"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 3 de junho de 2017

Civilização III

Uma mulher grega.
Lawrence Alma-Tadema

O conceito de civilização ocidental como uma cadeia histórica contínua (ainda que ocasionalmente interrompida) foi reforçado pelo renovado interesse pelos mundos clássico e renascentista. Os cavalheiros eruditos da Grã-Bretanha, França, Holanda e Alemanha dos séculos XVIII e XIX percorreram o continente e viajaram ao sul para desenterrar pessoalmente as maravilhas do passado. Vastas quantidades de cerâmica, estatuária, pedra talhada, pinturas e mosaicos foram recolhidas, e inúmeros museus, construídos nas cidades do Norte da Europa para acomodar as descobertas trazidas do Egito, Grécia, Roma e Florença. Europeus eminentes passaram a encomendar imagens pintadas ou esculpidas de si mesmos usando togas e lauréis romanos, suas casas imitavam os templos gregos, seus clubes e regimentos passaram a adotar lemas latinos. Luminares da filosofia política resgataram palavras gregas, como democracia, e J.S. Mill chegou a declarar que "a Batalha de Maratona foi mais importante do que a de Hastings para a história da Inglaterra". A construção da cadeia histórica desembocou no batismo das inovações da arte italiana do século XV como Renascimento ou Renascença, da cultura europeia, descrição confirmada pela obra magistral de Jacob Burchardt, de 1869, A Cultura do Renascimento na Itália. Com a espetacular expansão da colonização europeia na década de 1890, parecia provável que o mundo inteiro, em pouco tempo, sentiria os benefícios da civilização ocidental.

Essa confortadora concepção de civilização sofreu um forte abalo na Grande Guerra de 1914-18, quando a morte de 10 milhões de soldados e a mutilação e cegueira de incontáveis outros a desmascararam como uma grande ilusão. Conflito entre grupos de nações civilizadas ou entre nações civilizadas (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos) e outras que, subitamente, deixaram de sê-lo (Alemanha, Áustria), a guerra de 1914-18 foi, sem sombra de dúvida, tanto quanto os trens a vapor e o David de Michelangelo, um produto da civilização ocidental.

Como pode a civilização chegar a tal ponto? Como foi possível essa quantidade de mortes desnecessárias? A resposta mais convincente a essas interrogações não proveio de historiadores e filósofos, mas de uma fonte totalmente inesperada. Sigmund Freud, cuja visão da psicologia humana começava a se difundir por toda a Europa, tinha uma mensagem alarmante e pessimista para a humanidade. Ele disse a propósito da Primeira Guerra Mundial: "Não se trata de que chegamos tão baixo, mas de que nunca chegamos tão alto quanto imaginávamos."

Os seres humanos, disse Freud, são vítimas dos instintos ignóbeis e brutais herdados de animais e humanos primitivos. A civilização domestica a selvageria animal que mora dentro de todos nós, mas não nos pode livrar dos nossos instintos, que de tempos em tempos rompem a fina camada de verniz e nos levam a cometer atos de extraordinária violência. A explicação de Freud para a carnificina da Grande Guerra forjou a relação entre a psicologia individual e a natureza da civilização e fez da psicanálise o método dominante de seus estudos. A fronteira da civilização já não era um círculo ao redor da Europa Ocidental e Estados Unidos, tampouco um espaço histórico ao redor dos antigos Egito e Grécia e Roma, mas algo que residia dentro de nós. Tornamo-nos, de uma hora para outra, ao mesmo tempo, civilizados e bárbaros. (Continua no próximo post)

OSBORNE, Roger. Civilização: uma nova história do mundo ocidental. Rio de Janeiro: Difel, 2016. p. 15-7.

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