"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Brasil dos imigrantes

Navio de Emigrantes, Lasar Segall

Eis um país forjado por exilados. Foram, de fato, "povos transplantados" - para usar a expressão de Darcy Ribeiro - aqueles que construíram esta nação. Após quase 30 anos de abandono, apenas em 1532, com a criação das capitanias hereditárias, Portugal começou a fincar as raízes da primeira civilização europeia a se estabelecer nos trópicos - região que os próprios europeus imaginavam, e até descreviam, ora como paraíso ora como inferno. Massacrados os indígenas, miscigenados os portugueses, procriados os mamelucos e cafuzos, o país seria erguido pelo braço escravo: cerca de 4,5 milhões de negros foram trazidos da África para o Brasil ao longo de quatro séculos de tráfico. Com o fim da escravatura - ou, pouco antes, com a efervescência da campanha abolicionista - o país deu início a "importação em massa" de imigrantes europeus.


Emigrantes III, Lasar Segall

De 1886 a 1914, quase três milhões de estrangeiros vieram para o Brasil na tentativa de "fazer a América": foram, mais exatamente, 2,71 milhões os imigrantes que chegaram ao país em 28 anos. Eles fizeram do Brasil uma das três nações do mundo que mais se abriram para o fluxo migratório - EUA e Canadá são as outras duas. As causas dessa vertiginosa transmigração de povos são várias e suas consequências, duradouras e complexas. Embora seja, em seu fundamento, uma nação luso-africana, o Brasil se tornaria também, em especial no Sul, um país altamente europeizado. Imigrantes japoneses, árabes e judeus viriam a seguir, dando uma contribuição igualmente notável.


Tarantella, Henrique Bernardelli

O caldeirão de raças forjou uma nova nação. Mas não foi um processo tranquilo e orgânico. Pelo contrário: os conflitos inerentes da adaptação desses povos ao "novo mundo dos trópicos" acabaram por constituir a própria alma do Brasil. "A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, senão adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. [...] O certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem", anotou Sérgio Buarque de Hollanda na abertura de seu clássico Raízes do Brasil.

No cafezal, Georgina de Albuquerque

Depois de portugueses e africanos, foram os italianos aqueles que chegaram em maior número ao Brasil: 1,6 milhão em mais de cem anos (921 mil apenas entre 1886 e 1900). O segundo maior contingente de imigrantes veio da Espanha: 694 mil em um século. Os alemães vêm a seguir, com 250 mil. Os japoneses ocupam o quarto lugar, com 229 mil imigrantes. Esses povos não modificaram apenas os hábitos, a língua, as formas de pensar, de agir e de se alimentar: mudaram a própria imagem que o país fazia de si mesmo. E, se não puderam mudar "o clima", transformaram profundamente "a paisagem": especialmente no Sul, o "imperialismo ecológico" dos "povos transplantados" fez brotar um Brasil europeizado, com outras árvores, outros animais, outras raízes. E, é claro, outras gentes: afinal, se na planície litorânea os povos Tupi foram massacrados para dar lugar aos colonos lusitanos, nas serranias do Sul, os Kaingang seriam exterminados para "liberar" a terra para os imigrantes teuto-italianos. No caldeirão brasileiro, algumas raças são mais iguais que outras.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2003. p. 264.

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