"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

As cidades gregas e a vida privada

Entre a esperança e o medo, Sir Lawrence Alma-Tadema

A cidade mais povoada, a maior, a mais rica é Atenas, complementada a 7 quilômetros de distância por outra cidade da Ática, o Pireu. A própria Atenas tem seu cinturão de muralhas; outra fortificação, que acaba por envolver toda a península de Acté, protege o Pireu: enfim, os “longos muros”, as “pernas”, unem as duas aglomerações e Atenas ao mar. Nenhuma outra cidade da época consagrou tantos esforços, tantos cuidados e recursos à ligação íntima de seus centros vitais e à sua defesa. Atenas conseguiu corrigir sua posição continental e transformar-se numa ilha, associando sua esquadra e seu exército mais intimamente do que em qualquer outra parte, a fim de garantir sua segurança: durante todo o período clássico, capitulará apenas uma vez, cedendo ao bloqueio e à fome, após a destruição de sua marinha. A própria grandeza dessa concepção defensiva proporciona-lhe o que falta à maioria das cidades, isto é, espaço no interior das muralhas, frequentemente acanhadas, devido à falta de dinheiro, a área indispensável ao conforto da população. Mas Atenas não soube aproveitar-se desse espaço.

Sem dúvida, não falta lugar no Pireu. A cidade é recente, construída em meados do século V a.C., segundo os princípios urbanísticos da época, à base de um plano geométrico. Costeia o único porto comercial da Ática e um dos três portos de guerra aparelhados com estaleiros e arsenais, em torno de Acté. Barracões, armazéns, escritórios de alfândega e de câmbio, a Bolsa encontram-se nas imediações dos cais, onde navios vindos de todos os portos do Mediterrâneo descarregam as mais variadas mercadorias. Para trás estende-se a cidade propriamente dita. A maior parte de sua população é constituída de estrangeiros de todas as nacionalidades, falando todas as línguas. Aí os marinheiros procuram e encontram os prazeres sonhados durante o isolamento e o perigo das travessias. Os habitantes vivem do porto, do tráfico de viajantes e de mercadorias. Mas as pessoas de bom-tom nunca se demoram aí por muito tempo: a multidão é muito cosmopolita; os assuntos de conversa e as preocupações giram em demasia em torno do dinheiro e do comércio. [...]

Não foi, portanto, na direção do Pireu e do mar, ao abrigo das novas fortificações onde subsistem muitos terrenos vagos, que a velha Atenas procurou estender-se. Seus subúrbios crescem principalmente para o norte, como que atraídos pela vida do campo, à qual tantos cidadãos permanecem presos por seu ideal, pelo parentesco e pelos interesses de proprietários territoriais. A cidade sufoca no espartilho de suas muralhas reconstruídas às pressas, imediatamente após as guerras médicas, antes da expansão de sua atividade política, econômica e intelectual: não se desenvolve, porém, no sentido em que sua verdadeira vocação parecia lançá-la.

Muito arcaica, não corresponde de maneira alguma à nossa concepção de uma grande urbe, apesar do esplendor dos monumentos da Acrópole e de alguns templos ou edifícios públicos construídos na cidade baixa: ruas estreitas, nas quais é proibido edificar balcões salientes, sem calçadas nem pavimentação ou esgotos, com um canal de escoamento feito de telhas no meio da rua; apenas uma grande fonte, construída pelos tiranos do século VI a.C., e numerosos poços, mas cujas águas deveriam ser bastante suspeitas; poucas praças públicas, a principal sendo a ágora ornamentada com plátanos. Ao seu redor encontra-se o mercado ou, antes, os mercados, visto tratar-se de ruas ou de conjuntos de ruas especializadas: bairro da alimentação, com subdivisões para cada categoria de produtos, desde a carne de burro até o peixe salgado; bairro dos cavalos e dos escravos; bairros da cerâmica, do vestuário e da sapataria [...].

Xenofonte fala de 10.000 casas no começo do século IV a.C. É demais para um espaço restrito, e jardins existem somente nos subúrbios, que se estendem além das portas da cidade, entre os túmulos dispostos ao longo das estradas; mas a boa sociedade só consente em habitar a cidade. Todas essas moradias, muito modestas, não têm, em geral, senão paredes de barro batido, pelas quais os ladrões facilmente abrem passagem. As primeiras residências com mais de um andar e erguidas com fins especulativos causam sensação no século IV a.C. O piso dos cômodos, quase sempre minúsculos, é de barro batido. Falta o mais rudimentar conforto. O problema das instalações sanitárias foi resolvido simplesmente porque nunca preocupou a ninguém.

A única superioridade das vivendas dos ricos reside nas suas maiores dimensões: os compartimentos, um pouco mais espaçosos, distribuem-se em volta de um pátio orlado de algumas colunas. O luxo surge apenas tardiamente, limitado às salas de recepção, cujo teto recebe lambris e cujas paredes são ornamentadas com tapeçarias e pinturas. [...] O mobiliário nunca é faustoso. [...]


Passatempo, John William Godward

Se uma casa atinge um mínimo de abastança, estabelece-se uma separação entre os cômodos reservados à vida estritamente familiar, domínio da mulher, e o andron ou setor dos homens.


Interior grego ou gineceu, Jean-León Gérôme

A mulher, que passa diretamente da casa de seu pai para a de seu marido, não sai. “O caráter desse sexo”, declara Péricles, a crermos em Tucídides, consiste em “obter, entre os homens, o mínimo possível de celebridade, tanto no bem como no mal”. Os deveres primordiais da esposa são: dirigir as questões internas da casa, zelar pelas vestes, ocupar-se dos filhos, sendo que os do sexo masculino escapam à sua autoridade ao atingir sete anos, e as meninas ficam-lhe submetidas até o casamento. [...] Na epopéia homérica, o poeta não hesitava em colocar a mãe Nausíaca na presidência dos banquetes em casa de Acínoo. Tal cena seria inadmissível na Grécia clássica. Percebemos, apenas, nas tragédias de Eurípedes, nas farsas de Aristófanes, em alguns debates filosóficos, que o progresso do individualismo principia a apresentar o problema da personalidade e da libertação da mulher. Mas trata-se de audácias ainda teóricas, cujos efeitos reais não se farão sentir antes do período seguinte.

Toda a vida externa, incluindo a compra de alimentos no mercado, depende do marido.

Sem dúvida, ele é legalmente o senhor em seu lar, mas na medida em que a preocupação com sua tranqüilidade não o faz ceder, como Sócrates, diante de uma esposa impertinente, de fala grossa. Pode repudiar sua mulher, sem precisar invocar motivos ou pretextos, sob a única condição de restituir-lhe o dote. Pode decidir “não criar” seus filhos, isto é, abandoná-los, “expô-los” na via pública nos primeiros dias de seu nascimento, prática seguida com grande freqüência, principalmente em relação às meninas, por razões econômicas, num país pobre, em que um forte crescimento demográfico seria uma catástrofe. A vida nestas moradas estreitas, em companhia de uma mulher cujo espírito, por falta de educação e de contatos sociais, é, em geral, inculto, não lhe proporciona grandes distrações. Passa, pois, boa parte do dia fora de casa, nos lugares públicos, onde encontra as pessoas de seu conhecimento, conversa, informa-se e estabelece amizades, por vezes mesmo relações mais íntimas.


Cena de simpósio: um jovem reclinado possui um aulos em uma mão e dá outro para uma dançarina.  c. 490-480 A.C. Brogos

Não faltam, na verdade, as cortesãs de todas as categorias. Algumas são ilustres, muito cultas. Tal é o caso da milésia Aspásia, a cuja inteligência Sócrates rendeu homenagem e que Péricles fez abertamente sua companheira, repudiando a esposa legítima [...].


Cena de pederastia: “erastes” (amante) tocando a genitália do “eromenos” (amado). Ca. 540 a.C. 
Foto: Haiduc

De mais a mais, o amor grego é também uma realidade resultante da camaradagem guerreira, do espetáculo quotidiano da nudez no ginásio, de um desejo – que não é totalmente impuro – de proteger e educar, por parte do “erasto”, de admirar e ser iniciado por parte do “erômeno”. Numa sociedade em que o ideal masculino é, graças aos lazeres, o de desenvolver as virtualidades individuais, de colocar corpo e espírito num equilíbrio harmonioso, de servir à pátria no conselho e no campo de batalha, numa sociedade em que os costumes, separando os sexos tanto quanto o permitem a necessidades materiais, levam os homens a frequentar apenas os homens e lhes dão o orgulho dos privilégios decorrentes de sua virilidade, a moral não pode coincidir com aquela que uma religião e costumes diferentes modelaram entre nós.


Cena de simpósio: mural da Tumba de Paestum

Os mais ricos prolongam essas relações externas, oferecendo banquetes em suas casas para os quais convidam seus amigos. No andron, onde se encontra o mais luxuoso mobiliário da casam o anfitrião, que não é assistido por sua mulher, manda servir aos seus companheiros de cenáculo político ou intelectual, de esporte ou de deboches, acepipes refinados e vinhos escolhidos. Reclinados sobre os leitos, servidos por escravos, distraídos por interlúdios de todo gênero e, principalmente, pelas tocadoras de flauta, de lira ou de cítara, cujo salário mínimo é fixado pela lei, os convivas conversam familiarmente até tarde da noite, ao sabor de sua fantasia. Na sua maioria essas reuniões vesperais degeneram, indubitavelmente, em repugnantes bebedeiras, das quais muitos não saem em boas condições. Mas nada nos impede de dar crédito, senão à autenticidade, pelo menos à verossimilhança eventual das narrativas de Xenofonte e de Platão, que colocam, no quadro jovial de um “banquete”, elevados debates sobre política, filosofia ou ciência, dos quais participa Sócrates, que se mostra, aliás, notavelmente resistente à embriaguez.


AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 199-204.  (História Geral das Civilizações, v. 2)

NOTA: O texto "As cidades gregas e a vida privada" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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