"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 12 de julho de 2011

Escribas: intelectuais ou fiscais?

Fragmento do relevo de uma tumba: escriba sentado, do final do Terceiro Período Intermediário (XXV-XXVI dinastia)

A centralização administrativa supõe uma máquina eficiente que faça com que as ordens emanadas do faraó cheguem a todo o reino. A própria palavra faraó significa "casa grande", sede da administração, de onde tudo emana e para onde tudo converge. Acredita-se que o rei pessoalmente dirigia tudo, não sendo seus ministros senão sua extensão, seus olhos, bocas e ouvidos, sem autonomia para criar ou conceber. Havia a figura do primeiro-ministro, que ocupava espaços que o rei, eventualmente, deixasse vazios, por falta de vontade ou talento para governar.

A autoridade regional era o nomarca [...], espécie de governadores que administravam os nomos, em número de quarenta, espalhados pelo Egito. Cada aldeia podia eleger o seu líder local e um conselho, composto por representantes de diferentes categorias. A autonomia desses "prefeitos" e "vereadores" variou muito ao longo da história egípcia, mas deve ter sido sempre limitada pela presença de funcionários do governo central que vinham constantemente fiscalizar campos, conferir rebanhos, orientar construções ou transmitir normas, de modo a permitir a manutenção de ligação estreita entre o poder central e o mais obscuro dos habitantes.

O executor material das ordens reais era o escriba.

Era ele o funcionário do poder central, responsável físico pela articulação entre as ordens dadas e sua execução.

É necessário agora fazer uma observação sobre a figura do escriba, da maneira como aparece em vários manuais e mesmo em obras mais ambiciosas. Sua importância na sociedade egípcia derivaria, segundo esses livros, do fato de se tratar de alguém que dominava a arte da escrita e da leitura em um local em que o analfabetismo era quase geral. Ora, esse argumento é pouco inteligente, uma vez que saber ler e escrever, em si, não remunera ninguém: depende do papel que desempenham esses "detentores do saber" numa sociedade concreta. Se dominar a escrita fosse sinônimo de bons salários e prestígio social, os professores em nosso país viveriam uma realidade muito diferente, quando, como é sabido, ganham abaixo dos limites da dignidade e, às vezes, até da simples sobrevivência.

O escriba não era, pois, prestigiado por saber escrever e contar, mas porque essas atividades eram úteis e estavam a serviço do faraó, do governo central, fonte da autoridade e do poder.

Burocrata e frio, o escriba deve ser antes identificado com um funcionário de cartório ou um fiscal arrecadador de impostos do que com um intelectual inquieto e criativo. Raramente colocava sua técnica a favor da produção original. Antes, passava o tempo conferindo rebanhos e áreas cultivadas, taxas pagas e a pagar, quantidade de cereais nos silos, volume da colheita realizada, e assim por diante.

Claro que há exceções e vez por outra aparece alguma obra mais criativa redigida por um escriba. Contudo, como regra, não se deve esperar espiritualidade nele. A imagem que nos fica é a de um carreirista, ar parado, olhar bovino. Disposto a sacrificar a maior parte de sua vida em troca de um emprego seguro embora aborrecido, o escriba manipulava seu poder oprimindo os subalternos e bajulando os chefes. As maiores aventuras permitidas eram enganar ou roubar seus superiores e praticar o mais deslavado tráfico de influências.

Será que deu para reconhecer o tipo?

PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2010. p. 99-101.

Nenhum comentário:

Postar um comentário