"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Independências na América hispânica: liberdade para quê?

O libertador Simón Bolívar em traje de campanha, Arturo Michelena

Os homens que, descontentes com o sistema colonial, lideraram o processo de independência política estavam imbuídos das ideias liberais burguesas "descobertas" nos estudos realizados na Europa ou em livros dos "franceses" entrados clandestinamente no continente. Julgavam-se absolutamente bem preparados para alcançar seus objetivos e acreditavam esperançosamente no futuro. As ideias de liberdade, de igualdade jurídica, da legitimidade da propriedade privada, da educação como remédio para os grandes males, da necessidade do império da lei, do progresso e da felicidade geral do povo estavam todas presentes nos projetos desses líderes liberais.

Na América espanhola, homens como Bolívar, San Martín, Mariano Moreno, Bernardo de Monteagudo, José Cecílio del Valle e frei Tereza Servando de Miler apontavam oposições bastante claras. O mundo novo que surgia era para eles o lugar da liberdade, que se opunha à Espanha, reino do despotismo, da opressão e do arbítrio. A América era o espaço do novo, da esperança, do futuro.


Batalha de Rancagua em 1814, Giulio Nanetti

Entre os anos de 1810 e 1820 os objetivos fundamentais da luta desses grupos eram os mesmos e o inimigo comum era a Espanha. Todos os esforços concentravam-se para acabar com o domínio da Espanha e a tônica dos discursos era a liberdade.

Liberdade, entretanto, não é um conceito entendido de forma única; tem significados diversos, apropriados também de formas particulares pelos diversos segmentos da sociedade. Para Simón Bolívar, um representante das classes proprietárias venezuelanas, liberdade era sinônimo de rompimento com a Espanha, para a criação de fulgurantes nações livres, que seriam exemplos para o resto do universo. Mas principalmente nações livres para comerciar com todos os países, livres para produzir - única possibilidade, segundo sua visão, do desabrochar do Novo Mundo.


Encontro de San Martín e Belgrano em Posta de Yatasto, Augusto Ballerini

Já para Dessalines, um dos líderes da revolução escrava do Haiti, que alcançou a independência da França em 1804, liberdade queria dizer antes de tudo o fim da escravidão; mas carregava também um conteúdo radical de ódio aos opressores franceses. Seu discurso manifestava esses sentimentos. Dizia Dessalines ao povo do Haiti:


Generais intrépidos, que insensíveis às próprias desgraças haveis restaurado a liberdade prodigando-lhes todo vosso sangue, saibam que nada haveis feito se não derdes às nações um exemplo terrível, mas justo, da vingança que deve exercer um povo orgulhoso de ter recobrado sua liberdade e zeloso de mantê-la; amedrontemos os que tentam nos arrebatá-la: comecemos pelos franceses [...] Que tremam ao abordar nossas costas, se não pela lembrança das crueldades que eles exerceram, ao menos pela nossa terrível resolução de condenar à morte todo francês que ouse pisar com seus pés sacrílegos o território da liberdade.


Dessalines, Artista desconhecido

Para outros dominados e oprimidos, como os índios mexicanos, a liberdade passava distante da Espanha e muito próxima da questão da terra. Na década de 1810, Hidalgo e Morelos, os líderes da rebelião camponesa mexicana, curas pobres de pequenos povoados, clamavam por terra para os deserdados. Seus exércitos, que levavam à frente os estandartes da Virgem de Guadalupe e do rei espanhol Fernando VII, lutavam para que a terra, inclusive a da Igreja, fosse dividida entre os pobres. Morelos afirmava que os inimigos da nação eram os ricos, os nobres, os altos funcionários. Determinou que, quando se ocupasse uma povoação grande ou pequena, devia-se informar sobre os ricos, os nobres e os funcionários que nela houvesse "para despojá-los no momento de todo o dinheiro e bens raízes ou móveis que tenham, para repartir a metade de seu produto entre os vizinhos pobres do mesmo povoado [...] reservando a outra metade para a caixa militar". Hidalgo, em dezembro de 1810, decretava, nas terras livres do jugo espanhol, a abolição da escravidão e do tributo indígena e determinava que essa disposição fosse cumprida em dez dias, sob pena de morte para os infratores.


Hidalgo, Antonio Fabres

Mas no oceano das propostas político-ideológicas patrocinadas pelos diversos setores das classes proprietárias, poucas são as manifestações concretas que nos chegam por parte dos dominados. No México, o Acordo de Iguala, estabelecido entre Itúrbide, general repressor dos exércitos camponeses recém-convertido à causa da independência, e Guerrero, líder remanescente dos grupos guerrilheiros e populares, marcava a submissão do segundo ao primeiro: independência política agora, reformas sociais depois.


Proclamação e juramento da Independência do Chile em 1818, Pedro Subercaseaux

A independência se fez em nome das ideias liberais, justificando os interesses dos setores dominantes criollos que mantiveram a direção política do processo na América espanhola. Caíam os monopólios reais, abriam-se as linhas de comércio, a economia devia se reger sem a intervenção da antiga metrópole. Algumas concessões aos dominados também foram aceitas, mesmo no período de luta: Bolívar, por exemplo, acedeu em oferecer alforria aos escravos que se ligassem aos exércitos patrióticos.

O Estado, que começava a se organizar depois de atingida a independência, assumiu como tarefa destruir a velha ordem colonial. Em primeiro lugar, tendo em vista os interesses criollos dominantes e também as pressões dos comerciantes ingleses, havia de derrubar todo o regime de monopólios, privilégios e restrições ao comércio e outros ramos da produção em geral. Essa foi uma iniciativa realizada com êxito, ainda que isso não tenha significado, como esperavam os criollos, um grande crescimento econômico imediato.


Francisco de Miranda, Martin Tovar y Tovar

Outro objetivo do Estado que surgia era a destruição dos foros especiais do Exército e da Igreja. Essa luta desenvolveu-se com muitas particularidades nacionais, sendo a mais encarniçada aquela desencadeada contra a Igreja e que em alguns países cindiu a sociedade entre defensores e acusadores da instituição toda-poderosa. Essa luta terminou, em geral, já no fim do século - em alguns países no século XX -, com a separação total entre o Estado e a Igreja e com a subordinação desta ao poder maior do Estado laico.

Os privilégios dos espanhóis foram, na verdade, rapidamente suplantados nessa batalha, já que terminaram por perder seus favores políticos e econômicos, chegando mesmo a ser expulsos de alguns países.

Esse Estado esteve sempre preocupado com a manutenção da ordem social; os setores mesmo divergentes das classes dirigentes sempre se aliaram, sustentando o Estado, em momentos em que a ordem instituída foi ameaçada pelos de abajo. As constantes revoltas de índios, de camponeses e de escravos contribuíram para o fechamento autoritário do Estado. Entretanto, algumas concessões foram feitas. Aboliu-se o tributo indígena e acabaram-se, ou melhor, aplainaram-se as distinções de castas. A escravidão negra foi abolida, mais cedo ou mais tarde, nos países independentes, tendo permanecido apenas (além do Brasil) nas ilhas de Cuba e Porto Rico, ainda sob o domínio espanhol.

PRADO, Maria Ligia. A formação das nações latino-americanas. São Paulo: Atual, 2008. p. 13-8. (Discutindo a história)

Nenhum comentário:

Postar um comentário