"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O Rio de Janeiro no século XIX

Vista panorâmica do Rio de Janeiro em 1889. Fotografia de Marc Ferrez

Sede da administração colonial desde 1763 e do império a partir de 1822, o Rio de Janeiro concentrava a maior parte do aparato político-administrativo do Brasil. Ao mesmo tempo, devido a sua situação geográfica, era o principal porto de exportação de café - posição que, no final do século, perderia para a cidade paulista de Santos.

Essas duas condições fizeram do Rio de Janeiro a primeira cidade brasileira que se modernizou durante o século XIX. [...]

O crescimento urbano e o progresso econômico mudavam, também, a estrutura social da cidade. A atividade comercial criava uma camada burguesa e pequeno-burguesa independente da velha oligarquia rural e impulsionava a burocracia administrativa. Dessa forma, à sombra do desenvolvimento econômico, vicejava uma nova classe média, cujos hábitos e preferências seguiam os figurinos de Paris.

Para atender a toda essa clientela, surgiram confeitarias, teatros, livrarias e sofisticadas lojas de artigos estrangeiros. Carl von Koseritz, viajante alemão que esteve no Rio de Janeiro em 1883, admirava-se com o luxo e a variedade das mercadorias importadas que se podiam comprar no magazine Notre Dame de Paris, na rua do Ouvidor, "a maior casa de negócios do Brasil e talvez da América do Sul", conforme escreveu. Suas vitrinas, seu sistema de atendimento, assemelhavam-se às grandes lojas francesas [...] descritas por Emile Zola [...]. O francês, aliás, era a língua oficial dos caixeiros e, ao terminar cada compra, o cliente ouvia sempre um sorridente "Passez à la caisse, s'il vous plait" ("passe no caixa, por favor").

Os hábitos igualmente se modificavam. As damas da sociedade, vestidas no rigor da moda parisiense, já podiam passear livremente (embora não desacompanhadas) e frequentar casas de chá. Os homens, de cartola e casaca, discutiam política e arte pelas ruas. Tipos sociais descritos por dramaturgos e romancistas da época - o burocrata, o militar, o comerciante, o poeta, a governanta francesa, o senador, o estudante e tantos outros - eram a expressão dessa sociedade refinada.

Poucos literatos, no entanto, deram-se ao trabalho de sair desse círculo elegante para descrever o modo de vida do carioca comum. Em cinquenta anos, a cidade quase triplicara sua população, passando de menos de 200.000 habitantes, no início do reinado de D. Pedro II, para 522.000 em 1890. Essa explosão demográfica trazia uma enorme carga de desemprego, criminalidade e rebaixamento nas condições de vida, higiene e saúde.

Vendedora de miudezas, cerca de 1899. Fotografia de Marc Ferrez

Moradia era o grande tormento das camadas pobres, ainda mais que a área disponível sempre foi relativamente pequena, pois a cidade ocupa uma estreita faixa de terra plana. O crescimento ocorria no eixo norte-sul, ficando a zona norte para os pobres e a zona sul para os ricos. São Sebastião, Tijuca, Laranjeiras e Rio Comprido transformavam-se em bairros elegantes, onde a nascente burguesia e os novos proprietários rurais, ligados à cafeicultura, construíam palacetes de estilo neoclássico. As camadas pobres concentravam-se na chamada Cidade Nova, que se estendia do campo de Santana a São Cristóvão.

Com o crescimento da população e a especulação imobiliária, os terrenos tornaram-se cada vez mais caros. Só a 'classe média' tinha condições de pagar o aluguel de uma casa; os pobres eram obrigados a viver amontoados e habitações coletivas de madeira ou alvenaria: os cortiços, cujas condições de higiene eram tão precárias que já no começo do século XX o cronista Luís Edmundo os classificou de 'pestilenciais'. Descritas por Aluísio de Azevedo no romance O Cortiço, tais habitações eram alugadas, rendendo enormes lucros a seus proprietários. Estes últimos, aliás, nem sempre eram comerciantes portugueses, como o personagem João Romão, criado por Azevedo; entre eles havia, também aristocratas e homens da corte: o conde D'Eu (genro de D. Pedro II), por exemplo, era dono de um imenso cortiço, conhecido como Cabeça-de-Porco, onde moravam mais de 4.000 pessoas.

Para os que não podiam pagar nem mesmo o aluguel de uma habitação coletiva, só restava subir os morros e construir barracos de madeira, dando origem às favelas. As primeiras apareceram logo após a Guerra do Paraguai, quando muitos escravos alforriados começaram a retornar dos campos de batalha. Marginalizados e sem recursos, alguns até mutilados, esses 'ex-voluntários da Pátria' não encontravam emprego e iam morar como podiam.

Vendedor de rua no Rio de Janeiro, sem data. Fotografia de Marc Ferrez

O Rio de Janeiro era, assim, uma cidade heterogênea, com mansões e palacetes ao lado de bairros miseráveis. Na rua do Ouvidor podiam-se encontrar as últimas novidades de Paris, mas a febre amarela e a varíola periodicamente dizimavam a população pobre. Uma aristocracia culta e exigente povoava os salões e os espetáculos de ópera, enquanto o desemprego empurrava milhares de pessoas para uma vida incerta de pequenos trabalhos avulsos, quando não para o baixo meretrício e a malandragem. Nos palacetes de Laranjeiras falava-se francês, nas grandes noites de gala, quando personagens como o conde D'Eu contavam suas façanhas na Guerra do Paraguai. Não longe dali, no entanto, em cortiços como o Cabeça-de-Porco, a fome e a miséria faziam estragos na população.

SAGA - A Grande História do Brasil. São Paulo: Abril, 1981. V. 4. p. 128-129.

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