Típico cortiço no Rio de Janeiro na época imperial
As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio. Por um lado, o próprio perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doença contagiosa: as classes perigosas continuariam a se reproduzir enquanto as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios de seus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosidade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema é geralmente apresentada como consistindo em duas etapas: mais imediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adultos; a mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores.
Por outro lado, os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais-médicos grassavam nessa época como miasmas na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a "realidade", faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que só a sua receita poderia salvar o paciente. E houve então o diagnóstico de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos.
Ao que parece, os administradores da Corte começaram a notar a existência de cortiços na cidade nos primeiros anos da década de 1850. Uma epidemia de febre amarela, em 1850, e outra de cólera, em 1855, elevaram bastante as taxas de mortalidade e colocaram na ordem do dia a questão da salubridade pública, em geral, e das condições higiênicas das habitações coletivas, em particular. Foi criada então a Junta Central de Higiene, órgão do governo imperial encarregado de zelar pelas questões de saúde pública, e a Câmara Municipal da Corte passou a discutir medidas destinadas a regulamentar a existência das habitações coletivas.
Em setembro de 1853, a comissão de posturas da Câmara analisou um projeto de "Regulamento dos Estalajadeiros", que lhe fora encaminhado pela Secretaria de Polícia. É lógico que a preocupação das autoridades policiais era "prevenir que pessoas suspeitas achem fácil abrigo nas casas a que ele se refere, mais ainda a evitar desordens, e outros crimes que por ventura possam ser cometidos. [...] Entre as medidas destinadas a facilitar a vigilância da polícia, havia a obrigatoriedade de o estalajadeiro possuir um livro de controle de entrada e saída de hóspedes ou moradores, e no qual estes estariam cuidadosamente identificados. Os subdelegados deveriam visitar frequentemente as habitações coletivas, certificando-se de que lá não se encontravam vadios, estrangeiros em situação irregular e pessoas "suspeitas", ou que causassem desconfianças e receios" - uma categoria tão abrangente e ambígua que era potencialmente útil contra quaisquer dos moradores de tais habitações.
[...]
É possível discernir com clareza o eixo fundamental de toda essa primeira década de discussão sobre os cortiços: era necessário melhorar as condições higiênicas das habitações coletivas existentes. Tratava-se primordialmente de uma preocupação com a qualidade da habitação popular, de legislar no sentido de obrigar os proprietários a construir residências que zelassem minimamente pela saúde dos moradores - deveria haver coleta regular de lixo, latrinas limpas e em número suficiente, calçamento, janelas amplas etc. A maneira de encarar o problema, todavia, iria mudar radicalmente nas décadas seguintes: na formulação de Maurício de Abreu, a ênfase deixaria de ser prioritariamente a forma, as condições da moradia, e passaria a ser o espaço, o local da habitação.
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O primeiro fruto da nova maneira de pensar a questão surgiu com a postura de 5 de dezembro de 1873: "Não serão mais permitidas as construções chamadas cortiços entre as praças D. Pedro II e Onze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas do Riachuelo e do Livramento". Em setembro de 1876, outra postura reforçaria a proibição, esclarecendo que a interdição à construção de 'cortiços' valia mesmo quando os proprietários insistissem em chamá-los "casinhas ou com nomes equivalentes". Estavam se engendrando os instrumentos legais para a guerra de extermínio contra os cortiços ou - o que dá quase no mesmo - para a política de expulsão das "classes pobres"/"classes perigosas" das áreas centrais da cidade.
CHALHOUB, Siddney. Cidade febril - Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 29-30, 33-4.
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