"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 15 de setembro de 2012

Das trilhas às autoestradas: a humanidade construída sobre primórdios humildes

Presente passado: caçadores bosquímanos

Os primeiros seres humanos eram caçadores. Deve haver alguma chance de que você ainda viva desta forma - gastando  todo seu tempo e toda sua energia tentando obter comida a partir da natureza ao seu redor. Mas eu duvido muito. Em vez disso, você é estudante, funcionário de um escritório, construtor de casas, instalador de TV a cabo, ou desempenha uma dentre as milhares de tarefas imaginadas pela humanidade. Você utiliza ferramentas como telefones celulares e computadores portáteis - coisas com as quais as pessoas nem sonhavam quando eu nasci, em meados do século XX, que dirá no início da civilização. Mesmo assim, aqui estou eu, digitando em um teclado de computador, verificando meus investimentos online e ouvindo meu iPod, como qualquer ser humano moderno. E, de certa forma, aqui também estão as pessoas de 30 mil anos atrás, os meus ancestrais e os seus.

Eles devem ter se preocupado bastante com raízes comestíveis, frutas silvestres, sementes,, provavelmente insetos e lagartas, mariscos da estação, carne quando havia disponível e tutano rico em calorias das caças frescas ou encontradas. Eles literalmente precisavam se sacrificar para obter o que necessitam para sobreviver. Nas áreas de clima quente, onde os primeiros membros da espécie viviam, a sobrevivência pode não ter sido terrivelmente difícil. Eles possuíam o mesmo equipamento mental de que dispomos hoje. Tinham o cérebro grande, animais que usavam ferramentas e, após dezenas de milhares de anos vivendo do que encontravam para matar, alguns deles decidiram que devia haver outro jeito.

Impelidos pelas circunstâncias (mudança do clima, por exemplo) ou, de alguma forma, inspirados pelos pensamento de novas possibilidades, eles partiram das florestas, savanas e dos litorais da África para enfrentar os desafios de praticamente todos os ambientes da Terra - montanhas, desertos, estepes congeladas e ilhas remotas. Chegou um momento em que eles trocaram as pontas de pedra de suas lanças por ferramentas e armas feitas de cobre, depois de bronze, depois de ferro... e, por último, objetos como microcircuitos e sondas da NASA em Marte. Essas pessoas viajaram, se adaptaram e inovaram até chegar ao presente. Essas pessoas somos você e eu. De um jeito estranho, o depois é o agora.

Em algum ponto há aproximadamente 10 mil anos, não muito tempo depois do término da última Era do Gelo, algumas pessoas, cuja tecnologia ainda era amplamente composta por paus e pedras, se assentaram. Elas descobriram que, se colocassem sementes no chão, as plantas cresceriam. Era muito melhor do que sair por aí procurando as plantas. Esta percepção deu início à agricultura.

Os historiadores apontam para uma área que chamam de Crescente Fértil como o berço da agricultura. Com o formato parecido com o de um croissant mordido, o Crescente Fértil se estendia do que atualmente é o oeste do Irã, passando pelo oeste da Turquia, e também ao sul, ao longo da costa mediterrânea e do Rio Jordão, pelos territórios da Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina, chegando ao norte da África e ao Vale do Nilo, no Egito. Em minha analogia do croissant mordido, o leste do Mediterrâneo é a parte faltante.

O crescente também é o local onde os arqueólogos encontraram algumas das cidades mais antigas do mundo. O mantra dos primórdios da civilização é mais ou menos assim: a agricultura significa uma fonte de comida confiável. Muita comida também traz a comodidade das trocas à população. As trocas levaram a mais trocas, o que levou a mais mercadorias e riqueza. Nem todos precisam trabalhar nos campos. Algumas pessoas se especializam no envio de mercadorias, por exemplo. Outros podem se especializar na construção - sejam eles trabalhadores pagos ou escravos - ou talvez se concentrem no uso de armas, seja para proteger sua própria riqueza, seja para roubar a riqueza alheia. Os artesãos criam joias e transformam objetos mundanos (armas, potes e cestas) em afirmações estéticas. A sociedade recebe mais camadas. Os prédios crescem. As cidades surgem. As trocas precisam manter um registro de quantidades e valores, o que exige um meio para registrar as informações. Diversos sistemas são inventados. Surge a escrita. Livros são escritos. Ideias surgem. Há mais trocas, surgem as influências interculturais, e assim por diante.

Em seguida, uma mulher que fala inglês em Los Angeles, cujos ancestrais falavam espanhol, celta e japonês, está sentada em seu carro sul-coreano, presa no trânsito da autoestrada, um estilo de estrada de acesso limitado inventado na Alemanha. Ela bebe café colhido em El Salvador, preparado no estilo italiano em uma máquina fabricada na China com especificações da Suíça. 

No rádio por satélite do carro, uma voz que vem de Toronto está apresentando as notícias de repórteres da Índia, Afeganistão e Ucrânia. Ela estica o braço e troca para uma estação que toca um estilo de música inventado na Jamaica, por pessoas que falam inglês, mas são descendentes de africanos.

HAUGEN, Peter. História do mundo para leigos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2011. p. 13-15.

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