"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 3 de maio de 2015

Averróis: Ponte entre culturas

Debate imaginário entre Averróis e Porfirio. Ilustração. Manfredo de Monte Imperiati, Liber de Herbis, séc. XIV.

Seu nome é citado com frequência quando se defende a ideia, absolutamente moderna, de um "Islã das Luzes". A exemplo de Avicena (980-1037), ele encarna a imagem do sábio árabe, tolerante e aberto às trocas culturais, em contraste com aquela de uma expansão muçulmana guerreira e fanatizada. Se a sua notoriedade ultrapassa a de seu equivalente persa na Europa é porque ele contribuiu para a afirmação intelectual do Ocidente cristão.

Filósofo, teólogo, jurista, matemático e médico, Averróis (nome latinizado de Abu al-Wald Ibn Ruchd) nasceu em 1126, em Córdoba. Ele descendia de uma família de juristas que ocupavam a função de cadi, quer dizer, de juiz de paz e de notário. Seu avô tornou-se célebre por importantes trabalhos sobre a jurisprudência islâmica. A juventude de Averróis foi marcada pelo estudo rigoroso do Corão, ao qual se acrescentaram diferentes ciências, entre as quais a medicina, que ele exerceria paralelamente a seu cargo de cadi. Ele interessou-se igualmente pelo saber dos antigos. Abu Yaquib Yusuf, o segundo califa da dinastia dos almóadas (do Marrocos), encomendou-lhe um estudo das obras de Aristóteles. Como não dominava o grego, Averróis trabalhou com traduções que comparou exaustivamente, com o intuito de obter a fonte mais autêntica. Seus comentários de Aristóteles forjaram seu renome, que ultrapassou as fronteiras da Espanha muçulmana (Djazirat al-Andaluz) depois da sua morte. Eles atingiram a Universidade de Paris, onde foram debatidos com ardor. Falou-se até mesmo em uma "querela de Aristóteles", tão áspero foi o debate entre os partidários de Averróis e seus adversários. Tratava-se de determinar se a faculdade de pensar no homem era algo individual ou, como sugeria o andaluz, o reflexo de uma lógica universal. Refutando metodicamente os argumentos de Averróis, Tomás de Aquino lançou-se na batalha metafísica e, aos olhos da Santa Sé, levou a melhor. A partir desse momento, foi o pensamento tomista que animou a doutrina da Igreja.

Em cada um dos três monoteísmos em plena efervescência intelectual no século XIII, distingue-se uma grande figura: santo Tomás de Aquino (1228-1274) para o cristianismo, Moisés Maimônides (1135-1204) para o judaísmo e Averróis para o Islã. Entre todos os teólogos muçulmanos desse período, foi ele o que mais se dedicou a integrar a razão à religião, numa busca de equilíbrio entre o poder espiritual e o poder temporal. Ele distingue a verdade revelada e aquela que se pode atingir por meio da razão. Mas não para opor uma à outra e, sim, uni-las numa busca pela verdade. Em seu Discurso decisivo, ele chega a atribuir um papel indispensável nesse processo ao filósofo, mas reconhece seu caráter elitista.

Evoca-se Averróis para reavivar as cores do brasão do Islã em uma hora na qual as questões de identidade nacional, de laicidade e de integração se tornam outra vez temas ardentes. Sua obra ergue-se como um baluarte contra os fanáticos e abre uma porta ao diálogo entre religiões. Uma árvore que esconde a floresta? Os últimos anos do sábio mostram o quanto seria absurdo idealizar a idade de ouro de al-Andaluz. Se manteve boas relações com Abu Yaquib Yusuf, soberano apaixonado pela cultura, Averróis teve sérias diferenças com seu filho e sucessor, que adotou o integrismo - tendência que põe os princípios religiosos como modelo de vida política e fonte das leis do Estado - e chegou a proibir a filosofia. Ele foi condenado ao exílio em 1197, e seus livros queimados em praça pública. Colocada sob suspeita de heresia, sua obra encontrou melhor ressonância no mundo cristão. Os humanistas do Renascimento, tais como Giovanni Pico della Mirandola, lhe asseguraram um lugar no panteão dos pesquisadores da verdade, ainda que o pensador andaluz fosse condenado pelo papa em 1513.

Averróis continua a alimentar ardentes debates. Em 2008, sua influência esteve no cerne da polêmica suscitada pelo livro de Sylvain Gouguenheim, Aristote au mont Saint-Michel, que discute a forma como a cultura grega se transmitiu ao Ocidente, combatendo a tese da centralidade do papel do Islã nesse processo. A questão posta então era a seguinte: celebrar o papel de Averróis e Avicena significa admitir uma influência do Islã na matriz heleno-cristã que foi transmitida à Europa? É uma questão bastante atual diante dos conflitos políticos e culturais com que nos defrontamos.

Vincent Mottez. Ilustre desconhecido. Averróis. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 127. p. 62-63.

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