"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 12 de julho de 2011

As sociedades da África negra até o século XVI

Sob a acácia, Kelvin Malack.
Foto: Todd Schaffer

"Ainda o meu canto dolente / e a minha tristeza / no Congo, na Geórgia, no Amazonas / Ainda / o meu sonho de batuque em noites de luar [...] Ainda o meu espírito / ainda o quissange / a marimba / a viola / o saxofone / ainda os meus ritmos de ritual orgíaco [...] E nas senzalas / nas casas / nos subúrbios das cidades / para lá das linhas / nos recantos escuros das casas ricas / onde os negros murmuram ainda / O meu desejo / transformado em força / inspirando as consciências desesperadas." 
["Aspiração", Agostinho Neto - Poemas de Angola] 

[A África foi o berço do homem] Para nós, que desconhecemos a história da África, é surpreendente que os cientistas atuais a considerem o berço da humanidade. O desconhecimento de uma terra, de seus homens, costumes e feitos, cria em nós um clima de mistério, de distância, mesmo quando se trata da África, de onde veio grande parte de nossa população passada, através do tráfico de escravos.

Por que desconhecemos ainda hoje a história da África?

Isso se deve, em grande parte, ao fato de nunca termos lido os livros dos historiadores e cronistas africanos. Ainda hoje recebemos muitas informações através dos europeus que nos colonizaram, e que, por isso mesmo, sempre fizeram da Europa o centro do mundo.

Durante muitos anos os europeus dominaram a África, praticando o colonialismo. Um colonialismo diferente do que praticaram nas Américas, mas igual num ponto essencial: dominaram imensas regiões, mudando o curso de sua história, impondo uma nova forma de vida e tentando mesmo eliminar as culturas dos povos africanos.

Era preciso justificar essa dominação, e assim os europeus procuraram apresentar a África como um continente sem “História”, sem civilização”, habitado por “selvagens”.

[...]

Na África a história começou muito mais cedo do que em qualquer outra parte do mundo.


Família Masai: três adultos e duas crianças. Moses Wanyuk. 
Foto: Todd Schaffer

[A África nunca esteve isolada] [...] Através de toda a sua história, e apesar das muitas dificuldades de comunicação, os africanos mantiveram contatos com os seus vizinhos da Europa e da Ásia.

Há quatro mil anos, a região do Saara, então fértil e habitada por agricultores e pastores, tornou-se, pouco a pouco, desértica, dividindo  a África em  duas partes: a África do Norte, povoada por berberes e, mais tarde também por árabes, e a África Sul-saariana, vulgarmente chamada de África Negra.

[...]

A África do Norte foi sempre mais conhecida dos europeus. Eles não só estabeleciam contatos com as sociedades dessa região, como delas recebiam importantíssimas influências, como foi o caso do Império egípcio, de Cartago e do reino do Marrocos. Foi desse reino que partiram expedições de africanos árabo-berberes, que invadiram e colonizaram, por mais de cinco séculos, parte da Europa, especialmente a península Ibérica.


Núbios levam tributos ao faraó. Pintura mural em tumba egípcia.

Até o século XV, época da expansão europeia, muitas sociedades da África Negra comerciavam com a Europa, através de mercadores árabo-berberes. Atravessando o Saara com suas caravanas, eles levaram para a Europa medieval o ouro africano, trazendo de volta produtos de luxo, sal e cobre das minas norte-africanas. É por isso que essa região – a África Negra – passou a ser conhecida dos europeus, por volta do século X, como “a terra do ouro”.
   
[As sociedades africanas]  [...] Havia sociedades cuja organização muito se assemelhava às sociedades indígenas da América. Havia outras já organizadas em reinos e impérios, portanto com um Estado já estruturado. Elas eram dirigidas por reis ou imperadores, que tinham a seu serviço uma vasta corte de ministros, sacerdotes, soldados e funcionários que cuidavam da administração e cobrança de impostos.

[...]

Na África negra [...] havia sociedades organizadas sob a forma de comunidades primitivas e de comunidades aldeãs. As primeiras se constituíam em pequenos bandos, ligados por estreitos laços familiares e dedicados à coleta, caça e pesca. Desde há muito tempo, foram praticamente extintas na África.

As comunidades aldeãs dedicavam-se à agricultura e criação de gado. A terra era um bem de uso comum. Essas comunidades eram formadas por gente da mesma etnia, com língua, religião e costumes semelhantes, que se organizavam em famílias patriarcais, que incluíam um número vasto de parentes e agregados. O chefe das comunidades era membro de uma das famílias mais antigas na região, sendo responsável pela distribuição rotativa das terras entre toda a tribo. Seu poder era controlado por um conselho de anciãos.


Atividades cotidianas em uma aldeia na Nigéria: pilar o grão, forjar o ferro, tingir tecidos. William Allen

Nessas comunidades, a hierarquia social era, pois, marcada pela idade e antiguidade no local, e não pela posse de bens. Isto porque, os bens produzidos, por serem escassos e facilmente perecíveis, eram divididos de forma relativamente igualitária.

O que ocorreu com essas comunidades?

Muitas delas sofreram transformações, passando a se organizar em torno de um Estado centralizado. Para que isso ocorresse, foi necessário um maior desenvolvimento da agricultura, que passou a produzir além do necessário à manutenção dos membros da comunidade. Além disso, os cereais e leguminosas agora cultivados, eram mais facilmente armazenáveis e transportáveis.

A produção desse excedente agrícola favoreceu uma maior divisão do trabalho, separando aqueles que se dedicavam à agricultura e à criação de gado dos que, graças ao domínio da metalurgia do ferro e de outros metais, passaram a dedicar-se ao artesanato.

O excedente agrícola possibilitou, ainda, o surgimento do Estado, isto é, de uma comunidade superior que não irá trabalhar na terra, mas viverá da apropriação desse excedente entregue como tributo pelas comunidades aldeãs.

Como surgiram essas comunidades superiores?

Na África elas surgiram através de dois processos distintos. Em um deles, um grupo estrangeiro, militarmente mais forte, se impõe como dominante em relação às comunidades conquistadas. Noutro, a comunidade superior deriva da exploração que, gradualmente, o chefe da comunidade aldeã e sua família impõem aos membros da aldeia, a pretexto de controlar a distribuição de terras e os trabalhos coletivos.

A terra, agora, era uma propriedade nominal do soberano, que recebia tributos das comunidades.

O soberano era considerado a encarnação do deus ou seu intermediário indispensável para a sobrevivência e coesão da sociedade. Só os sacerdotes, por delegação do rei, detêm as formas mágicas do saber que lhes permitem cultuar as divindades de modo a que estas propiciem a fertilidade das terras.

Ao soberano cabia, ainda, através de seus exércitos, proteger as comunidades de possíveis invasores.

A essa forma de organização da sociedade dá-se o nome de sociedades tributárias.

Existiram, contudo, sociedades africanas cujas cortes tiveram uma expansão que não pode ser explicada somente pela cobrança de tributos agrícolas dos camponeses.


Guerreiros Nyam-Nyam, Richard Buchta

[Gana, Mali e Songhai] Nessas regiões encontramos sociedades que se expandiram pela posição privilegiada que tinham em relação às rotas comerciais que as uniam ao norte da África e às regiões próximas à costa, onde eram obtidos ouro, marfim e outros produtos tropicais. As cortes desses impérios monopolizavam o comércio.

Recebiam sal, cobre, tâmaras e produtos de luxo trazidos pelas caravanas árabo-berberes vindas do norte. Em troca, ofereciam ouro.

E de onde vinha o ouro?

O ouro, utilizado por esses impérios na troca que realizavam, vinha de comunidades localizadas mais ao sul do continente sendo obtido em troca de sal.

Trocar uma medida de ouro por igual medida de sal não é um bom negócio : é uma troca desigual. Esse comércio enriqueceu as cortes desses impérios, embora as comunidades aldeãs não mudassem seu tipo de vida. Elas continuavam dedicadas à agricultura e ao pagamento de tributos, que nessa região não constituía a principal fonte de riqueza do estado.

O desenvolvimento do comércio entre a África do Norte e a região sudanesa propiciou a riqueza do reino de Gana, estabelecido a partir do século IV numa área que compreende o Mali e o sul da Mauritânia atuais. Contudo, o reino de Gana não é a atual república de Gana. O cronista árabe El Bekri, que visitou Gana durante o século X, confirma o nome “terra do ouro” que os seus antecessores haviam dado a esse reino.

Formado a partir da etnia sarakolê, o reino Uagadu – nome verdadeiro do Estado, sendo Gana o nome dado ao rei -, expandiu-se a partir da dinastia Cissê. Ela estendeu a sua soberania desde as regiões auríferas do Senegal até a curva superior do rio Níger e à orla do Saara, envolvendo vários reinos vassalos, entre eles o de Audagoste, dirigido pelos berberes.

Koumbi Saleh, a capital, foi na sua época uma das maiores cidades do mundo. Era constituída de duas partes. A primeira – a cidade sagrada – compreendia o castelo real, as residências dos dignitários, construídas em pedra trabalhada, cercada por uma muralha; junto ficavam os bosques sagrados para os cultos e as prisões. Distante seis quilômetros erguia-se a segunda parte da cidade. Era destinada aos comerciantes árabes, nela existindo doze mesquitas, bazares e centros de ensino. Durante alguns séculos, Gana exerceu a sua autoridade sobre um território quase tão vasto quanto o da Europa ocidental. O poderio militar do reino assentava num exército de 200 mil homens, liderados pela cavalaria e por 40 mil arqueiros.

O que ocorreu com o reino de Gana?

Ele foi conquistado pelos berberes almorávidas em 1076, após 14 anos de lutas. Os berberes acusavam Gana de ser pagã, pois recusava o islamismo. Na verdade, os berberes pretendiam apropriar-se das fontes produtoras de ouro controladas por Gana.

Embora tenha reconquistado mais tarde a sua independência dos berberes, Gana foi subjugada por Sundiata, fundador do emergente Império do Mali.

O império do Mali, segundo a tradição, nasceu no alto Níger (fronteira da Guiné com o atual Mali), por volta de 1213, com base no povo malinquê – ou mandinga – e sob a chefia de Sundiata Keita.

Durante o decorrer do século XIV, sob o reinado de Kankan Mussa, o império do Mali assumiu dimensões maiores que o Gana. A riqueza do Mali atraiu letrados e artistas árabes que contribuíram para a islamização do império e a modernização de cidades como Tombuctu, grande centro intelectual só comparável, na época, à Córdova, na Espanha muçulmana.


Cidade de Tombuctu, Mali. René Caillié [Por sua localização geográfica, foi um importante ponto de ligação entre diferentes civilizações da África, do mundo árabe e da Europa.]

Mussa procurou desenvolver, ainda, relações comerciais com o Egito, primeira potência econômica africana. Este país era o ponto de chegada das novas vias transaarianas, de cujos terminais sudaneses, ao sul, o império do Mali veio mais tarde a se apoderar. Com isso, atingiu grande desenvolvimento econômico. A produção agrícola aumentou. O ouro e o cobre de suas minas eram objeto de um comércio considerável, assim como as barras de sal. O centro desse comércio, bem como de algumas manufaturas, eram as cidades de Tombuctu, Gao e Djené.

Em meados do século XV dois acontecimentos contribuíram para a desagregação do império do Mali : a costa oeste foi atingida pelos portugueses, enquanto, a leste, era conquistada pelo Império de Songhai.

Na segunda metade do século XIV, o império de Songhai havia conseguido libertar-se do domínio Mali, iniciando sua expansão através de várias conquistas. Tornou-se o maior império da África naquela época, indo do Senegal ao Tchad, e do Segu, ao sul, até o Saara central, ao norte.

E como estava organizado esse império?

Embora centralizado na figura do imperador, o império era dividido em quatro vice-reinados e várias províncias.

O exército passou a ser formado por profissionais que asseguravam, com a frota do Níger, a estabilidade do império e a cobrança regular dos impostos.

O incremento da produção agrícola – com especialistas judeus que trabalhavam nas terras do imperador -, a unificação de pesos e medidas, aliados à boa administração e ao aumento das trocas comerciais que proporcionavam vultosas receitas alfandegárias, pareciam indicar uma longa duração ao império.

No entanto, à medida que o império se estendia iam desaparecendo seus laços de coesão e estabilidade. Buscava-se compensar essa aparente fraqueza apoiando-se no Islã, que não era, contudo, a religião do povo, mas somente a da corte. Sábios e artistas árabes foram recrutados, Tombuctu e Djené tornaram-se dois importantes centros intelectuais, contando a primeira com uma universidade que formava teólogos, médicos e jurisconsultos. Um cronista árabe da época salientava que em Tombuctu o comércio de manuscritos era um dos mais rendosos da cidade.

No século XVI os marroquinos porão fim ao império de Songhai, que mais tarde será conquistado por sua vez pelos tuaregues do deserto do Saara, que o fracionam em pequenas unidades políticas.

Mas havia outros reinos. Não só Gana, Mali e Songhai prosperaram com o comércio do ouro. Outros reinos africanos desenvolveram relações comerciais com os continentes vizinhos. A leste, o reino de Aksum, atual Etiópia, estabeleceu relações comerciais com a Arábia e com o Yemen, tendo como intermediários os comerciantes gregos, por volta do século XVI.

Em Moçambique e Rodésia atuais se desenvolveu, do século V ao século XVI, o reino de Monomotapa, cuja capital era Zimbabwe. Possuía grandes minas de ferro, cobre e ouro, além de uma aperfeiçoada técnica metalúrgica. Esse reino enviava os seus metais e, mais tarde, também escravos, à costa do Oceano Índico onde esses produtos eram exportados pelo porto de Sofala para a Índia. As magníficas muralhas de pedra de Zimbabwe são o testemunho atual da grandeza desse império.

[Como a expansão mercantil europeia influenciou a África?] O ouro fornecido pelos impérios africanos destinava-se, passando pela intermediação árabo-berbere, a alimentar a Europa medieval. Quando a Europa descobriu as minas de metais das Américas, os africanos perderam o seu melhor cliente e os árabes os seus grandes parceiros comerciais. A Europa, com acesso direto às fontes de prata e ouro americanas, prescindiu das minas africanas que, entretanto, também se esgotavam paulatinamente.

O comércio do ouro ocupou vastas regiões africanas. Contudo, as riquezas acumuladas não introduziram modificações técnicas e sociais na agricultura, nem desenvolveram manufaturas. Desta forma, extintas as rotas comerciais e esgotadas as minas, os povos africanos, com a sua organização social e produção agrícola desagregadas pela submissão a esses impérios, foram vítimas relativamente fáceis da ação do tráfico escravo.

Escravos em Zanzibar, W. A. Churchill

Embora dirigido e dominado pelos europeus, o tráfico não foi obra exclusiva deles, embora só a eles beneficiasse verdadeiramente. Camadas dirigentes africanas, à frente de reinos próximos à costa ocidental,  aliaram-se aos europeus no apresamento de escravos. Para aumentar o seu poder político e estender os seus reinos, submeteram-se a uma atuação cúmplice com os compradores de escravos europeus, que lhes davam em troca armas de fogo, pólvora – além de outros produtos usados para obter prestígio político -, com os quais aumentavam o seu poder de guerrear e apresar escravos. O reino do Daomé foi um dos exemplos clássicos desse tipo de ação africana.

O reino do Daomé possuía poderosa organização militar, que resistia à escravização dos seus súditos. Este reino preparou-se a partir do século XVIII para tirar vantagens do tráfico de escravos. Um dos seus reis, Aghadja (1708-1732) iniciou a conquista do litoral, visando o controle do tráfico para obter armas de fogo, a fim de aumentar as suas conquistas no leste, em território yorubá, na atual Nigéria. Antes disso, conseguiu conquistar o mais importante porto de escravos da região, Ouidah ou Ajudá. Por esse porto, onde portugueses, franceses e ingleses haviam construído fortalezas, eram exportados, anualmente, milhares de escravos. Os soberanos do Daomé, insaciáveis no seu desejo de armas, aumentavam o preço dos escravos, vexavam os traficantes e chegaram a enviar embaixadas à França e à Bahia para obter acordos de exclusividade no fornecimento da mercadoria humana. Um dos importantes auxiliares do rei Ghezo na organização do tráfico de escravos foi [...] Francisco Félix de Souza [...] que se tornou um dos homens mais ricos do Daomé e foi o responsável pela urbanização de Ouidah.

E teria havido escravidão na África negra, antes da chegada dos europeus?

Aqueles que procuravam justificar a escravização do negro africano, quase sempre responderam afirmativamente a esta questão. Diziam eles que os negros estavam habituados e propensos ao trabalho escravo.

Sabemos hoje que isto não é verdadeiro. Mas o que ocorria, então?

Quando em guerra, as sociedades africanas faziam prisioneiros, que se tornavam cativos ou escravos. Esses cativos deveriam trabalhar no lugar daqueles guerreiros que tinham morrido em combate. Eles tornavam-se propriedade da comunidade a que pertencia o seu captor, e trabalhavam ao lado dos camponeses livres, no mesmo tipo de produção agrícola.

E o que ocorreu na América?

Aqui, o escravo era utilizado na produção de gêneros para a exportação, trabalhando nas grandes propriedades territoriais. Ele era também algo que o seu senhor podia vender ou trocar – era, pois, uma mercadoria.

Na América eram muito reduzidas as possibilidades dos escravos alcançarem a liberdade, mas na África eles podiam reconquistar a liberdade durante uma guerra posterior. Podiam também ter um pedaço de terra para si, casar-se com uma pessoa livre. Em algumas sociedades era freqüente os cativos atingirem postos importantes na administração.

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p.37-51.

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