"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de janeiro de 2016

Tucídides, a produção do conhecimento histórico

Busto do historiador Tucídides, século IV a.C. Artista desconhecido

[...] Tucídides foi contemporâneo de Heródoto, mas, como era mais novo, chegou a viver o período de decadência da pólis grega. Seu livro trata exatamente do conflito que marcou o início dessa decadência: a Guerra do Peloponeso. Nela se defrontaram as duas mais importantes cidades gregas: Esparta e Atenas.

A preocupação do cidadão ateniense Tucídides, que participou ativamente desse conflito como chefe militar, foi explicar a derrota de Atenas: como pôde perder a guerra, se tinha tudo para sair vitoriosa?

A superioridade de Atenas podia ser notada em todos os sentidos. Sua frota era a mais poderosa da Grécia, sua economia poderia alimentar a luta por anos seguidos, seus líderes políticos eram grandes estrategistas.

No entanto, iniciada a guerra, em 431 a.C., Atenas passou a sofrer sucessivas derrotas. Um ano depois a cidade foi ocupada pelos espartanos. Perdeu ainda o seu maior líder político e militar, Péricles. Os fatos eram muito diferentes do que Tucídides esperava.

Em 424 a.C., depois de liderar uma batalha que Atenas perdeu, Tucídides foi exilado. No exílio, enquanto a sua cidade era novamente invadida por Esparta e seus aliados, ele terminou de escrever a História da Guerra do Peloponeso. Para compreender o desfecho da guerra, procurou reconstruí-la desde as suas causas.

Segundo minhas pesquisas, foram assim os tempos passados, embora seja difícil dar crédito a todos os testemunhos nesta matéria. Os homens, na verdade, aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, negligenciando pô-los à prova, ainda que tais eventos se relacionem com a sua própria terra [...] A tal ponto chega a aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade, e tão grande é a predisposição para valer-se apenas do que está ao alcance da mão! [...]

Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. I, 20-22. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987. p. 27-8.

Tucídides não aceitava a ideia de que fatos isolados pudessem explicar aquela que, para ele, era a maior de todas as guerras. Então, a partir de uma investigação sistemática e rigorosa dos fatos, reconstituiu a história de Atenas desde a vitória grega nas guerras contra os persas, mais de quarenta anos antes. Com isso, chegou à conclusão de que a verdadeira causa da guerra tinha sido o crescimento do poder de Atenas desde aquela vitória.

Como ele explicou a derrota de Atenas, após concluir quais eram suas causas? Para Tucídides, a morte de Péricles deixou a cidade sem seu principal líder e abriu caminho para traições e desmandos. Se Atenas perdeu, quando tinha tudo para ganhar, é porque faltou uma liderança política à altura. A política interna de Atenas explica a derrota. Luta pelo poder, falta de unidade diante do inimigo comum, inveja dos medíocres em relação aos líderes mais capazes e decisões erradas ou precipitadas levaram Atenas à ruína.

Assim, Tucídides registra e explica os acontecimentos de acordo com um objetivo específico: dar conta da derrota de Atenas. Mas pretende também produzir um conhecimento que servirá para o futuro. Isso, em sua opinião, era possível porque os homens sempre agem da mesma forma em circunstâncias semelhantes. Quem entender as ações humanas que levaram à Guerra do Peloponeso e à derrota de Atenas estará preparado para entender outras guerras. Poderá, então, evitar a guerra ou a derrota.

Tucídides quis produzir um conhecimento útil à prática política.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 92-4 e 98.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Heródoto, uma nova maneira de registrar a memória

Fragmento de papiro do Livro VIII da obra "Histórias", de Heródoto

[...] Heródoto escreveu sua obra quando a escrita já era usada pelos gregos havia mais de dois séculos. Na sua época os gregos possuíam leis escritas, um comércio muito desenvolvido, com o uso de moeda, artesanato sofisticado e uma agricultura comercial baseada na produção de vinho e azeite.

A organização política da cidade-estado conhecida por Heródoto já tinha passado por uma longa evolução e chegado até a denominada democracia. [...]

Seus relatos têm a intenção de passar o que viu e aprendeu aos seus contemporâneos e aos que viverão depois dele. Seu registro da memória já tem a preocupação com a veracidade dos fatos narrados, embora muitas vezes tenha acreditado nas crenças tradicionais, sem questioná-las nem procurar esclarecê-las.

Heródoto recorreu a diversas fontes de informações. Ele viajou muito e observou diretamente aspectos geográficos, costumes dos povos "bárbaros" e dos gregos, fez perguntas a artesãos, viajantes, soldados e sacerdotes, leu escritos de autores antigos e contemporâneos. Encontramos em Heródoto informações de caráter econômico, político, militar, cultural e geográfico sobre os diversos povos e regiões com os quais os gregos entraram em contato.

A obra de Heródoto traduz ainda uma preocupação grega da época. Os gregos naquele momento ampliavam o seu poder e influência, principalmente no aspecto econômico, na região do Mediterrâneo. As informações que ele recolhia tinham, portanto, um caráter utilitário: colaborar na expansão grega.

Heródoto temia que os povos "bárbaros", principalmente os persas, destruíssem a civilização grega. O aspecto mais marcante dessa civilização era o cidadão livre da pólis. A sua obra Histórias informa os cidadãos gregos sobre os perigos da barbárie.

Os resultados das investigações de Heródotos de Halicarnassos são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam. Heródotos. Histórias. Clio, Livro I, Capítulo 1. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. p. 19.

Ele se coloca como um narrador neutro, sem emitir opinião sobre o que registra. Mas, na verdade, sua obra está orientada pelos valores e preocupações das cidades-estados gregas. Para preservá-las, os gregos deveriam domar o espírito, submeter-se a um treinamento árduo, confiar em seus líderes e nos deuses. A vitória grega sobre a barbárie dependia da capacidade militar (determinação, disciplina) e da vontade dos deuses.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 89 e 97.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O termo "Tempos Modernos": uma visão eurocêntrica da História?

Embora, na França, a expressão "Tempos Modernos" seja empregada para, geralmente, designar os séculos XVI, XVII e XVIII, uma explicação é necessária. A consciência de se haver entrado numa era nova foi percebida na Europa Ocidental no decorrer do século XVI.

Todavia, os historiadores estão longe de concordar sobre os limites cronológicos desta era nova. Na França [...] fazemo-la iniciar-se, em geral, em 1492, com a "descoberta" da América. Esta data apresenta o inconveniente de situar-se no meio do Renascimento, que abre os "Tempos Modernos". Certos historiadores, considerando que a Renascença, principia com o despertar das civilizações urbanas no Ocidente se inclinariam por um corte situado no começo do século XIII. Por causa disto, na Inglaterra, prefere-se fixar o início dos "Tempos Modernos" apenas quando a Renascença é dado como realizada, ou seja por volta do ano de 1600.


Carta náutica de Fernão Vaz Dourado, (c. 1520 - c. 1580), integrante de um atlas desenhado em 1571.

Voltados para o progresso, os "Tempos Modernos" não deveriam ter um fim. Entretanto, a historiografia francesa ficou impressionada com o desmoronamento da antiga monarquia, caracterizada por um regime, não somente político, mas ainda econômico e social, que se torna o "Antigo Regime" em relação ao mundo que se crê nascido com a declaração dos direitos do homem de 1789. Para designar este mundo considerado como novo, foi preciso encontrar um outro termo. Os historiadores franceses empregaram o de "contemporâneo", palavra que adquire aqui um sentido particular. Destarte, o ponto de partida da época contemporânea permaneceu curiosamente fixo, ao passo que os "Tempos Modernos", fixados em 1789, se afastam cada vez mais no passado.

Conquanto menos marcados que os franceses pela Revolução, os historiadores dos outros países da Europa distinguem também, em geral, um antigo regime e uma época mais recente, mas as denominações são diferentes. Como é lógico, o termo contemporâneo, para eles, é móvel, pois liga ao presente um passado todo próximo. O termo "moderno" designa, então, um período não acabado, mas incessantemente prolongado. Por causa disto, foram levados a introduzir divisões nesses "Tempos Modernos" destinados a se prolongarem. Os alemães distinguem Frühere Neuzeit e Spät Neuzeit, e os ingleses Early Modern Times e Later Modern Times... Estes termos, certamente menos rígidos que os nossos, se aplicam de maneira precisa ao antigo regime e ao regime novo? Neste caso, sua delimitação variaria segundo os países: 1848, para a maioria dos países da Europa Central; 1860 ou 1917 para a Rússia... De fato, os historiadores ocidentais reconhecem, geralmente, que o fim do século XVIII marca uma etapa importante na história de seus países em consequência do contragolpe das revoluções americana e francesa.

Trata-se, poder-se-á dizer, de modos de ver europeucentristas. Povos que hoje constituem mais da metade da humanidade não foram, em absoluto, subvertidos, no fim do século XVIII e no princípio do XIX, pelos grandes movimentos que afetaram a Europa e seus prolongamentos coloniais. Devemos negligenciar sua presença numa periodização do passado? Eu não penso que este argumento seja de natureza a fazer afastar o fim do século XVIII como termo do nosso período. O Extremo Oriente ou a Índia não têm neste momento, e não terão durante algum tempo ainda, um papel propulsor de primeiro plano na evolução da humanidade.

Outra objeção: o começo do século XVI e o fim do XVIII não representam uma mudança importante na história econômica ou na das condições materiais da vida. O descobrimento da América e o acesso direto dos europeus às Índias só farão sentir seus efeitos no decurso do século XVI, e a revolução da máquina, exceto para a Inglaterra, se situa no decurso do século XIX. Podemos desprezar tais fatos?

É verdade que toda periodização é artificial. [...]

Quando abordamos [a] Antiguidade ou a Idade Média [...] sabemos de antemão que, para compreendermos, nos deveremos desterrar completamente, pois que nos acharemos em presença de um mundo em que os homens viam de maneira diferente da nossa o tempo, o espaço, o domínio da natureza, as relações entre gerações, famílias e classes sociais. [...] Ora, "o homem de Versalhes" está muito longe de nós. Que dizer do homem dos campos ou das pequenas cidades contemporâneas de Lutero? Pois não existe um homem dos Tempos Modernos. Estes três séculos vêem realizar-se uma verdadeira mudança da espécie humana, menos visível e menos precipitada, sem dúvida, que a que assistimos atualmente, porém assaz profunda, uma vez que é ela que prepara esta última. É preciso que nos submetamos a uma série de desterramentos para podermos compreender os homens destes três séculos [...].

Com efeito, no fim do século XV, entram em contato mundos que até então se tinham ignorado inteiramente. Ora, pela primeira vez na história, o homem constatou qual era a forma da Terra. Ele ainda não sabia que não mais havia descobertas a fazer no globo da mesma importância que a da América. Mas nós, que o sabemos, avaliamos melhor que os contemporâneos de Américo Vespucci a importância de seu tempo na História: o planeta realizou sua unidade.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 5-7.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Lições do Mundo Antigo

Colheita, Pedro Weingärtner

Para alcançar o estágio de desenvolvimento que atingiu no século V da era cristã, a humanidade passou por períodos sucessivos de evolução marcados por eventos significativos. Na sequência cronológica, o primeiro evento foi o surgimento do bípede, há cinco milhões de anos. Há dois milhões de anos, a caixa craniana do Homo erectus alcançou o mesmo volume que a do homem moderno. A primeira ferramenta, uma pedra amarrada em um pau, foi uma conquista que pode ter ocorrido entre um milhão de anos e 500 mil anos. Esse evento marcou uma mudança radical naquele animal, pois foi seu primeiro ato de consciência. Ele associou ideias para criar um instrumento eficaz com objetivo preciso. A partir daí sua relação com a natureza mudou radicalmente. Não se sabe quando ele passou a usar o fogo ou começou a produzir a chama, com o choque de duas pedras ou a fricção de madeira. Há cerca de duzentos mil anos as ferramentas de corte já eram aperfeiçoadas com a manufatura de facas e de pontas triangulares para lanças e estiletes mantendo certo padrão.

O Homo sapiens aparece em Java pela primeira vez há cerca de 120 mil anos. As primeiras pinturas rupestres e entalhes em rocha representando animais aparecem há cerca de 30 mil anos. De 20 mil anos para cá há um aperfeiçoamento marcante na produção de artefatos, utensílios e armas de vários materiais, chifre de rena, osso, madeira e pedra, e o uso de madeira dura ou osso como broca, a primeira ferramenta para fabricação de instrumentos de pedra polida. A agricultura e a pecuária começaram há cerca de dez mil anos. Há nove mil anos o homem já trabalha o cobre, há cinco mil anos produz a roda e forja o bronze, constrói cidades e domina a escrita, e há quatro mil usa o arado na agricultura e fabrica instrumentos em ferro.

Observa-se que há uma aceleração crescente de um evento significativo para o seguinte. Foram três milhões de anos para a caixa craniana dos ancestrais do homem crescer, a partir do momento em que eles começaram a andar sobre dois pés. Mais um milhão de anos para construir o primeiro instrumento, Oitocentos mil anos para diversificar sua fabricação e estabelecer padrão de qualidade. Mais quase duzentos mil anos para gravar figuras nas rochas e polir a pedra. Há dez mil anos ele tornou-se agricultor e criador, constituindo grandes tribos nômades e aldeias diversificadas. Em seguida tornou-se minerador e metalúrgico. Há sete mil anos criou as primeiras aldeias fortificadas com muros de pedras e com casas construídas em tijolo cru. Há cinco mil anos construiu cidades e inventou a escrita, dando início às civilizações. Essas se fizeram impérios, alguns deles efêmeros, produzindo uma dança de poder e o caldeamento das populações e das culturas. Na primeira metade do primeiro milênio a.C. os gregos utilizaram a escrita para contar histórias, fazer poesia e textos de teatro, difundindo a cultura e dando forma definitiva a lendas e mitos. Isso possibilitou a crítica dos textos, o que deu origem à filosofia. No mesmo milênio, em vários locais do mundo, surgiram místicos e filósofos que são objeto de estudo e reverência de bilhões de pessoas na atualidade. Vejamos algumas lições que essa evolução nos deixou.

Os grupos familiares formaram-se naturalmente e se uniram para se defenderem das agressões externas, de animais ou de outros grupos. A ampliação dessa união deu origem às tribos. Estas cresceram, formaram-se castas, e a chefia tornou-se tirânica. Tolheu-se a liberdade dos excluídos das castas. O sedentarismo das cidades ampliou e consolidou as diferenças sociais. Surgiram a escravidão e o poderio militar. As necessidades e a complexidade das relações sociais, cada vez maiores, fizeram crescer ainda mais as diferenças sociais. Os ricos já não se contentam em satisfazer suas necessidades. Eles querem luxo, regalias e mais riquezas do que a cidade lhes pode dar. Isso gerou conflitos e insegurança. As castas já não podiam prescindir do trabalho escravo, então escravizam os inimigos presos. O passo seguinte foi a conquista de outros povos. Inicia-se o período dos impérios, nas suas diversas manifestações. Os teocráticos, como Acádia, Egito, Babilônia, nos grandes vales de agricultura irrigada. Os mercantis escravistas, como Assíria, Grécia, Cartago, Roma. E as chefias pastoris nômades, como hicsos, hititas, cassitas, ários, citas, hunos.

As cidades-Estado helênicas foram um avanço extraordinário na organização social, com a criação da república. Mas com seu desenvolvimento, dirigentes e grandes proprietários formam oligarquias, para exercer o poder e satisfazer suas ambições. Negligenciam os princípios republicanos que sustentaram o progresso da comunidade. Optam pela pilhagem na busca da riqueza. Invadem o território da cidade vizinha para ampliar o seu, gerando a guerra e a insegurança. [...]

[...]

Esse fenômeno da expansão da cidade sobre os domínios de outros, que já preocupava os filósofos gregos, aconteceu também com os reinos que englobavam mais de uma cidade, o que os fez tornarem-se impérios. A propriedade e a concentração de riqueza foram instrumentos de progresso material, mas foram também causas das guerras que abalaram o mundo antigo e nos atingem até hoje. As grandes extensões dos reinos e de impérios resultaram na sua instabilidade e, em muitos casos, na sua destruição. Assim, os reinos, impérios e as civilizações foram se sucedendo no processo histórico, cumprindo seu ciclo de nascimento, florescimento, decadência e morte.

Algumas civilizações não foram vencidas por outras em competição ou guerra. Apenas se tornaram inviáveis, esgotaram-se por seu crescimento ou por seus vícios. Elas deixaram espaço para a formação de reinos menores que se ajustaram às novas circunstâncias. Observando cada período de evolução da humanidade, verificamos que os de maior prosperidade e crescimento ocorreram quando os impérios, por uma ou outra razão, estiveram contidos, como aconteceu depois da grande revolta dos povos dos mares por volta de 1200 a.C. Ausentes os impérios, o Mediterrâneo foi liberado para o comércio sob a hegemonia da Fenícia, um Estado pequeno com pequeno poder militar. Nesse período as cidades-Estado se organizaram, floresceram e se difundiram. O mundo passou por um grande progresso material e cultural.

Não podemos julgar a história, mas devemos analisá-la friamente para que possamos aprender com seus feitos e desfeitos. O processo histórico é uma sucessão de períodos de presença imperial forte, quando prevaleceu a tirania, e de relativa ausência desses impérios, quando floresceu a república e uma democracia incipiente, condicionadas pelas oligarquias nas cidades-Estado, mas com muito mais liberdade que sob o domínio imperial ou na presença dele. Esse processo cíclico de dominação e liberdade facilitou a integração das populações e o caldeamento cultural, ora em benefício dos impérios, ora dos povos.

Nos períodos imperiais desenvolveram-se as tecnologias militares e as forças produtivas, pois era necessário produzir armas e alimentos para as guerras e a sustentação do império. Nos períodos de autonomia das cidades-Estado, desenvolveram-se a cultura, nas suas diversas manifestações, a cidadania, a literatura e a poesia, as artes cênicas, a escultura e a pintura, o artesanato, a filosofia, a religião, a música e os conhecimentos em geral. As relações humanas e as ciências progrediram e o homem tornou-se melhor, mais sociável e mais amoroso.

Na Mesopotâmia, encontramos um período de autonomia das cidades-Estado e dos pequenos reinos, do ano 3000 a.C., no início das civilizações, até o Império Acádio, por volta de 2400 a.C. Depois da queda desse império, em 2150 a.C., houve autonomia e progresso em vários pequenos períodos, nas alternâncias entre os instáveis primeiros impérios, até que o império babilônico de Hamurábi se impõe em 1790 a.C. Muito mais tarde ocorreria no Oriente Médio um período muito importante para a evolução de todos os povos, de 1200 a.C. até cerca de 800 a.C., resultante do retraimento dos impérios que disputavam a região, em face da revolta dos povos dos mares. Já na Ásia Menor e no mar Egeu esse período de autonomia permaneceu até a invasão de Ciro II à costa jônica e às ilhas gregas próximas a ela, em 550 a.C.

As invasões persas ao mundo helênico não foram apenas uma questão geopolítica. Elas traumatizaram as populações invadidas, assim como as ameaçadas. O resultado foi um ódio de tal proporção, que esses povos apoiaram Alexandre nas suas ações de conquistas que destruíram seu inimigo. Esse fato deveria estar presente no pensamento dos líderes mundiais que não encontram limites morais nas suas ações dominadoras, que incluem o genocídio, a destruição de valores morais e de bens materiais.

O processo histórico há pouco referido, que alterna submissão e autonomia, ainda vigora até nossos dias. Hoje, entretanto, enfrentamos uma situação muito mais complexa e perigosa, pelo enorme poder de destruição acumulado e pelo esgotamento da capacidade da natureza em recuperar-se da ação predatória do homem. [...]

Quando Atenas foi invadida e destruída pelos persas, em 480 a.C., já havia sido constituída uma aliança, um ano antes, que criou o mais poderoso exército da Antiguidade. A Liga do Peloponeso, sob a liderança de Esparta, teve papel preponderante nesse acontecimento. Mas, disputas internas, e a visão imperial de Atenas, impediram que ela se consolidasse. Esparta continuou com seus aliados e Atenas formou a Liga de Delos, criando um foco de tensão que só cresceu, e teve seu ápice na Guerra do Peloponeso em 431 a.C. Esta durou 27 anos, destruiu a unidade helênica e permitiu a Filipe da Macedônia assumir o poder na Grécia.

Se houvesse um esforço no sentido da unidade, que suplantasse as disputas entre as aristocracias de Atenas e de Esparta, o mundo helênico poderia oferecer à humanidade um formidável exemplo de cooperação entre Estados independentes formando uma confederação forte, cultural, econômica e militarmente. Poderia tornar-se uma potência formidável, não imperial, a condição mais conveniente para ela estabelecer boas relações com os outros povos da região. Entretanto, o projeto imperial de Atenas era ambicioso demais, enquanto seus governantes eram frágeis discípulos dos sofistas, sem ética e sem compromissos maiores com a população grega. Quando usou o tesouro da Liga de Delos, destinados à defesa comum, Atenas manifestou sua prepotência, enquanto construía seu projeto imperial. Os recursos foram usados para fortificar e reconstruir a cidade e o Parthenon, gerando emprego e prosperidade apenas para ela.

Esse exemplo é notável para a compreensão de como as classes dominantes colocam seus interesses acima dos do país e de seu povo. A desunião dos gregos e a fugaz existência do Império Greco-Macedônio abriram o caminho para Roma tornar-se o grande império que foi. Há muitas outras lições a aprender com a história do mundo antigo, na qual encontramos situações semelhantes àquelas vividas mais tarde pela humanidade, inclusive nos nossos dias. Compreender os fenômenos atuais por seu estudo direto é difícil, porque eles envolvem nosso interesse pessoal e nossas emoções. Nós somos parte deles, como autores, vítimas ou cúmplices. Mesmo descontentes, a mudança pode nos ser incômoda e a luta por ela perigosa. Teremos que enfrentar a opinião pública, formada pelos meios de comunicação para defender o status quo. Precisamos do nosso emprego que, mesmo precário, garante nossa subsistência e de nossa família. Nossos conhecimentos limitados bloqueiam nossa visão de conjunto da sociedade, necessária à compreensão do todo. A rotina e a inércia estão a favor do status quo, mesmo se injusto e doloroso.

A única dificuldade na análise dos fatos históricos são os dogmas de fé, Eles bloqueiam nossa mente. Estamos vivendo um momento em que todos falam em mudança, desfazendo-se de muitos dos dogmas do passado. Mas esses são substituídos por novos dogmas, como aqueles contidos no que os intelectuais apelidaram o pensamento único. Sem dogmas e mitos, e sem cumplicidade, podemos nos centrar nas questões essenciais para termos uma visão mais realista delas. Inclusive compreender que mesmo sem nos empenharmos na solução dos problemas a crise se encarregará de fazê-lo. Mas o preço da omissão poderá ser muito caro para todos.


Uma das consequências da nossa assimilação das lições da história é compreendermos a origem comum dos povos e nos certificar de que nenhum deles é mais importante, ou melhor, que qualquer outro. Todos tiveram seus momentos de dificuldades e souberam superá-las. Conheceram a glória, como senhores de impérios, e a humildade dos derrotados e dos escravizados. Não porque fossem mais fortes ou mais fracos, mais ou menos capazes, mas por circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis. Foram poderosos por ocuparem terras férteis e dominarem tecnologias mais desenvolvidas e adequadas. Por serem, naquele momento, mais numerosos e disporem de tecnologia inovadora ou superioridade militar. Foram fracos quando vítimas de mudanças climáticas catastróficas, ou de lideranças corrompidas ou irresponsáveis, ou quando eram pouco numerosos e detinham pequeno efetivo militar.

A alternância de dominação que ocorreu em todo mundo ocidental conhecido na época, Oriente Médio, Ásia Menor, Egito e Mediterrâneo, demonstra que todos os povos são aptos para o exercício de qualquer atividade econômica, artística ou guerreira. A alternância no poder de comunidades nos países e destes como impérios, provam que o poder provém da produção material, terra, matéria-prima, tecnologia e massa crítica de população, e não das qualidades humanas que são, na média, iguais para todos os povos. O que realmente importa para a realização dos povos são seu nível de conhecimento e suas relações sociais equilibradas e harmoniosas. O reconhecimento do direito dos cidadãos é o principal quesito para a valorização de uma civilização.

A força e a bravura dos guerreiros são virtudes que podem ser determinantes na decisão de um conflito, mas os registros mais importantes da história não são os feitos bélicos, mesmo quando gravados em pedra pelos vencedores. São as obras de arte, a filosofia, a literatura, a poesia, as construções, sejam elas magníficas ou simplesmente úteis, e as ações e atitudes humanitárias, como o amor latente na pregação dos grandes líderes religiosos.

As diferenças genéticas ou culturais devem ser vistas como vantagem universal. A primeira favorece a sobrevivência de parte da humanidade em situações climáticas rigorosas. A segunda aumenta a probabilidade de um grupo possuir as qualidades adquiridas de adaptação às diferenças do meio, através dos seus hábitos, métodos de trabalho, estilo de vida, conhecimentos e crenças. E também de terem uma cultura mais adequada à adaptação a novas condições sociais e institucionais, em momentos de crise civilizacional. Assim, a humanidade pode seguir sua senda de experiências, dificuldades, sofrimentos, êxitos e realizações. A questão racial por conta da cor da pele é ridícula sob todos os aspectos, e já foi desmascarada pela ciência, sobretudo depois da descoberta do DNA. A migração para o norte no período glacial, por exemplo, favoreceu os albinos proliferarem e se mesclarem com os outros reduzindo a melanina do grupo. Como não existe uma raça albina, seus descendentes não podem alegar serem de raça distinta apenas pela menor quantidade de melanina na pele.

O conhecimento da história do mundo antigo é suficiente para ensinar à humanidade como proceder para uma vida melhor e uma maior realização humana. Ela nos mostra que o respeito ao próximo evita conflito e cria a cooperação, e a sinergia colabora para um maior desenvolvimento de todos. Já o conhecimento científico nos dá condições de saber mais sobre a natureza e o cosmos, e nos ajuda a comportarmos em consonância com as leis naturais que não podemos mudar. Mas a história sempre foi mal conhecida ou deturpada, no interesse daqueles que ocupam o poder. Estes criaram as castas e as tiranias, e construíram barreiras contra a difusão do conhecimento, que eles monopolizaram. O domínio da informação por uns poucos, obrigou aos que não se submeteram a criar o ocultismo e as seitas. A dominação também aprofundou a desigualdade, imobilizou um grande potencial de desenvolvimento humano, perpetuou a ignorância, o maior dos males.

As castas produziram as ideologias, corpos de ideias que buscam justificar seus interesses e as ações para defendê-los. Elas geraram a discriminação e toda sorte de desumanidade, a violência, a injustiça. Estigmatizaram adversários e concorrentes para que fossem desprezados. Incentivaram os conflitos para evitar a unidade das populações. Estabeleceram instituições manipuláveis e apropriadas à defesa de seus privilégios. Assim, o poder, seja qual for sua forma ou expressão, representa sempre esse corpo de ideias, a ideologia da classe dominante, que coloca os povos em camisa de força.

Esses ensinamentos estão todos lá no mundo antigo. Quando Jesus de Nazaré disse, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, ele talvez quisesse nos dizer que o maior inimigo do homem é a ignorância. O mesmo disse Buda. É da ignorância e da avidez que surge o mundo do erro, e suas causas e condições existem apenas dentro da mente, em nenhum lugar mais. Mas essas mensagens foram deturpadas e a verdade negligenciada. [...]

[...]

Há uma questão renitente na atualidade, que parece não ter solução, o propalado "ódio" entre árabes e judeus, Uma forma viciada de apresentar um conflito como se houvesse uma razão histórica consistente para isso. Não há nada que possa justificar esse conflito. Os dois são povos semitas, da mesma raiz linguística e que viveram lado a lado durante séculos. Muito menos no que concerne às relações entre judeus e libaneses. Estes são descendentes dos fenícios que conviveram com os hebreus e deram apoio ao seu Estado por séculos. Somente a partir da presença inglesa na região, depois da descoberta do petróleo, esse conflito foi alimentado e manipulado. Nem na história antiga, nem na religião, podemos encontrar explicações para esse impasse. O fundamento alegado é a diáspora dos judeus, no tempo de Roma, mas, hoje, sua causa é o interesse das potências modernas no petróleo.

MOURTHÉ, Arnaldo. História e colapso da civilização: é melhor o incômodo da advertência que a tragédia da ignorância. Rio de Janeiro: Editora Mourthé, 2012. p. 219-227.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Condições de vida dos homens livres na América colonial inglesa

Desembarque dos puritanos na América, Antonio Gisbert

Entre as massas trabalhadoras livres das colônias americanas a vida era dura, e a belicosidade generalizada. [...] Para os 70 por cento da população trabalhadora colonial livre as condições de vida eram melhores do que para seus irmãos de classe na Europa, e o grau de mobilidade social era de certo modo maior, mas os dois aspectos evidenciavam-se apenas num sentido relativo. No sentido absoluto, a vida era muito cara, pois os salários mal chegavam para levar mesmo a comida mais simples às bocas do produtor, sua mulher e seus filhos [...].

Nas cidades proliferava a prostituição, eram numerosos os mendigos, os abrigos de pobres viviam cheios, os cortiços já estavam presentes e as centenas de indivíduos que dependiam de ajuda pública para se manterem vivos tinham de usar um emblema denunciando sua condição "degradada".

Nas áreas rurais o passadio mais simples, o abrigo mais rude, a roupa mais grosseira eram a regra para quase todos os que labutavam com as próprias mãos. E nas cidades e nas fazendas os pobres livres trabalhavam como os pobres sempre trabalharam - muito e por muito tempo.

Os ricos viviam na América colonial como viveram em toda parte. Uma casa de cidade e de campo, centenas e milhares de acres; dezenas de empregados e/ou escravos; refeições lautas; festas incessantes; seda e cetim, veludo e pérolas; carruagens e baixela de ouro; peças da moda e música e livros; negócio, alianças, intrigas; altas e poderosas funções; e intensa preocupação com a conservação de tudo isso e em manter a "gentinha" em seu lugar.

Desembarque dos peregrinos em Plymouth, 1620, N. Currier

Essas diferenças eram a obra e a vontade de Deus, porque de outro modo não existiriam. Quem as põe em dúvida demonstra, portanto, sua falta de fé e de crença; quem as põe em dúvida pertence ao Diabo, e deve ser tratado de acordo com isso. Os pobres devem ser postos a trabalhar, e é o medo de morrer de fome que os fará trabalhar.

Quanto aos mendigos e desocupados, é bem verdade, escreve o Reverendo Cotton Mather em 1695 (Riquezas Permanentes), eles "vergonhosamente crescem entre nós, assim como os mendigos que nosso senhor Jesus Cristo expressamente nos proibiu de proteger". Daí sua palavra apostólica: "Que morram de fome".

APTEKHER, Herbert. Uma Nova História dos Estados Unidos Unidos: A Era Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 53-54.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O populismo no Brasil: o governo João Goulart

Nos jornais toda a história de uma época. 
Comício das Reformas (Última Hora)

Em 25 de agosto de 1961, o país entrou em uma profunda crise política. A renúncia de Jânio implica a posse do vice-presidente, João Goulart. Esse último, em viagem diplomática à China. era hostilizado por importantes segmentos das forças armadas e do meio empresarial. Há razão para tanto? Lembrem-se: ele havia sido o responsável pelo aumento de 100% do salário mínimo - motivo suficiente para ser identificado com uma nebulosa política denominada "república sindicalista". Além disso, Goulart pertencia à corrente nacionalista, partidária da implementação de "reformas de base" da sociedade brasileira que [...] contrariavam poderosos interesses.

Os próprios ministros militares do governo que ele presidiria manifestaram-se contra sua posse. Tal recusa, porém, estava longe de contar com o apoio do conjunto das forças armadas. Goulart havia sido eleito pelo voto direto e, de acordo com as normas constitucionais, isso fazia com que a ala legalista do exército se posicionasse favoravelmente a sua posse. Explorando habilmente essa divisão, Leonel Brizola, que no início dos anos de 1960 despontava como nova liderança nacional do PTB, consegue apoio do III Exército. O então governador do Rio Grande do Sul também cria a Cadeia da Legalidade, lançando, através dos meios de comunicação de massa, uma campanha nacional pela posse do presidente.

O Golpe de 1961 é, dessa maneira, evitado. No entanto, foram necessárias concessões políticas por parte de João Goulart. A mais importante delas foi a adoção do parlamentarismo, através do qual se transferia para o congresso nacional e para o "presidente do conselho de ministros", aí eleito, boa parcela das prerrogativas do poder executivo.

Aproximadamente duas semanas após a renúncia, o novo presidente assume o cargo. Novas conspirações têm início. Um aspecto crucial relativo à adoção do parlamentarismo era aquele que previa, nove meses antes do término do mandato presidencial, a realização de um plebiscito no qual se confirmaria a manutenção dessa forma de governo.

A experiência parlamentarista, implementada às pressas, revela-se um fracasso. A crise econômica conjuga-se então com a quase paralisia no sistema político. Auxiliado por tais circunstâncias e pela campanha que faz, João Goulart consegue não somente antecipar o plebiscito, como também dele sair vitorioso. Em janeiro de 1963, o Brasil voltava a ser presidencialista. Dessa data até março de 1964, assistiremos a uma progressiva radicalização entre os setores nacionalistas e antinacionalistas. [...]

[...] por volta de 1945, a economia brasileira tornava-se predominantemente industrial. A partir dessa época, as possíveis formas de aceleração do processo de desenvolvimento econômico passam a ser o foco de discussões. Pois bem, uma das soluções dessa última forma de desenvolvimento, havia aqueles partidários da reorganização de nosso mundo rural. Para eles, o campo brasileiro mantinha estruturas econômicas pré-industriais, impedindo que a população aí existente fosse integrada ao mercado consumidor. Mais ainda: nossa agricultura, baseada em grandes propriedades e na lavoura de exportação, abastecia precariamente a cidade, elevando o custo de vida e fazendo com que, entre os trabalhadores, sobrassem poucos recursos para a aquisição de produtos industriais. A formação de latifúndios improdutivos tinha ainda outro efeito negativo: desviava capitais de atividades econômicas mais dinâmicas. Em outras palavras, sem a reforma agrária a economia brasileira estaria fadada à estagnação ou, então, a uma crescente dependência em relação aos investimentos estrangeiros.

[...] o debate a respeito da alteração de nossas estruturas agrárias está longe de ser meramente técnico. Em torno dele digladiavam-se, como digladiam-se em nossos dias, interesses econômicos e paixões políticas. Não por acaso, nem mesmo governos transformadores, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, implementaram projetos dessa natureza. Na verdade, pode-se afirmar mesmo o inverso. Desde os anos de 1930, a ênfase dada à industrialização levou, na maioria das vezes, a restrições ao crédito rural e a uma política cambial desfavorável aos produtores agrícolas. Esses, por sua vez, mantiveram suas respectivas taxas de lucro aumentando o nível de exploração dos trabalhadores, o que acabou estimulando imigrações urbanas e sentimentos de revolta.

[...] o campo brasileiro nem sempre adotou o trabalho assalariado. Em várias partes, colonos, rendeiros, meeiros e "moradores de favor" é que de fato substituíram o braço cativo. Nesse meio era comum fazendeiros cobrarem prestação de serviços em troca de moradia, alterarem livremente os acordos de partilhas das colheitas ou mesmo mandarem embora trabalhadores sem indenização alguma. Em 1955, a revolta frente a essa situação cristaliza-se na forma de Ligas Camponesas, organizadas por Francisco Julião, advogado com longa experiência em defesa dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais. Inicialmente as ligas se estabelecem em Pernambuco e na Paraíba, para depois se espalharem por outros estados brasileiros, como Rio de Janeiro e Goiás. Seu lema era o de levar justiça ao campo através da reforma agrária, "na lei ou na marra", o que implicava invasões de propriedades rurais, criando um clima de terror em parte da elite brasileira.

Outro aspecto interessante dessa nova organização era que ela fugia ao controle das tradicionais instituições populistas, como era o caso dos sindicatos vinculados ao PTB. De fato, pode-se afirmar que as ligas e seu líder eram hostis a João Goulart. Em 1962, essa postura ganha alcance nacional. Francisco Julião, eleito deputado federal pelo PSB, apóia vitoriosamente o prefeito do Recife na disputa pelo cargo de governador. Seu nome: Miguel Arraes. João Goulart enfrenta agora não apenas uma oposição à direita, como à esquerda também; talvez por isso, o presidente tente reforçar a base de apoio popular se aproximando do PCB. [...]

[...]

Ora, de forma simplificada, podemos afirmar que, para o PCB, os membros da UDN e parte do PSD representavam os interesses feudais, ao passo que o PTB aglutinaria os grupos pertencentes à nascente burguesia nacional. Não é de estranhar, portanto, que os comunistas vissem com bons olhos a ascensão de João Goulart, defensor da reforma agrária e hostil ao capital internacional. Além disso, a aproximação do PCB com o PTB atendia a necessidades práticas, como era o caso da legalização partidária dos comunistas. Por outro lado, Goulart procurava tirar vantagens dessa aliança. Um exemplo disso refere-se às mencionadas ligas camponesas. No início dos anos 1960, comunistas e trabalhistas levaram a cabo uma bem-sucedida campanha de filiação sindical dos trabalhadores do campo. Na época do fim do parlamentarismo, enquanto as ligas contavam com 80 mil associados, registrava-se a existência de 250 mil trabalhadores agrícolas sindicalizados, o que enfraquecia o segmento oposicionista Julião-Arraes em sua própria base eleitoral.

A aproximação PTB/PCB também deve ser entendida como um último recurso, frente ao fracasso do presidente em promover uma política moderada. Goulart naufraga em suas articulações com a Frente Parlamentar Nacional, que integrava até mesmo udenistas favoráveis a reformas estruturais da sociedade brasileira. O mesmo ocorre em sua tentativa de criar a União Sindical dos Trabalhadores, confederação destinada a enfraquecer o Comando Geral dos Trabalhadores, controlado pelo PCB. Em termos de política econômica, seu resultado também é medíocre. A equipe de seu primeiro ministério, liderada por San Thiago Dantas e Celso Furtado, tenta, sem sucesso, implementar o plano trienal, que previa a captação de recursos internacionais, assim como austeridade no gasto público, crédito e política salarial. Tal fracasso tem graves repercussões: registra-se, então, uma recessão e uma inflação com taxas jamais vistas.

Cada vez mais isolado entre as elites, Goulart procura apoio na ala radical do trabalhismo, liderada por Leonel Brizola - defensor da mobilização popular como uma forma de pressionar para obter as reformas de base. Em outubro de 1963, as conspirações contra seu governo se proliferam. Pressionado pela ala legalista do exército, o presidente tenta decretar estado de sítio, mas é sabotado no congresso pelo próprio partido, perdendo, assim, o pouco do prestígio que lhe restava junto às forças militares.

Apesar de sua frágil situação, Goulart não reavalia o projeto reformista. Desde a posse, o presidente mantinha uma postura ambígua, ora tentando implementar uma política moderada, ora apelando para a mobilização popular de modo a forçar o congresso a aprovar reformas. Em parte devido à inflação, e também a essa política populista, as greves se multiplicam. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que de 1961 a 1963 ocorreram mais movimentos grevistas do que no período compreendido entre 1950 e 1960. No que diz respeito às greves gerais, ou seja, aquelas envolvendo várias categorias sócio-profissionais, o aumento registrado no mesmo período é de 350%. Não é difícil imaginar os transtornos criados nos serviços básicos de saúde e de transportes coletivos por esse tipo de prática, tornando o presidente bastante impopular junto às classes médias e fatias importantes dos trabalhadores. Mais ainda: observava-se, durante seu governo, o declínio acentuado da repressão aos grevistas, dando munição aos que disseminavam, entre as elites, o medo em relação à implantação de uma república sindicalista no Brasil.

No início de 1964, o presidente encaminha ao congresso um projeto de reforma agrária e é derrotado. Através de mobilizações de massa tenta pressionar o poder legislativo. No comício de 13 de março, que reuniu cerca de 150 mil participantes, anuncia decretos nacionalizando refinarias particulares de petróleo e desapropriando terras com mais de 100 hectares que ladeavam rodovias e ferrovias federais. As medidas são acompanhadas por declarações bombásticas, como aquelas de Brizola, defendendo a constituição de um "congresso composto de camponeses, operários, sargentos e oficiais militares". A direita reage a esse tipo de manifestação, organizando, com o apoio da Igreja católica e de associações empresariais, "marchas da família com Deus pela liberdade", através das quais condenava o que julgava ser o avanço do comunismo no Brasil.

Em um lance extremamente infeliz, Goulart estende a arregimentação sindical aos quartéis. Em fins de março, apóia uma revolta de marinheiros, deixando que esses últimos participassem da escolha do novo ministro da Marinha, assim como mobiliza os sargentos do Rio de Janeiro. A quebra da hierarquia militar era o item que faltava para que os conspiradores conseguissem apoio da ala legalista das forças armadas. Em 31 de março é deposto o presidente. A UDN, através de dois governadores, Magalhães Pinto, Minas Gerais, e Carlos Lacerda, Guanabara, participa ativamente no golpe. [...]

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 345-351, 353.

sábado, 16 de janeiro de 2016

O populismo no Brasil: o governo Jânio Quadros

Nos jornais toda a história de uma época. 
A renúncia de Jânio Quadros (Folha da Tarde)

Mas a calmaria não duraria muito. Ao longo da redemocratização surgiram vários partidos políticos que, na maior parte do tempo, não chegavam a ameaçar o controle das três agremiações dominantes. Quase sempre de pouca duração, esses pequenos partidos, às vezes, tinham designações pitorescas, como União Social pelos Direitos do Homem, Partido Industrial Agrícola Democrático ou Partido Nacional Evolucionista, para mencionarmos apenas alguns exemplos. Vez por outra, porém, a fragmentação partidária permitia a ascensão de políticos não vinculados às organizações tradicionais. Com certeza o exemplo mais bem-sucedido desse tipo de trajetória foi Jânio Quadros, que, a partir de 1947, foi eleito sucessivamente vereador, deputado estadual, prefeito e governador pelo Partido Democrático Cristão.

O anticomunismo e a retórica moralista de Jânio em muito agradavam aos udenistas. Misturando o discurso conservador com práticas populistas, Jânio parecia conseguir o impossível: ser de direita e conquistar o apoio das massas. Não é de se estranhar que dele a UDN tenha se aproximado, selando uma aliança para as eleições presidenciais de 1960. Do outro lado do espectro das forças políticas, reproduzia-se a aliança PSD/PTB, com a indicação do general Lott, da ala nacionalista do exército. Pela segunda vez, também era candidato à presidência Ademar de Barros, líder populista paulista, concorrendo pelo Partido Social Progressista.

A vitória janista é esmagadora: ele conseguiu 50% de votos a mais do que o general Lott e quase 150% a mais do que Ademar de Barros. A UDN finalmente chegava ao poder. Mas se tratava de uma vitória ambígua. O novo presidente governa sem consultar a coligação de partidos que o elegeu, seu ministério inclui inimigos dos udenistas e pessoas escolhidas pelo critério de amizade. No exército, promove os grupos antinacionalistas. Em relação ao congresso, tem uma postura agressiva declarando publicamente tratar-se de um clube de ociosos.

Visando combater os altos índices de inflação herdados do governo anterior, Jânio implementa uma política econômica austera. No plano internacional, desagrada a UDN, pois implementa uma política de não-alinhamento com os Estados Unidos, valorizando acordos comerciais com os países do bloco comunista. Ao mesmo tempo que tem uma política econômica coerente e é inovador na política diplomática, o presidente aprova medidas sem nenhuma importância, mas com grande repercussão nos meios de comunicação, como a proibição do uso de biquínis em desfile de misses, do hipnotismo em lugares públicos, de corridas de cavalos em dias de semana, de brigas de galo... Condecora Che Guevara, em uma aproximação com Cuba- talvez tentando repetir a política internacional ambígua de Getúlio Vargas, que foi responsável por acordos vantajosos com os Estados Unidos.

Apesar do tom autoritário, quando não carnavalesco, de seu governo, o risco de instabilidade política parecia diminuir, a não ser por um importante detalhe: segundo a legislação da época, vota-se para o vice-presidente separadamente do cabeça-de-chapa. Ora, na eleição de Jânio, João Goulart havia sido novamente eleito para o referido cargo. Após pouco mais de seis meses de governo, o presidente procura explorar a delicada situação, anunciando a renúncia.

Conforme ele próprio reconhece, em livro organizado alguns anos mais tarde sobre a História do Povo Brasileiro, seu objetivo era forçar uma intervenção militar: primeiro, operar-se ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório - visto que a João Goulart, [...], não permitiriam as forças militares a posse, e, destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime constitucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime... O aprendiz de ditador fracassa por causa da "vacilação dos chefes militares". Instala-se, porém, uma grave crise política, cujo desfecho final tem uma data marcada: 31 de março de 1964.

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História da Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 340-1, 343-4.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O populismo no Brasil: o governo Juscelino Kubitschek

JK: o presidente bossa-nova

Nas forças armadas, paralelamente aos nacionalistas e antinacionalistas, havia aqueles dispostos a garantir que a Constituição fosse respeitada. Alguns autores definem esse segmento como "legalistas". A suspeita de que o presidente estava tramando um novo golpe fez com que os antinacionalistas conseguissem apoio dos legalistas. É nesse contexto que se interpreta o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 24 de agosto de 1954: um derradeiro gesto político, através do qual ele conseguiria sensibilizar as massas populares, ao mesmo tempo que esvaziava a aliança golpista no interior das forças armadas.

Dessa vez, o presidente acerta: os levantes populares que se seguiram a seu suicídio inviabilizaram a ação militar. No período que se estende até 1955 são preparadas novas eleições presidenciais. Sintomaticamente, a UDN busca um candidato militar na figura do general Juarez Távora. O PTB, por sua vez, procura se aproximar do PSD, que tem como candidato Juscelino Kubitschek. Combatendo o salário mínimo, o direito de greve e o ensino gratuito, os udenistas são novamente derrotados. Juscelino e o vice-presidente eleito, João Goulart, não encontram um ambiente político favorável. Alegando a necessidade de maioria absoluta nas votações presidenciais, em 11 de novembro de 1955, os quartéis voltam a dar sinais de descontentamento. Uma vez mais a corrente militar antinacionalista tenta conseguir apoio dos legalistas, mas esses últimos se negam e garantem a posse do novo presidente.

[...] após 1945, as intervenções militares no sistema político não eram um fato isolado, mas sim uma prática rotineira, que irá se repetir em 1961, alcançando, em 1964, o sucesso esperado. Voltemos, porém, a Kubitschek. Ele representou uma ruptura? Ora, no melhor estilo do PSD mineiro, do qual ele era originário, a resposta é "sim e não". Em outras palavras, o novo presidente procurou conciliar bandeiras comuns aos nacionalistas e antinacionalistas. Promove os primeiros no exército, aprofunda práticas de intervencionismo estatal, mas, ao mesmo tempo, abre a economia para os investimentos estrangeiros.

O novo governo, aliado ao PTB, conserva traços populistas. No entanto, a política econômica representa uma alteração profunda em relação ao modelo precedente. Durante os dois governos Vargas, a prioridade do desenvolvimento nacional consistiu no crescimento da indústria de base, produtora de aço ou de fontes de energia, como o petróleo ou a eletricidade. Naquele modelo, a iniciativa estatal predominava e os recursos para o crescimento econômico advinham da agricultura de exportação. Pois bem, Juscelino Kubitschek altera a forma de nosso crescimento industrial, instituindo o que os historiadores economistas chamam de tripé: a associação de empresas privadas brasileiras com multinacionais e estatais, essas últimas responsáveis pela produção de energia e insumos industriais.

A diferença desse modelo em relação ao anterior estava no fato de os bens duráveis, como foi o caso da produção de automóveis por multinacionais, passarem a ser o principal setor do processo de industrialização. Graças ao investimento das empresas estrangeiras, a nova economia brasileira tornar-se-ia mais independente em relação às crises do setor agro-exportador. No entanto, o modelo tripé tinha consequências nefastas. Por disporem de fartos recursos de seus países de origem, a produção das multinacionais aqui instaladas podia crescer em ritmo mais acelerado do que a produção de base, implicando assim um aumento das importações de insumos industriais, fator responsável pelo progressivo endividamento externo do Brasil. Mais ainda: para estimular a implantação dessas empresas foram facilitadas as remessas de lucros para as matrizes, o que implicava no desvio de valiosos recursos da economia brasileira.

A curto prazo, porém, o modelo industrial de Juscelino foi um sucesso. A economia atingiu taxas de crescimento de 7% e até mesmo 10% ao ano. Isso permitiu que um ambicioso Plano de Metas - popularmente conhecido como "50 anos em 5" -  alcançasse um estrondoso sucesso. As rodovias são multiplicadas, o número de hidrelétricas cresce além do previsto, o mesmo ocorrendo com a indústria pesada. Na área de produção de alimentos, o presidente estimula uma tendência, existente desde os anos de 1930, que consistia em ampliar a fronteira agrícola em direção a Goiás e Mato Grosso - o que, aliás, levou ao extermínio de novos povos indígenas. Coroando essa política ambiciosa, a capital é transferida: no cerrado do Brasil central surgia Brasília.

Diante de tais feitos, a própria UDN abandonou provisoriamente o discurso anticomunista, em prol de críticas à má gestão dos negócios públicos, à corrupção e à inflação que se intensifica no período. Apesar disso, respira-se certa tranquilidade política, pois o crescimento econômico também permitiu o aumento dos salários - que, em termos reais, no ano de 1959, atingiram valores até hoje não ultrapassados -, reforçando assim o apoio dos trabalhadores ao PTB, base aliada do governo juscelinista.

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História da Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 338-340.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O populismo no Brasil: o segundo governo Vargas

Nos jornais toda a história de uma época,
 O suicídio de Vargas (Última Hora)


O fim do Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias tinham chances de retornar ao comando político. Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente daquele que havia existido durante a República Velha. Dentre essas mudanças, talvez a mais importante tenha sido a que dizia respeito ao novo eleitorado que então surgira.

Em consequência das reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação eleitoral, em declínio desde fins do Império, quando então os analfabetos foram excluídos do direito de votar, haviam aumentado sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosas do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentavam um perfil cada vez mais urbano. [...]

Como seria de esperar, tal mudança implicava uma alteração profunda no perfil dos candidatos e dos votantes. Esses últimos ficaram cada vez menos sujeitos aos coronéis, enquanto os primeiros não mais precisavam ser originários da elite agrária, dependendo agora do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista bem azeitada em conceder favores e empregos. Uma vez mais, deve-se reconhecer a sagacidade do antigo ditador em perceber essas transformações, explorando-as habilmente. A conjugação entre a propaganda política, que dela fazia o "protetor dos pobres", e a utilização de sindicatos e institutos de previdência garantiu seu prestígio junto aos eleitores urbanos, tornando-o, em grande parte, independente das antigas oligarquias. Mais ainda: através do PTB, Getúlio garantiu uma dimensão nacional a seu projeto político.

Após o fim do Estado Novo, a amanga experiência eleitoral vivida pelos egressos do antigo Partido Republicano Paulista, em contraste com o retorno do ex-ditador ao poder, ilustra esse estado de coisas. Por isso mesmo, para muitos pesquisadores, os anos de 1950 constituem um momento de consolidação de uma prática política definida como "populismo": multiplicam-se os políticos que apelam para as classes urbanas, e não mais se consideram as elites como portadoras de um modelo a ser seguido.

No caminho de retorno de Getúlio Vargas existia, porém, um obstáculo: o exército. [...] os generais o haviam deposto em 1945. Seu retorno à presidência em 1951 implicava negociações. Essas, por sua vez, foram bem-sucedidas. Para muitos militares, Getúlio, por ser um político com forte apelo popular, servia como antídoto frente à expansão do comunismo. Em 1945, o PCB, apesar de legalizado às vésperas das eleições, conseguiu eleger 14 deputados e Luís Carlos Prestes, como senador; o que representava o voto de mais ou menos 12% do eleitorado brasileiro; sendo que em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, tal cifra pulava para 20%.

Nessa época, um impasse a respeito dos rumos que deveria tomar a sociedade brasileira dividia o exército. Até o início dos anos 1940, o debate a respeito do desenvolvimento nacional era dividido em duas correntes: uma, existente desde o início do século XX, defendia a "vocação agrícola" de nossa sociedade e a outra posicionava-se a favor da industrialização acelerada. Ora, durante o governo Dutra, a primeira posição perdeu o sentido, pois a maior parte da economia brasileira passou a girar em torno do desenvolvimento industrial.

Devido às transformações implementadas ao longo do primeiro governo de Getúlio Vargas, o modelo de industrialização deparava-se agora com sérias dificuldades. Não se tratava mais de simplesmente substituir os produtos de consumo importados por similares nacionais, mas sim incrementar um modelo de desenvolvimento industrial articulado. Em outras palavras, tratava-se de saber como seria possível produzir internamente automóveis, navios e maquinário ligado à mecânica pesada - bens que dependiam de capitais elevados e tecnologia avançada.

Frente a tais questões, surgiram profundas divisões no seio das elites brasileiras, incluindo aí aquelas pertencentes às forças armadas. De forma esquemática, é possível identificar os que, de um lado, defendiam o nacionalismo econômico e a intensiva participação do Estado no desenvolvimento industrial, ao passo que na posição oposta estavam os partidários de que o segundo ciclo de nossa industrialização deveria ser comandada exclusivamente pela iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros.

Embora não fosse frontalmente contrário aos investimentos internacionais, Getúlio era partidário da corrente nacionalista. Foi justamente com base nos segmentos do exército identificados a essa tendência que ele conseguiu apaziguar temporariamente os quartéis. No entanto, a trégua não durou muito. Dentre o grupo identificado ao segundo modelo de desenvolvimento industrial, havia uma parcela importante da elite civil, reunida em torno da UDN. De certa maneira, a fragilidade eleitoral desse grupo era compensada em razão do prestígio que contava junto a importantes segmentos das forças armadas.

As circunstâncias políticas internacionais em grande parte favoreciam a UDN. [...] durante a Segunda Guerra Mundial, em razão da luta contra o nazi-fascismo, houve uma aproximação entre os Estados Unidos e a União Soviética. O reflexo disso foi um certo declínio das posturas anti-comunistas por parte dos governos capitalistas aliados. No Brasil, houve inclusive a legalização do PCB, ainda que por um curto período. Porém, após a guerra, a posição norte-americana sofreu uma inflexão: o comunismo torna-se a principal ameaça. Razões para isso não faltavam. Por volta de 1950, o sistema comunista havia deixado de ser uma experiência isolada, sendo agora compartilhado por um número crescente de países do leste europeu, tais como a antiga Iugoslávia (1945), a Bulgária (1946), a Polônia (1947), a então Checoslováquia (1948), a Hungria (1949) e a extinta República Democrática Alemã Oriental (1949); assim como asiáticos, o Vietnã do Norte (1945), a Coréia do Norte (1948) e a China (1949).

O quadro mundial tornava-se ainda mais delicado em razão do desenvolvimento de armas atômicas. Em 1945, os Estados Unidos, nos ataques a Hiroshima e Nagasaki, haviam demonstrado as consequências desse poderio. Quatro anos mais tarde foi a vez da antiga União Soviética revelar ao mundo seu arsenal atômico, em testes feitos no deserto do Casquistão. Em um contexto como esse, um confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética colocaria em risco a sobrevivência do planeta. Essa situação levou à transferência dos conflitos para os países subordinados a cada uma dessas potências. Como seria de esperar, a nova política internacional concedia pouca autonomia às áreas de influência; atitude que implicava ver nas políticas nacionalistas dos países subordinados, ora - no caso do bloco soviético - uma guinada rumo ao capitalismo, ora - no caso do bloco norte-americano - um passo em direção ao comunismo.

No início dos anos de 1950, parte do exército brasileiro e a União Democrática Nacional, que na época de sua fundação chegou a contar com um pequeno agrupamento de socialistas - depois estabelecidos em partido próprio -, transitaram para posturas cada vez mais afinadas com o anticomunismo, acusando Getúlio de tramar novos golpes, agora com base nos setores nacionalistas e sindicais.

Dessa forma, a Guerra Fria que, inicialmente, contribuiu para o retorno do ex-ditador, visto como uma forma de contrabalançar a influência dos comunistas, tornou-se um elemento pouco favorável a sua continuidade no poder. Ciente dessa fragilidade, Vargas, bem a seu estilo, procura cooptar seus opositores. No exército, promove hierarquicamente, a partir de 1952, os grupos anti-nacionalistas. O mesmo é feito em relação aos políticos da UDN, a quem são oferecidas pastas ministeriais. A tentativa de cooptação estende-se ainda aos comunistas: em 1952, deixa de ser obrigatória a apresentação de atestado ideológico, dado pela polícia aos dirigentes sindicais.

Paralelamente a isso, é aprofundada a política econômica nacionalista, com a aprovação de leis de grande impacto junto à opinião pública, como as referentes à limitação de remessas de lucros de empresas estrangeiras ou à criação da Petrobrás, que passa a deter o monopólio da exploração do petróleo brasileiro. A ousadia do presidente não pára aí. Em 1953, Getúlio procura reforçar sua base popular, indicando um jovem político com amplo apoio sindical para ocupar o cargo de ministro do Trabalho. Seu nome: João Goulart.

O novo líder trabalhista não esconde a opção política, atendendo às reivindicações de reajustamento do salário mínimo, aumentando-o em 100%. A crise se instala. O exército, uma vez mais, é o porta-voz do descontentamento das elites. Em fevereiro de 1954 vem a público o Manifesto dos Generais. O texto é um exemplo do radicalismo comum ao período da Guerra Fria. Queixando-se de que o aumento não era extensivo às forças armadas, os oficiais aproveitam a ocasião para denunciar a ameaça da República Sindicalista, assim como a "infiltração de perniciosas ideologias antidemocráticas", ou, então, para alertar a respeito do "comunismo solerte sempre à espreita...", pronto para dominar o Brasil.

Em vez de cooptar as elites, Getúlio consegue assustá-las.

Diante da crise, Vargas afasta João Goulart do cargo, mas mantém o aumento. A UDN, através do seu mais radical líder, Carlos Lacerda, multiplica as acusações de corrupção, nepotismo e de uso de dinheiro público para promover jornais favoráveis ao governo. Por outro lado, o governo "acima dos partidos" acaba até mesmo por afastar os aliados tradicionais. Em junho de 1954, o congresso vota o impeachment de Getúlio Vargas. O pedido é rejeitado, mantêm-se, entretanto, fortíssimas pressões pela renúncia. Em agosto, um atentado a Carlos Lacerda, no qual estavam envolvidos elementos próximos a Vargas, sela definitivamente o destino do presidente. Um novo golpe militar é posto em marcha, mas acaba não dando certo. Vejamos por quê.

Fragmento da carta-testamento encontrada no arquivo particular de Getúlio Vargas, 1954

Se a simples renúncia ao posto a que fui levado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranquilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para com mais fúria perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não dos crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus. (D'ARAÚJO, Maria Celina (org.). As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: FGV/EdUerj, 1999. p. 161.)

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História da Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 332, 334-7.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Povos do mundo: América

Galeria 1 - Povos indígenas

[Índios pampas, Carlos Morel]

[Mulher e criança indígena Secotan, Carolina do Norte, John White]

[Mulher índia puebla, Irving E. Couse]

[Índios simulando búfalo, Frederic Remington]

[Arapahos, Alfred Jacob Miller]

[Uma índia puebla pintando potes, Henry François Farny]

[Tipis sioux, Karl Bodmer]

[Dividindo a propriedade do chefe, Joseph Henry Sharp]

[Água para o acampamento, Charles Marion Russell]

[Fundação da cidade do México, José María Jara]

[Índios Apiaká no rio Arinos, Hércules Florence]

Galeria 2 - Afro-americanos

[Vestido para o carnaval, Winstow Homer]

[As catadoras de algodão, Winstow Homer]

[Lição de banjo, Henry Ossawa Tanner]

[Domingo de manhã, Thomas Waterman Wood]

[O jogador de osso, William Sidney Mount]

[Domingo de manhã na Virgínia, Winslow Homer]

[Um enterro na plantação, John Antrobus]

[A lição de dança (Menino negro dançando), Thomas Eakins]

[A carroça de algodão, William Aiken Walker]

[General Juan Manuel de Rosas no candomblé, Martín Boneoan]

Galeria 3 - Mestiços


[Um homem mestiço e sua esposa índia, Miguel Cabrera]

[Mestiços, Peru, Artista desconhecido]

[Castas na América Colonial, Artista desconhecido]

[Redenção de Cam, Modesto Brocos. Avó negra, filha mulata, genro e neto brancos]

[Mulato, Albert Eckhout]