas duas.

A apresentação do jovem à fratria paterna ocorria em torno dos 16 anos, durante as festas das fratrias locais, que se davam a cada ano no mês de Pianepsion (outubro). (...)

O ritual de iniciação do jovem consistia, em primeiro lugar, em um sacrifício oferecido pelo pai aos deuses da fratria: Zeus e Atena. Esse sacrifício era denominado coureion, e o sacerdote que o oficiava recebia como pagamento uma parte do animal sacrificado e uma quantia em dinheiro do pai do jovem. (...)

A etimologia da palavra coureion, que vem do verbo keiro - cortar os cabelos -, sugere que os jovens cortavam ritualmente a cabeleira e a ofertavam aos deuses protetores da fratria (...).

O coureion marcava a entrada do jovem em um período de transição, depois do qual ele estaria apto a desempenhar suas funções sociais. Essa transição tinha sequência com a efebia. (...)

Quem explica o funcionamento da efebia é Aristóteles (filósofo grego do século IV a.C.), no capítulo 42 da Constituição de Atenas (...):

'Participam da cidadania os nascidos de pai e mãe cidadãos, sendo inscritos entre os démotas aos 18 anos (...). Após o exame por que passam os efebos, seus pais se reúnem por tribos e, sob juramento, elegem, dentre os membros da tribo com mais de 40 anos., os três que eles achem serem os melhores e os mais indicados para se encarregarem dos efebos. (...) Também são eleitos por mãos levantadas dois treinadores mais os instrutores que os ensinam a lutar como hoplitas, a atirar com o arco, a lançar o dardo e a disparar a catapulta. (...) Prestam serviço (militar) durante dois anos, vestindo clâmide, e transcorrido esse período, reúnem-se aos demais cidadãos'."

FLORENZANO, Maria Beatriz Borda. Nascer, viver e morrer na Grécia Antiga. São Paulo: Atual, 1996. p. 29-32.

terça-feira, 28 de junho de 2011

"Perguntas de um operário letrado" (Bertolt Brecht)

"Operários", Tarsila do Amaral

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis.
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu?
Em que casas da Lima dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China
Para onde foram os seus pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A tão cantada Bizâncio só tinha palácios. Para os seus habitantes?
Até a legendária Atlântida na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou, Filipe de Espanha chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a Guerra dos Sete Anos. Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias.
Tantas perguntas.

História, memória e sociedade

Militância anarquista reivindicando mais liberdade para a humanidade

As sociedades humanas sempre se preocuparam em transmitir sua memória para as gerações futuras. A memória compõe-se dos testemunhos preservados do passado de uma sociedade, que permitem a reconstituição da sua história.

A "Plaza de las tres culturas" ou "Plaza de Tlatelolco" está situada no centro histórico da Cidade do México, México. Tem esta designação por se encontrar delimitada por edifícios de três épocas históricas do México: cultura pré-colombiana (pirâmides e ruínas do Templo de Tlatelolco), cultura espanhola (Catedral Católica de Santiago) e cultura do México moderno (Torre da Secretaria de Relações Exteriores).


Em algumas sociedades, os testemunhos estão guardados nos mitos e nas lendas, que são passados oralmente de geração para geração. Outras sociedades deixaram seus testemunhos em obras de literatura, em construções, cartas, objetos etc. Mas, em geral, os registros que chegaram até nós representam apenas uma parte da vida dessas sociedades.

Um exemplo disso é a memória deixada pela chamada Idade Média. Quase todos os registros conhecidos sobre a época medieval – cartas, gravuras, construções – informam-nos muito mais sobre a vida dos cavaleiros, reis e sacerdotes poderosos do que sobre o cotidiano da população pobre. O que sabemos, por exemplo, sobre o dia a dia dos camponeses, em geral analfabetos, baseia-se principalmente em registros produzidos pelos clérigos.


Por essa razão, os historiadores que tentam recuperar a memória dos camponeses medievais têm a difícil tarefa de investigar fontes históricas variadas, como restos de construções, ferramentas de trabalho e lendas transmitidas de geração para geração, além dos testemunhos produzidos pelas pessoas poderosas daquela época.

Investigar e elaborar uma reflexão crítica sobre os testemunhos do passado: esse é o trabalho do historiador. Portanto, a história se diferencia da memória por ser uma reflexão sobre os registros preservados do passado.

Além de valorizar apenas os registros escritos, a história, até o início do século XX, estava centrada na vida das grandes personagens do passado, como reis, generais e heróis. Os livros de história limitavam-se a fazer uma narrativa recheada de datas, fatos e nomes considerados importantes na formação de um povo e ou de um país. D. Pedro I e a proclamação da independência; Júlio César e a conquista da Gália; Duque de Caxias e as batalhas da Guerra do Paraguai: esses são alguns exemplos de nomes e fatos que predominavam nos escritos dos historiadores.

Aos poucos, os estudos de história passaram a valorizar a ação dos indígenas, dos negros, dos jovens, das crianças, dos homossexuais, dos pobres e de outros sujeitos sociais, que até então era desconhecida ou desprezada pelos historiadores. Ficamos conhecendo, então, outras versões da história, escritas e contadas do ponto de vista de outros grupos.


"A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz". 
(Ferreira Gullar)


Um exemplo é o da história das mulheres. Milhões de mulheres viveram no passado, mas poucas apareceram nos relatos dos historiadores. As mulheres tinham sido excluídas da história. Hoje, historiadores trabalham para recolocar a mulher no palco da história, destacando sua contribuição para as diversas culturas humanas.



BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho. História - das cavernas ao terceiro milênio. São Paulo: Moderna, 2007. 

Estágios culturais da Pré-história

Dança de Cogul: várias mulheres dançam ao redor de um homem nu. Pintura rupestre na Província de Lérida, Espanha

Estágios culturais



Idade da Pedra
Lascada
(Paleolítico)
Idade da Pedra
Polida
(Neolítico)
 Idade dos Metais
(Cobre, bronze e ferro)
A técnica de trabalho
O homem utiliza a pedra lascando-a. Utiliza ainda, para confecção de seus objetos: ossos, chifres e presas de grandes animais. A principal ferramenta e arma básica é o “machado de mão”. A partir dele o homem começa a fabricar outros instrumentos: raspadores, cortadores, furadores. No final do período surgem a azaguaia, o arco, a flecha e o arpão.
O homem aperfeiçoou seus instrumentos de pedra mediante o polimento. Posteriormente surgem os primeiros objetos de cerâmica. Ainda nessa etapa surge a tecelagem de lã de origem animal e de fibras vegetais, como o linho. No final do período surgem os primeiros monumentos (sepulturas) de pedra (menires, dólmens).

O homem utiliza o cobre como é encontrado na natureza a partir do fim do neolítico. O que caracteriza a Idade dos Metais é o aparecimento da técnica de fundição que leva progressivamente à obtenção de metais mais resistentes. A fabricação de objetos mais variados e mais resistentes acelera de maneira notável o progresso humano.
Formas de vida
O homem vive em bandos nômades que se locomovem constantemente em busca da caça. O mais forte assume a liderança do grupo. A habitação é a natural – as copas das árvores ou as cavernas. A alimentação resulta da caça, pesca e coleta – não há vestígios de animais domésticos. O homem simplesmente apanha os víveres necessários à sua sobrevivência. Ainda nessa etapa o homem começa a confeccionar suas roupas de peles de animais. A arte manifesta-se nos desenhos realizados nas paredes das cavernas e seu tema é a fauna. Destaca-se ainda a confecção de estatuetas femininas. A emissão se sons goturais foi cedendo lugar à linguagem articulada, à medida que o homem foi associando sons a ações e objetos.
O homem vive como seminômade começando a fixar-se em aldeamentos. Surge aos poucos a vida em comunidade. A liderança passa para os mais velhos, considerados os mais experientes. Abandonando progressivamente as cavernas, o homem começa a construir habitações lacustres ou choças, quando encontrava um local de fácil defesa. Além de caçar e pescar, o homem passa a domesticar alguns animais e praticar incipiente lavoura, começando a produzir os víveres necessários à sua sobrevivência. A vida seminômade vai sendo abandonada pela vida sedentária.

O homem torna-se sedentário, fixando-se definitivamente à terra. Surge a cidade-Estado sob a autoridade do Rei-Sacerdote. As construções tornam-se mais complexas e surgem imponentes edificações com vários compartimentos e andares. A agricultura apresenta grande desenvolvimento com as obras de irrigação que garantem a fertilidade permanente da terra. Os cereais tornam-se a base da alimentação: trigo, arroz, cevada. A tecelagem aperfeiçoa-se e permite a fabricação de tecidos variados e de grande finura.
Manifestações religiosas
O homem primitivo não possui propriamente uma religião. Pratica rituais de magia destinados a obter abundância de caça, como se vê pelas características da arte das cavernas e provavelmente o culto da fertilidade, suposição derivada dos achados numerosos de estatuetas femininas. Os ritos funerários comprovam-se pelo cuidado com a sepultura e o corpo do morto.
O homem do Neolítico tem na religião uma de suas mais importantes instituições. Admite a existência de proteção superior para o grupo, muitas vezes através de um animal que se torna o símbolo do clã. O culto dos mortos se desenvolve, surgem sepulturas de pedra. A religião é ligada à crença no sobrenatural e tem fim utilitário imediato. As cerimônias do culto têm por objetivo aumentar a fertilidade da terra, fazer chover, etc.

O homem modifica progressivamente suas crenças religiosas. A religião deixa de ser apenas um meio de solicitar a ajuda para problemas materiais, adquirindo um caráter mais espiritual, e o homem procura através dela o aperfeiçoamento de si próprio. Da religião derivam normas de comportamento que influem poderosamente na sociedade. Além disso ela se torna um dos elementos mais importantes de aglutinação populacional, base para o aparecimento do Estado.
Progressos notáveis
O homem aperfeiçoa gradativamente os instrumentos que constituem as bases do progresso material humano, desenvolve a linguagem falada, instrumento de transmissão das experiências adquiridas, inicia a escrita pictográfica.
O homem produz artificialmente o fogo, domestica os animais, inicia a prática da lavoura, inventa a roda de oleiro, a pedra de moinho para moer os grãos, inicia a construção de barcos, esboça a escrita silábica e a religião torna-se um elo de ligação do grupo.

O homem aperfeiçoa a escrita, obtém o bronze através da liga do cobre e estanho, funde o ferro, inventa o moinho giratório manual para moer os grãos, a moeda metálica e os veículos de roda. As populações se aglutinam com base na religião, língua e costumes comuns, verificando-se o aperfeiçoamento da vida em comunidade.
Conclusões
As mudanças climáticas verificadas com o deslocamento das geleiras deram origem aos climas atuais da terra. Na Ásia e África forma-se uma extensa faixa desértica forçando as populações a se deslocarem à procura de melhores condições de vida. Na Europa as geleiras deslocam-se para o norte, tornando quase impossível a sobrevivência do homem do Paleolítico que vivia da rena e do mamute. A rena emigra para as regiões geladas do norte e o mamute começa a extinguir-se. Parte da população acompanha a rena, enquanto alguns tentam sobreviver no novo clima.
A cultura neolítica surgida no sudoeste da Ásia e norte da África espalha-se pelo mundo. A construção de barcos iniciada no neolítico permite as migrações para diversas partes do globo à procura de melhores condições de vida. As migrações realizadas com precários meios de transporte promovem um deslocamento muito pouco controlado pelo homem, levando-o a fixar-se nas terras favoráveis que encontra. Como exemplificação podemos citar a penetração na América, pelo norte, através do Estreito de Bering e das Ilhas Aleutas, de povoadores asiáticos do Neolítico.
A denominação Idade dos Metais é utilizada exclusivamente em decorrência da maior facilidade em acompanhar o progresso do homem através da técnica de trabalho. A utilização mais intensiva do cobre e o domínio da técnica de fundição são acompanhadas por outras modificações fundamentais na vida do homem – a vida sedentária baseada na agricultura, o desenvolvimento da religião, o surgimento da cidade-Estado e o aperfeiçoamento da escrita. É na Idade dos Metais que têm início os tempos históricos quando se torna possível através da escrita a reconstrução da vida do homem de maneira mais clara e sistemática. Em decorrência do progresso geral, material e espiritual, surgem as primeiras civilizações conhecidas.



RESENDE, Maria Efigênia Lage de e MORAES, Ana Maria de. História Fundamental da Civilização. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1973. p. 22-23.

A mulher na Idade Média

Pintura mostrando um casal na intimidade durante o Período Medieval


Texto 1


"Na opinião geral dos homens da Idade Média, as mulheres eram naturalmente “inferiores”. Um nobre do século XIII (...) ao indicar os cuidados necessários na educação de filhas jovens, revela-nos parte desse preconceito. Para ele a primeira virtude a ser ensinada às meninas deveria ser a obediência.

(...) Uma moça deveria, isso sim, saber fiar e bordar. Se fosse pobre, precisaria saber para sobreviver e, se fosse rica, ainda assim deveria conhecer tais atividades para administrar o serviço de seus empregados domésticos. (...) Todas, de um modo ou de outro, encontravam-se aprisionadas aos laços familiares, sendo esposas, mães, filhas ou viúvas". MACEDO, José Rivair. Viver nas cidades medievais. São Paulo: Moderna, 1999. p. 54.

Texto 2

"...nos tempos feudais (...) atribuía-se à coroação da rainha tanto valor quanto à do rei (...). Essa rápida visão do papel das rainhas dá uma ideia bem exata do que se passou com as mulheres. (...)

Somente no século XVII [quando a Idade Média já tinha acabado] a mulher toma obrigatoriamente o nome do marido. (...)

Certas abadessas [chefe das religiosas de um convento] eram senhoras feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros senhores. (...) Administravam, muitas vezes, vastos territórios com cidades, paróquias. (...) As religiosas dessa época (...) são na maioria mulheres extremamente instruídas. (...)

Os registros de impostos (...) de Paris, no fim do século XIII, mostram uma multidão de mulheres exercendo funções de professora, médica, farmacêutica, tintureira, copista, miniaturista, encardenadora etc.

Não é senão no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento, datado de 1593, que a mulher será afastada explicitamente de toda função no Estado. [Aos poucos, é reforçada a ideia de] confinar a mulher no que foi sempre seu domínio privilegiado: os cuidados domésticos e os filhos." PERNOUD, Régine. Idade Média. O que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir, 1994. p. 101-118.

Texto 3

"A sociedade feudal era um mundo predominantemente masculino. As mulheres eram consideradas física, moral e intelectualmente inferiores aos homens e estavam sujeitas à autoridade masculina. Os pais promoviam os casamentos das filhas. As moças de famílias aristocráticas casavam-se geralmente aos 16 anos, ou ainda mais jovens, com homens muito mais velhos; as jovens aristocratas que não se casavam tinham, com frequência, de entrar para um convento. A mulher do senhor estava a mercê do marido; se o aborrecesse, podia ser espancada. Mas a senhora do castelo desempenhava funções importantes: distribuía tarefas aos criados; preparava remédios; conservava alimentos; ensinava às jovens costurar, tecer e fiar; e, apesar de sua posição subordinada, era responsável pelo castelo na ausência do marido. Embora a Igreja ensinasse que os homens e mulheres eram preciosos aos olhos de Deus e que o casamento era um rito sagrado, alguns religiosos viam as mulheres como agentes do demônio, sedutoras malignas que, como a Eva bíblica, levavam os homens ao pecado. PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma histórica concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 161-162.

Documento: Pecados de mulher

[uma virgem olhando-se no espelho] ... ri para ver se o riso a favorece..., semicerra os olhos para ver se ficará melhor assim ou com os olhos bem abertos, entreabre o vestido para mostrar a sua pele, afrouxa o decote para mostrar os seios. O corpo está ainda em casa, mas, perante Deus, a alma já está em um prostíbulo, adornada como uma meretriz que se prepara para enganar a alma dos homens. Jacques de Vitry (c. 1180-1240), Ad virgines, Sermo I. Citado por CASAGRANDE, Carla. La mujer custodiada". In: DUBY, Georges & PERROT, Michelle, dir. Historia de las mujeres: La Edad Media - La mujer en la familia y en la sociedad. Madrid: Taurus Ediciones, 1992. p. 118.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A carta do chefe Seattle


Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?

Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.

Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem — todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós.


Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.

Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção da terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.

Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda.


Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro — o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu a nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.

Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.

Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecer vivos.


O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.

Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra.  

Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.

O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.


Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos — e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Vocês podem pensar que o possuem, como desejam possuir nossa terra; mas não é possível. Ele é o Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.

Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam.

Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência. 


ADAS, Melhem. Geografia da América. São Paulo: Moderna. 1982. 

Globalização e cultura


É possível dizer que o século XXI já se iniciou trazendo consigo um conjunto de mudanças vitais para a vida dos homens. Com isso, não quero dizer que estamos diante de uma ‘nova era’, de uma sociedade ‘pós-moderna’ (...) como se o passado fosse (...) algo para ser esquecido diante da força inovadora do presente. As tradições não desaparecem assim tão facilmente, ao contrário, elas se reatualizam, são reinterpretadas. Mas é preciso entender que as transformações atuais são importantes, e entre elas, gostaria de sublinhar a globalização das sociedades e a mundialização da cultura.

(...) O espaço já não pode mais ser pensado como equivalente ao território que nos circunda. Na verdade, até então falávamos de cultura, desde que a vinculássemos a um território determinado. Quando dizemos ‘cultura nacional’, ‘cultura ocidental’, ‘cultura árabe’, partimos de alguns pressupostos. Nação, Ocidente e árabe são qualificativos que amarram os costumes e os modos de vida a fronteiras precisas. Os objetos, as coisas, as referências culturais encontram-se assim enraizados, eles pertencem a um ‘lugar’. Vivemos hoje um momento de ‘desterritorialização’, no qual o espaço perde a sua especificidade física. Evidentemente, isso é possível devido às conquistas tecnológicas. Telefone, fax, televisão, computadores, aviões etc. são tecnologias que encurtam as distâncias, transformando a própria noção de lugar.

Com isso, os objetos perdem suas idiossincrasias. Qual a origem de carro Mazda, quando sabemos que o protótipo foi desenhado na Inglaterra, a montagem, feita nos Estados Unidos e no México, usando componentes eletrônicos inventados em Nova Jersey, mas fabricados no Japão? Ou de um filme como A casa dos espíritos, adaptação de um romance latino-americano, cujo diretor é nórdico, os atores, americanos e espanhóis, e cujas cenas, rodadas em Portugal, nos dão a ilusão de nos encontrarmos no Chile? Este processo de desterritorialização pode ser compreendido quando nos debruçamos sobre o mundo que nos cerca. McDonald’s, Coca-cola, cosméticos Revlon, calças jeans, televisores, CDs são a sua expressão. Nos pontos mais distantes, São Paulo, Paris, Tóquio, nos deparamos com nomes conhecidos: Sony, Ford, Renault, Vokswagen.

Qual o significado disso? Que pertencemos a uma megassociedade na qual os objetos são partilhados em escala planetária. Eles constituem nossa paisagem, nosso meio ambiente. Sua origem importa pouco, eles envolvem ‘todos’, estão ‘em todos os lugares’.

Por isso é possível dizer que nos encontramos diante de uma cultura internacional-popular que já não mais se enraíza no solo nacional. Os personagens, imagens, situações veiculadas pela publicidade, histórias em quadrinhos, cinema, televisão, constituem o substrato de sua memória. Nela se inscrevem as lembranças de todos. As estrelas de cinema, Greta Garbo, Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, cultuadas nas cinematecas, nas televisões a cabo, pôsteres e anúncios, fazem parte de um imaginário coletivo mundial. Nesse sentido, pode-se falar de uma memória coletiva cibernética, banco de dados das lembranças desterritorializadas dos homens. Marcas de cigarros, carros velozes, cantores de rock, produtos de supermercados, cenas do passado ou de science-fiction são elementos heteróclitos, estocados para ser utilizados a qualquer momento. (...) Um exemplo: a juventude, T-shirt, rock-and-roll, guitarra elétrica, ídolos da música pop são elementos partilhados planetariamente por uma determinada faixa etária e, é claro, membros de determinadas classes sociais. Da totalidade dos objetos-souvenirs estocados na memória coletiva internacional-popular, os jovens escolhem apenas alguns para se comunicar. Eles podem assim demarcar sua juvenildade em relação aos outros grupos sociais.

Na sociedade global, a distância não é mais um obstáculo para a comunicação ou produção. (...) A diluição das fronteiras não significa que o mundo tenha se tornado melhor (...). No contexto de uma sociedade que se planetariza, novos tipos de comunicação são possíveis, mas também emergem novas formas de poder.

Existem agentes privilegiados que atuam na formação dessa cultura mundializada. A mídia e as transnacionais são essas forças mais visíveis. Pelo fato de serem transnacionais elas possuem uma amplitude que as ‘velhas’ instituições, como a escola, não alcançavam. O jogo do poder se transforma, mas não se reverte para a realização do indivíduo. Este, um ser solitário desde a modernidade do século XIX, a qualquer preço busca se orientar num mundo contraditório, desterritorializado. Sua liberdade é permanentemente posta em causa, não apenas pelo mercado que se globalizou. Os objetos, as mercadorias, a racionalização da sociedade o constrangem mundialmente, em todos os lugares. ORTIZ, Renato. “Fim de territórios cria novos poderes”. Jornal O Estado de S. Paulo, 30/10/1994, caderno Especial Domingo, p. D-13.