"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 6 de julho de 2011

As comunidades primitivas americanas

Índios sioux caçando bisões, George Catlin

O homem penetrou na América vivendo à base de plantas e animais selvagens. A princípio, os primeiros habitantes possuíam toscos instrumentos de pedra lascada. Há cerca de dez mil anos, o nível do mar elevou-se e fez desaparecer, definitivamente, a faixa de terra que ligava a Ásia à América. A partir disso, nota-se a presença no continente americano dos chamados paleoíndios, nômades, caçadores de grandes animais, que possuíam artefatos de pedra lascada mais aperfeiçoados, como o propulsor de dardos e pontas de lança habilmente lascadas. Essa tecnologia mais eficiente possibilitou o aumento das fontes de subsistência, o que permitiu a caça aos grandes mamíferos (mamutes, bisões), e o aumento populacional.

Entre 8000 e 5000 a.C., as geleiras recuaram para o norte. Nessa área, que se estende do Alasca à Groenlândia, os únicos representantes são os esquimós, exímios caçadores e pescadores (caça da foca, pesca da baleia etc.). A modificação ambiental resultante provocou a extinção, em muitas áreas, dos grandes mamíferos, exceto nos campos norte-americanos, onde a caça pesada continuou como o principal meio de subsistência.

Nos séculos XVI e XVII, com a introdução, pelos colonizadores europeus, do cavalo e das armas de fogo, alteraram-se as condições de subsistência dos índios da Grande Planície da América do Norte (região localizada entre o Mississipi e as Montanhas Rochosas). Essas tribos transformaram-se em caçadores eqüestres, para os quais a caça ao búfalo constituía a atividade mais importante, embora também se dedicassem ao cultivo do milho, do feijão e da abóbora.

Durante muito tempo, os índios da Planície resistiram aos colonizadores, procurando defender-se da invasão de suas terras. Em meados do século XIX, um índio da tribo Duwamish escrevia ao presidente dos Estados Unidos:

"Somos parte da terra e ela é parte de nós (...)
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo do que necessita. A terra não é sua irmã e sim sua inimiga, e depois de a conquistar ele vai embora (...)
Sua voracidade arruinará a terra deixando para trás apenas um deserto (...)
De uma coisa sabemos: a terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à terra. Disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas como o sangue que une uma família."
(Trechos da carta do Cacique Seatlle, 1855. Pasquim, nº 397, 1977.)

Em muitas regiões, os campos foram substituídos pelas florestas, e em partes antes bem irrigadas formaram-se áreas semidesérticas. À caça e à coleta primitivas somaram-se a exploração de moluscos no litoral e a coleta de sementes nas regiões semi-áridas, o que possibilitou maior sedentarização e complexidade cultural. Começaram a ser produzidos novos tipos de instrumentos de pedra, empregando-se o polimento.

Nas áreas de florestas, a caça e a coleta dominavam: consumia-se carne de veado e de coelho, e obtinha-se em abundância milho selvagem, abóbora e várias espécies de sementes. Entre os grupos das Florestas Orientais da América do Norte viviam os iroqueses, originalmente localizados a oeste do Mississipi inferior; mais tarde, estabeleceram-se nos Apalaches e alguns grupos chegaram ao litoral. Viviam da pesca, da caça e de uma horticultura rudimentar.

A base alternativa de subsistência para as populações do litoral foi constituída pela coleta de moluscos, que devido a sua regularidade permitiu que as comunidades litorâneas se tornassem mais estáveis e sedentarizadas. São testemunhos dessa atividade os sambaquis (restos arqueológicos formados de conchas, esqueletos e alimentos de populações) encontrados em grande quantidade ao longo do litoral do Pacífico (sudeste dos Estados Unidos, Peru, Chile) e do Atlântico (Brasil).

Em numerosas regiões, as formas de subsistência baseadas na caça e na coleta continuaram a desempenhar importante papel, mesmo após a adoção dos processos agrícolas (domesticação de plantas).

A transição da coleta para a agricultura incipiente processou-se na América entre 7000 e 4000 a.C., primeiramente na Mesoamérica (México), depois na Área Andina (Peru). É praticamente certo que foram processos locais autônomos, entretanto, alguns estudiosos acreditam que a área peruana sofrera influência dos mesoamericanos. Também se acredita que a descoberta da agricultura entre os povos coletores deveu-se às mulheres, encarregadas da atividade de coleta de sementes e raízes. O certo é que o processo de domesticação de plantas foi demorado, e somente a longo prazo se fizeram sentir seus efeitos sobre a organização social e o crescimento da população.

A lagenária (primeira planta cultivada), o algodão, o abacate, a pimenta, a abóbora, o amendoim, o feijão e o milho (este o alimento básico da maioria da população indígena) foram as plantas mais antigas a serem cultivadas. Na Área Andina, ao lado da agricultura, teve lugar a domesticação de animais (lhamas, abelhas).

A passagem para a atividade agrícola implicou a maior sedentarização dos grupos humanos, tendo por base a aldeia. A agricultura proporcionava maior regularidade no abastecimento, e assim, por volta de 2000 a.C., já havia comunidades estáveis, fixadas de modo permanente ou semipermanente, em vários pontos da América do Norte (pueblos, no Novo México), da Mesoamérica e da Área Andina.

Nas áreas semi-áridas, a irrigação foi fundamental para a expansão da agricultura. A adoção de técnicas de irrigação indica maior complexidade de organização social dos grupos humanos - os pueblos, que ocupavam a área do Deserto da América do Norte, embora influenciados pelas Altas Culturas da Mesoamérica, desenvolveram uma sociedade e cultura próprias, na área dos rios Colorado e Grande. Habitavam em abrigos sob a rocha e construções semi-subterrâneas, sustentadas por muros de abode, ou pedra, em forma semicircular, em cujo centro havia uma praça, onde se realizavam as cerimônias religiosas. Empregavam técnicas de irrigação (represas de água da chuva, canais) e possuíam práticas de cultivo intensivas (milho), confecção de tecidos de algodão, cerâmica etc.

"Como os altiplanos mexicano e andino possuem climas que variam de temperados a subtropicais, muitas plantas ali domesticadas prestaram-se à adoção em regiões temperadas tanto no norte quanto no sul do continente. Em consequência, o milho, o feijão e a abóbora tornaram-se alimentação básica desde o nordeste da América do Norte até o Chile Central, antes do contato europeu. Nas terras baixas tropicais úmidas da América Central e do Sul, onde essas plantas eram menos produtivas, a ênfase foi colocada no cultivo de raízes, mais tolerantes a solos pobres e chuvas fortes. A mandioca é particularmente interessante." (MEGGERS, B. J. América pré-histórica. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1979. p. 53.)

A difusão da cerâmica, a partir de 3000 a.C., atesta o maior desenvolvimento das forças produtivas da maior parte das comunidades americanas. A cerâmica foi amplamente adotada, sinal de que as populações sedentarizadas já podiam e tinham necessidade de fazer reservas de alimentos, pois possuíam maior controle de suas provisões e de seu ambiente do que os antigos apanhadores de frutos e raízes. A auto-suficiência das aldeias era, entretanto, relativa: o isolamento das comunidades e suas poucas reservas faziam com que sua sobrevivência fosse seriamente afetada pelos fenômenos naturais (secas, inundações etc.).

Os grupos humanos também não eram estritamente sedentários. A procura de novos campos de cultivo levou ao contato entre eles. As tradições cerâmicas se difundiram e enriqueceram através desse intercâmbio. Tendo como ponto de partida o litoral (a cerâmica dos sambaquis), só mais tarde a técnica ceramista atingiu o interior.

A importância da cerâmica faz supor que os ceramistas seriam especialistas e provavelmente do sexo masculino. A esse nível de desenvolvimento técnico e econômico, que tornava possível e necessária a divisão do trabalho entre agricultores e artesãos especializados, a sociedade teve de intensificar a sua produção de excedentes para sustentar esses especialistas.

Os chibchas representam bem a cultura intermediária entre os caçadores e coletores nômades, e as sociedades agrárias desenvolvidas do México e do Peru. Destacaram-se os grupos localizados na Colômbia (chamados muíscas), que estabeleceram uma sociedade conhecedora do cultivo intensivo da terra, das técnicas da cerâmica e da metalurgia (ourivesaria). Dessa última deriva a bela lenda do El Dorado, encontrada em antigos relatos espanhóis: "Seres humanos, em geral crianças, eram sacrificadas para apaziguar o Sol, celebrar vitórias, assegurar o sucesso nas batalhas e em numerosas outras ocasiões. A cerimônia que inflamou a imaginação dos soldados espanhóis, entretanto, era praticada quando um novo chefe assumia o poder. Em tal ocasião, o iniciado era coberto com resina e envolto em ouro em pó. Fulgurante da cabeça aos pés, era levado em uma canoa ao centro do lago sagrado. Enquanto seus súditos lançavam oferendas à água, ele mergulhava para retirar o ouro, que permanecia no fundo do lago. A lenda do El Dorado parece ter-se originado desse espetacular rito chibcha. A tradição oral transformou El Dorado, de um homem dourado, em uma cidade dourada, escondida na extensa floresta tropical. A expectativa de riquezas fantásticas atraiu um número incontável de aventureiros à Amazônia (...)" (MEGGERS, B. J. op. cit., p. 134.)

Ao que parece, a lenda do El Dorado ainda sobrevive, atraindo numerosos aventureiros estrangeiros à Amazônia, embora muito mais bem organizados e à procura de riquezas mais compensadoras do que o ouro que enchia os olhos dos antigos espanhóis...

Na época do Descobrimento, existiam no Brasil cerca de cinco milhões de indígenas, divididos em seis grandes grupos linguísticos: tupi, guarani, gê, aruaque, tapuia e caraíba.

A unidade básica da vida social e política desses povos era a comunidade de aldeia, composta de famílias aparentadas formadoras dos clãs. Não havia propriedade privada, e o produto da caça e da pesca era repartido por toda a comunidade. Praticavam também uma rudimentar agricultura de subsistência (milho, mandioca). A chefia da comunidade de aldeia cabia ao dirigente máximo do clã mais poderoso, e tinha caráter hereditário. As práticas e crenças mágico-religiosas eram complexas, numerosas divindades representando as forças da Natureza: Sol, Lua, Trovão etc. Além do mais, nas diversas culturas indígenas havia mitos explicando a criação do Céu, da Terra, dos homens...

Atualmente, contudo, existe pouco mais de duzentos mil indígenas, divididos em aproximadamente duzentos grupos, falando 170 línguas.

Cada um desses grupos possui sua própria história, organização social, religião, economia e instituições políticas.
 
Branco é pessoa muito triste. Talvez por isso ele faça tanto mal.
 Mário Juruna, cacique xavante

Após a Conquista, os grupos indígenas americanos foram dizimados ou então expulsos das suas terras, ou ainda enfraquecidos e desorganizados, devido à sujeição ao trabalho forçado nas minas e plantações e às doenças europeias. A violência dos conquistadores espanhóis, portugueses, ingleses, franceses e holandeses foi responsável pela destruição de numerosas obras artísticas, pela exploração de milhares de indígenas, transformando-os em camponeses obrigados à servidão coletiva, e pela marginalização crescente desses povos.

O foco da violência e da exploração, entretanto, ainda está presente nas áreas onde os remanescentes indígenas lutam para preservar o pouco de terra que lhes resta, e nos lugares onde o problema da posse da terra pelos camponeses atinge o nível próximo da explosão social.


AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 38-44.

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