"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

"Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima..."

Os Mutantes na década de 70: Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias

[...] a arte e a cultura brasileira, a partir de 1964, foram marcadas por uma série de movimentos e contramovimentos, de marchas e contramarchas, de vanguardas que eram logo sucedidas por outras vanguardas. Isso foi uma consequência natural das mudanças que se operavam na sociedade.

A trilha que fora aberta pelo Centro Popular de Cultura da UNE teve muitos seguidores e, nos festivais de música, a canção de protesto extravasava a insatisfação da juventude; o cinema novo trazia à tela a miséria, coisa que inexistia nas "chanchadas" carnavalescas do período anterior, e, no teatro, se destacavam grupos como o Oficina e o Arena, preocupados em encenar os novos autores nacionais.

1968 foi, sob todos os aspectos, marcante. Culturalmente, foi nesse ano que explodiu um movimento partindo da música popular, mas que tinha suas origens no cinema, no teatro e nas artes plásticas: o tropicalismo. As figuras de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, José Carlos Capinam e outros, inspirados em todo esse clima neo-antropofágico (retomada das lições do modernista Oswald de Andrade), assumiram logo a liderança da corrente tropicalista, promovendo uma fusão dos elementos renovadores da bossa nova e da canção de protesto com os conteúdos tidos como de "mau gosto" da cultura brasileira tradicional e incorporando os elementos universais da cultura de massa:

"Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crises
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
[...]"
(Alegria, Alegria, de Caetano Veloso)

Por outro lado, as vanguardas "literárias" propriamente ditas chegavam ao extremo de pregar a abolição da palavra, com o poema-processo. Parecia estar-se chegando a um impasse. Enquanto os intelectuais se pretendiam "populares", os meios de difusão de massa, especialmente a televisão, manipulavam o gosto do público e promoviam um tipo de cultura baseado em filmes seriados importados dos Estados Unidos e em programas musicais que decalcavam um tipo de comportamento próprio de uma juventude de países desenvolvidos - o iê-iê-iê, a chamada pop music.

Foi em meio a esse clima cultural - que o teórico canadense Mac Luhan chamou de "aldeia global" - que sobreveio o fato político do Ato Institucional nº 5. As suas consequências marcaram profundamente a fisionomia cultural do Brasil. Primeiramente, houve uma "diáspora" dos nossos artistas e intelectuais (não só muitos deles exilados mas também dispersos em suas próprias propostas criadoras), que passaram por um período de hibernação que só há poucos anos começou a ser rompida. Nossa produção artística entrou numa fase (novamente) escapista: peças de teatro faziam alegorias tão rebuscadas que nem seus próprios autores as entendiam; letras de musicais enveredavam pela pura metáfora ("a calma dos lagos azuis zangou-se e a rosa-dos-ventos danou-se", cantou Chico Buarque de Hollanda); o cinema novo, estrangulado pela censura vigente, morria à míngua, enquanto passava a imperar a pornochanchada.

Os anos do governo do general Médici corresponderam, no campo da criação artística, a uma fase de pouca ou nenhuma renovação. As restrições às manifestações de arte e até mesmo à informação jornalística dificultavam enormemente a expressão. Por outro lado, predominavam músicas ufanísticas (que procuravam divulgar uma imagem de felicidade e euforia) e filmes históricos patrocinados pelo governo.

A gradativa liberação da censura, nos últimos anos do regime militar, permitiu ao menos o levantamento de uma parte do véu que cobria nossas manifestações culturais mais autênticas. Assistimos, então, a um novo surto de criação artística na literatura (compromissada com a problemática social) em que as discussões sobre "vanguardas" ou "não-vanguardas" já não tinham muita razão de ser. A imprensa-alternativa (ou "nanica") começava a ganhar força, com publicações que, através do humor e/ou da denúncia, mostram a cara do Brasil de hoje, além de abrirem campo aos escritores e artistas novos. O cinema, já esgotada a fase da pornochanchada, reencontrava seus caminhos com filmes que conseguem ao mesmo tempo mostrar a nossa realidade e atingir o grande público como: O Rei da Noite; Xica da Silva; Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia; A Queda; Chuvas de Verão; Raoni; Gaijin; Barra Pesada; Pixote, a Lei do Mais Fraco; Bye Bye Brasil; O Homem que Virou Suco; Eles não usam black-tie, entre outros. A música popular abria-se a todas as tendências, incorporando e revalorizando os compositores tradicionais como Nélson Cavaquinho, Adoniram Barbosa e Cartola (falecido em 1980):

"Bate outra vez
Com a esperança o meu coração
Pois já vai terminando o verão, enfim...
[...]"
(As Rosas não Falam, de Cartola)

Também neste período, sobretudo na década de 1970, a juventude passou a buscar novas maneiras de veicular sua produção. Surgiu a chamada "geração mimeógrafo", jovens poetas e contistas produzindo e vendendo suas próprias obras, furando o bloqueio das grandes editoras. Na música, revalorizou-se um gênero tradicional como o chorinho e multiplicaram-se os grupos jovens, superando-se a fase em que imperava o iê-iê-iê. Criou-se uma nova forma de fazer cinema, com as máquinas Super-8.

Tudo isso - essa forma "marginal" que as camadas médias intelectuais passaram a utilizar para fazer arte - tinha sua contrapartida em fenômenos também recentes, no que se refere à cultura popular: o do futebol e o das escolas de samba. Estas duas formas de manifestação cultural tinham, cada vez mais, perdido suas raízes autenticamente populares e sido incorporadas a esquemas "industriais" de produção, através do controle financeiro dos grandes clubes e federações esportivas, no caso do futebol, e do controle por contraventores, no caso das escolas de samba. Apesar disso, tanto uma como as outras não deixam de ser elementos importantes de manifestação cultural das camadas populares brasileiras.

A cultura nacional, enfim, procurava se afirmar, no meio de todas essas influências e contra-influências. Podia, às vezes, cair um pouco, diante de golpes mais fortes. Mas, como diz aquele samba, "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima..."

ALENCAR, Chico et alli. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 412-414.

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