"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 2 de julho de 2011

A vida nos cortiços: o difícil cotidiano dos imigrantes pobres

Cortiço na Rua dos Inválidos no final do século XIX: condições de vida totalmente insalubres


"A cidade de São Paulo, especificamente, caracterizou-se por um modo de vida marcado pela precariedade e rudeza até a chegada das primeiras levas de imigrantes, por volta da década iniciada em 1860. A pobreza da arquitetura paulista, no âmbito de um quadro de isolamento do planalto, foi realçada por Carlos Lemos, revelando condições que, se não impossibilitavam a constituição de uma vida privada, limitavam-na consideravelmente. Vale a pena reproduzir seus traços gerais, na descrição de Lemos:

'A vida cotidiana nas casas paulistanas logo anteriores à vinda dos imigrantes ainda apresentava o ranço colonial. Dentro das velhíssimas taipas, as famílias circulavam na semiobscuridade dos cômodos mal iluminados que a terra socada das paredes permitia, tendo como centro de confraternização geral a varanda. Essa varanda, quase sempre, era o cômodo mais arejado da casa; era onde todos ficavam, principalmente depois das refeições, e muitas delas, em especial no interior, de clima quente, não passavam de um profundo alpendre todo aberto e contíguo à cozinha, olhando para o quintal, onde ficava a casinha ou secreta, onde se obrava em cima de um buraco que chamavam de sumidouro'.

Por volta de 1860, ainda segundo Lemos, surgiram as primeiras novidades, inclusive nas construções e nos critérios de planejamento das casas. Imigrantes alemães foram pioneiros no uso de tijolos nas construções em geral, começando assim a superar a taipa de pilão.

Entretanto, a forma inicial de moradia do imigrante pobre, no período da imigração em massa, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, era extremamente precária. A pobreza não permitia outra coisa senão viver em cortiço - essa senzala urbana, na feliz expressão de Lemos. O cortiço permitiu utilizar terrenos de pouco valor, geralmente situados nas várzeas, que ficavam inundadas durante as chuvas de verão; adensou também a população trabalhadora perto de seus locais de trabalho, e foi um bom negócio para os empreendedores capitalistas que começavam a se expandir.

A promiscuidade reinante no interior dos cortiços impedia que o imigrante pobre, recém-chegado, estabelecesse uma esfera de vida privada. Entre as descrições existentes, seleciono um minucioso relato em que despontam a precariedade das condições de vida em geral, a extrema pobreza de certas pessoas e, ao mesmo tempo, a proximidade estratégica de alguns negócios.

'O cortiço em que morávamos era na Rua do Carmo, entre a Ladeira do Carmo de um lado e o palácio do Bispo do outro. Os fundos do cortiço davam para a Rua 25 de Março, onde, naquele tempo, se encontrava o mercado de verduras, de miúdos e de peixe. Dos dois lados da entrada principal, havia três negócios, à esquerda de quem entrava, um carpinteiro, à direita, a barbearia de um tio meu e, pegado, a cantina de outro tio. Da entrada partia um corredor para o qual davam alguns quartos; em cada quarto morava uma família; o quarto era muitas vezes dividido por uma cortina que separava os homens das mulheres da família. O corredor levava a um quarto, o maior da casa, em que cada qual tinha o seu fogareiro e onde havia um lavatório de uso comum, tanto para a limpeza pessoal como para a cozinha. As mulheres cozinhavam nesse aposento, mas cada família comia no seu próprio quarto. As condições higiênicas eram péssimas: usavam-se vasos cujo conteúdo era despejado num gabinete sanitário construído no quintal. Tomar um banho era difícil, porque todos tinham de se arrumar para tomá-lo no quarto. Os meninos usavam o quintal onde havia um tanque para lavar a roupa e um forno. As mulheres combinavam o dia de acender o forno, de modo a aproveitá-lo para fazer pão todas juntas. Chegavam [os imigrantes] com a roupa do corpo, pois não possuíam outra bagagem. Alguns dormiam no chão, sobre jornais, outros investiam o pouco dinheiro que tinham na compra de uma cama. Às vezes alguns dormiam até no quintal, protegendo-se da chuva como podiam'."

NOVAIS, Fernando A.; SCHWARCZ, Lilian Moritz (Orgs.). História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 38-39.

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