"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O Brasil na rota do Oriente: a vida a bordo de uma caravela no século XV

Porto de Lisboa - século XVI

* Lisboa: a cidade e o povo. Ano de 1500: debruçada sobre as águas do rio Tejo, estendia-se a ensolarada Lisboa. Ruas estreitas e tortuosas serpenteavam em meio ao casario branco e baixo que cobria as colinas, em cujas dobras aninhavam-se adros de igrejas e pequenas construções geminadas umas às outras. [...] Um labirinto de ruelas, becos, fontes e pequenos quintais marcava o perfil da cidade. [...]

Junto ao rio erguia-se o imponente torreão do Paço da Ribeira, edifício um tanto irregular, de várias dependências ligadas ao rei. Encontravam-se aí de seus aposentos familiares às salas de serviço público [...] Sob os arcos do Rossio, outra praça importante, local de encontro entre a cidade e o campo, vendiam-se, desde tempos imemoriais, roupas, papéis e alimentos [...]. O grito dos vendilhões de ovos, peixe fresco, água ou pão enchia os ares. Mulheres, brancas e negras, forras ou cativas, saíam da Ribeira com panelões cheios de arroz-doce - introduzido na península Ibérica há vários séculos pelos árabes - e cuscuz, oferecendo o pitéu de porta em porta.

Um pouco mais abaixo, na praia ribeirinha, estendia-se a Ribeira das Naus com suas oficinas e seus barcos prestes a serem lançados ao Tejo. Ao longo da mesma, instalavam-se os malcozinhados, pequenas tabernas fumacentas nas quais se reuniam marinheiros, prostitutas, escravos e pobres trabalhadores braçais, para consumir sardinhas fritas e vinho barato. [...] No porto, tremulavam naus mercantes vindas de Gênova, Veneza, Normandia, Bristol ou da Flandres. Em terra, prontos para embarcar nas caravelas que fariam a Carreira da Índia, aglomeravam-se não só marujos acostumados à vida portuária, mas também "vadios e desobrigados" recrutados pelas ruas de outras cidades.

Quem era essa gente que mudaria o mundo? As tripulações apresentavam, desde o século XV, um leque compósito de marinheiros de línguas e origens diferentes. Entre os portugueses, a presença de escravos negros era comum. Quando estenderam suas campanhas ao norte da África, procuravam quem falasse árabe ou recrutavam intérpretes capazes de comunicar-se com os sarracenos. No imaginário da época, tais marinheiros - livres ou cativos - eram tidos por "criminosos da pior espécie", cujas penas, por enforcamento, podiam ser comutadas pelo serviço marítimo. Segundo o testemunho de um soldado, quase todos os tripulantes dos navios eram "adúlteros, malsins, alcoviteiros, ladrões, homens que acutilavam e matavam por dinheiro, e outros de semelhante raça". Muitas prostitutas subiam a bordo, enganadas pela marujada, embarcadas por magistrados portugueses ou trazidas por soldados. [...] Os pobres embarcados dependiam da generosidade de um capelão para arranjar-lhes roupas com os quais pudessem se cobrir. [...] Esses marinheiros, geralmente, portavam calções compridos e volumosos a fim de não atrapalhar os movimentos exigidos pelas manobras de navegação. Tais calções eram amarrados à cintura por cordões e complementavam-se com o schaube, um sobretudo em forma de batina, sem mangas.

* A vida a bordo de uma caravela. Apesar de pequenas - cerca de 20 metros de comprimento -, ágeis, capazes de avançar em ziguezague contra o vento e dotadas de artilharia pesada, as caravelas eram tidas como os melhores veleiros a navegar em alto-mar. Mas, mesmo se a embarcação fosse boa, o cotidiano das viagens ultramarinas não era nada fácil. A precariedade da higiene a bordo começava pelo espaço restrito que era utilizado pelos passageiros: algo em torno de 50 centímetros por pessoa. [...] O banho a bordo era impossível, pois, além de não existir esse hábito de higiene, a água potável era destinada ao consumo e ao cozimento de alimentos. Nos corpos, ou na comida, proliferavam toda a sorte de parasitas como piolhos, pulgas e percevejos. Confinados em cubículos, os passageiros satisfaziam suas necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam próximos aos que consumiam as refeições. [...] Em meio ao constante mau cheiro e associado ao balanço natural, o "enjoamento" era constante. [...]

A alimentação durante essas longas viagens sempre foi um problema para a Coroa portuguesa. A falta habitual de víveres em Portugal impedia que os navios fossem abastecidos com a quantidade suficiente de alimentos. [...] A fome crônica e a debilitação física colaboravam para a morte de uma parcela importante dos marinheiros. Em Memórias de um Soldado na Índia, Francisco Rodrigues Silveira relatava queixoso que eram raros os "soldados que escapam das corrupções das gengivas (o temido escorbuto, doença causada pela falta de vitamina C), febres, fluxos do ventre e outra cópia de enfermidades..."

Além de escassos, os alimentos embarcados encontravam-se estragados antes mesmo de começar a viagem. Armazenados em porões úmidos, os comestíveis, ao longo da jornada, apodreciam ainda mais rapidamente. O "rol dos mantimentos" costumava incluir biscoitos, carne salgada, peixe seco (principalmente bacalhau salgado), banha, lentilhas, arroz, favas, cebolas, alho, sal, azeite, vinagre, açúcar, mel, passas, trigo, vinho e água. [...] Grumetes e marinheiros pobres eram obrigados a consumir "biscoito todo podre de baratas, e com bolor mui fedorento e fétido", entre outros alimentos em adiantado estado de decomposição. Mel e passas eram oferecidos aos doentes da tripulação nobre. Febres altas e delírios, que costumavam atingir muitos dos tripulantes, decorriam da ingestão de carnes excessivamente salgadas e podres e regada a vinho avinagrado. Quando ocorriam calmarias, sob o calor tórrido dos trópicos, os marinheiros famintos ingeriam de tudo: sola de sapatos, couro de baús, biscoitos repletos de larvas de insetos, ratos, animais mortos e até mesmo carne humana. Matavam a sede com a própria urina. Muitos, contudo, preferiam suicidar-se a morrer de sede.

Na realidade, a dramática situação dos navegadores não diferia muito daquela enfrentada pelos camponeses em terra firme. Um trabalhador que cavasse de sol a sol, sete dias por semana, não ganhava mais do que dois tostões por dia. A quantia mal lhe permitia comprar um alqueire de pão. O que dizer do sustento de famílias inteiras, sem alimentos ou vestimentas? Um grande número de camponeses pobres preferia fugir da fome enfrentando os riscos do mar, mesmo conhecendo as privações a que seriam submetidas na Carreira da Índia. O sonho com o império das especiarias era um alento e uma possibilidade num quadro de miséria e desesperança.

DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 12-17.

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