"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O que é a História da Civilização?

Metrópolis, Otto Dix. 
[Costumes, sociabilidades, representação: objetos de estudo da História Cultural]

"Esta é uma cidade e eu sou um dos cidadãos.
Tudo que interessa aos outros me interessa: política, guerras, mercados, jornais, escolas.
O prefeito e a câmara municipal, bancos, tributos, barcos, fábricas, reservas, armazéns, bens móveis e imóveis."
Walt Whitman, "Song of myself"

A História tradicional - História político-social [...] costumava salientar o relato das guerras, conquistas e revoluções, destacando as aventuras dos monarcas e guerreiros mais afamados pela sua vitalidade impetuosa e pelo êxito das suas empresas materiais. Relegava a um plano secundário fatos essenciais da história humana, os quais constituem o objetivo da moderna História da Civilização [...]: a vida do povo, os sistemas culturais, a economia, as artes e as ciências, os costumes, o direito [...], a concepção do mundo e sua filosofia [...].

[...]

A História da Civilização estuda os quadros culturais: tradições, instituições e valores sociais. Perquire as lutas em prol da liberdade, contra o despotismo e a escravidão; em prol da justiça, contra o privilégio. [...]

[...]

Típica ciência da mudança, a historiografia pesquisa as transformações da vida social, os acréscimos culturais e as renovadas aquisições da experiência humana [...].

[...]

Autores contemporâneos assinalam, no pensamento histórico [...] três correntes fundamentais de interpretação: a romântica (epopéia do individuo, o herói), a positivista (com pretensões de ciência exata: causa e efeito) e a dialética [...] (conflito dos opostos e fusão: tese, antítese e síntese). Todas elas marcam a sua presença na tarefa do historiador moderno.

Marc Bloch [...] é o nobre arauto da historiografia como artesanato: a História é um ofício - "o oficio do historiador". Ele possuía uma nova visão: a teoria histórica devia ser construída, e reconstruída, dentro da prática cotidiana. Lucien Febvre observou que "Bloch sabia melhor do que ninguém que o tempo não se detém e que os livros  de História, para serem úteis, devem ser discutidos, saqueados, contraditos e continuamente corrigidos e revistos. [...]"

[...]

Na visão global - ou atual - da história humana, há profetas pessimistas, que verificam a desumanização do homem e das suas circunstâncias, que afirmam a existência de perigos catastróficos na ciência atual, uma ciência poderosa a serviço do egoísmo, da estupidez e da maldade humanas. [...] Mas, muitos, como Sarton e Russell, veem - nessa mesma ciência - a grande criadora da civilização, a veemente promessa da felicidade humana. A História da Ciência seria o principal fio condutor na história da Civilização, "pista para a síntese do conhecimento, mediadora entre a ciência e a filosofia, e verdadeira pedra angular da educação". [...]

[...]

O estudo do passado [...] leva a História à análise e mediação do presente. Erguem-se, então, desafiantes, os enigmas do amanhã. [...]

[...] uma das tendências modernas da historiografia assenta, justamente, na explicação dos acontecimentos - o homem e seu destino - em termos de forças sociais. Não, já, o individuo isolado; nem mesmo o herói, o santo ou o gênio. Mas a massa. [...] Há poucos anos, um Império do Mal pretendeu fazer triunfar - mediante a força bruta e o terror - velhos preconceitos contra "raças" e povos [...]. Arrogância, violência, cupidez, assassínios, campos de concentração, câmaras de gás e de torturas, toda uma fúria cega a serviço da "raça superior". A ciência moderna, o mundo atual, amparados em velhos e novos postulados éticos, repelem tais aberrações e atrocidades.

História do homem: quantas lutas, quantos anseios, sonhos, sofrimentos, esperanças!

Mas poderá o estudo da História trazer algum proveito? Há lições - positivas ou negativas - na História? [...] Aí estão as lições da Grécia e de Roma, do seu esplendor e sua decadência. Aí está a lembrança das muitas noites de São Bartolomeu. Aí estão os exemplos elucidativos de [...] Galileu, [...] Napoleão, Tiradentes. [...] A História ensina - mas quererão os homens aprender? Apesar da tremenda lição que encerram a execução e a luminosa glória posterior do mártir da Inconfidência, não estaremos a enforcar, todos os dias, com sanha feroz, os novos Tiradentes de amanhã?

Seja como for, a historiografia [...] lança um apelo supremo à razão e ao sentimento, em prol da ideia de uma humanidade unida, justa e fraternal.

BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 13-17.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Construtores de impérios no Oriente Próximo antigo

Relevo assírio 

"O cenário da história é o cenário da atividade humana: o meio físico em que se desenvolve a vida dos homens e das mulheres."
(Josep Fontana)

A ascensão de um império egípcio durante o Novo Império foi parte de uma evolução mais ampla na história do Oriente Próximo depois de 1500 a.C. - o aparecimento de impérios internacionais. A construção de impérios levou à fusão de povos e de tradições culturais, bem como à extensão da civilização muito além dos vales dos rios.

Uma das razões do crescimento dos impérios foi a migração dos povos conhecidos como indo-europeus. Originários de uma vasta área que se estendia desde o sudeste da Europa até a região além do mar Cáspio, eles iniciaram uma série de migrações por volta do ano 2000 a.C., que acabou por levá-los à Itália, Grécia, Ásia Menor, Mesopotâmia, Pérsia e Índia. De uma língua básica indo-europeia surgiram as línguas grega, latina, germânica, eslava, persa e sanscríticas.

* Hititas. Vários povos estabeleceram Estados fortes no Oriente Próximo por volta de 1500 a.C. - os hurritas no norte da Mesopotâmia, os cassitas no sul do Mesopotâmia e os hititas na Ásia Menor. Os hititas queriam controlar as rotas de comércio que corriam ao longo do rio Eufrates em direção à Síria. Na década de 1300, o império hitita alcançou seu apogeu. Seus líderes dominaram a Ásia Menor e o norte da Síria, atacaram a Babilônia e disputaram com o Egito o controle da Síria e da Palestina.

Os hititas adotaram várias características da civilização mesopotâmica, entre elas a escrita cuneiforme, os princípios legais e as formas de arte e literatura. A religião hitita combinava as crenças e práticas dos indo-europeus nativos da Ásia Menor com as dos mesopotâmios. Os hititas foram provavelmente o primeiro povo a desenvolver uma indústria do ferro significativa. De início, ao que parece, utilizavam o ferro somente para a fabricação de objetos rituais ou cerimoniais, não para ferramentas e armas. No entanto, como o minério de ferro era mais fácil de obter que o cobre ou o estanho (necessários para a produção de bronze), a partir de 1200 a.C. as armas e ferramentas de ferro difundiram-se pelo Oriente Próximo, embora o bronze ainda fosse utilizado em muitos instrumentos. Por volta dessa época, o império hitita entrou em colapso, muito provavelmente devido às invasões dos indo-europeus vindos do norte.

* Pequenas nações. No século XII a.C., houve uma pausa temporária na formação de impérios, que permitiu a várias pequenas nações na Síria e Palestina afirmarem sua soberania. Três delas - os fenícios, os arameus e os hebreus - eram originalmente nômades semitas do deserto. Os fenícios descendiam dos cananeus, um povo semita que se estabelecera na Palestina por volta de 3000 a.C. Os cananeus que migraram para noroeste, para a região onde hoje se situa o Líbano, eram chamados de fenícios.

Instalando-se nas cidades de Tiro, Biblos, Berito (Beirute) e Sídon, no litoral do Mediterrâneo, os fenícios foram naturalmente atraídos para o mar. Esses ousados exploradores fundaram cidades ao longo da costa do norte da África, nas ilhas do Mediterrâneo ocidental e na Espanha, tornando-se os maiores comerciantes marítimos do mundo antigo. Os fenícios (ou seus antepassados cananeus) criaram um alfabeto que constituiu uma formidável contribuição para a escrita. Como todas as palavras podiam ser representadas pelas combinações de letras, esse alfabeto evitava a necessidade de memorizar milhares de diagramas e permitiu aos fenícios transmitirem as civilizações do Oriente Próximo ao Mediterrâneo ocidental. Adotado pelos gregos, que lhe acrescentaram vogais, o alfabeto fonético tornou-se um componente fundamental das línguas europeias.

Os arameus, que se instalaram na Síria, Palestina e norte da Mesopotâmia, tiveram um papel semelhante ao dos fenícios. Como grandes mercadores, que operavam em caravanas, levaram tanto mercadorias como padrões culturais a várias partes do Oriente Próximo. Os hebreus e os persas, por exemplo, tomaram conhecimento do alfabeto fenício por intermédio dos arameus.

* Assíria. No século IX a.C., a formação de impérios foi reiniciada, dessa vez pelos assírios, povo semita da região em torno do Alto Tigre. Embora tivessem realizado movimentos expansionistas em 1200 e 1100 a.C., os assírios só começaram sua marcha para a formação de um império "mundial" três séculos depois. Nos séculos VIII e IX transformaram-se numa impiedosa máquina de guerra, conquistando a Mesopotâmia, inclusive Armênia e Babilônia, bem como Síria, Palestina e Egito.

O rei assírio, que era representante e o sumo sacerdote do deus Assur, governava de maneira absoluta. Os nobres, nomeados por ele, mantinham a ordem nas províncias e coletavam os tributos. Os assírios melhoraram as estradas, estabeleceram serviços de mensageiros e realizaram projetos de irrigação em grande escala para facilitar a administração eficiente das terras conquistadas e promover a prosperidade. Para manter dóceis os súditos, recorriam ao terror e deportavam aqueles que causavam problemas.

Apesar de sua dureza, os assírios preservaram e difundiram a cultura do passado. Copiaram e publicaram as obras literárias da Babilônia, adotaram os antigos deuses sumérios e usaram as formas de arte mesopotâmicas. O rei assírio Assurbanipal (669-626 a.C.) tinha uma grande biblioteca, que abrigava milhares de tabletes de argila. Depois de um período de guerras e de revoltas debilitadoras por parte dos súditos oprimidos, uma coalisão formada por medos do Irã e caldeus (ou neobabilônios) saqueou a capital assíria Nínive no ano 612 a.C. O poderio assírio estava encerrado.

* Pérsia: unificadora do Oriente Próximo. A destruição do império assírio possibilitou a ascensão de um império caldeu, que incluía Babilônia, Assíria, Síria e Palestina. Sob o governo de Nabucodonosor, que reinou de 604 a 562 a.C., o império caldeu atingiu seu apogeu. Após a morte de Nabucodonosor, o império foi arrasado pela guerra civil e ameaçado por um novo poder: os persas, um povo indo-europeu que se instalara no sul do Irã. Sob o comando de Ciro, o Grande, e de seu filho e sucessor Cambises, os persas conquistaram as terras entre os rios Nilo, no Egito, e Indo, na Índia, num período de 25 anos, que foi de 550 a 525 a.C.

A concepção de monarquia absoluta do Oriente Próximo, justificada pela religião, atingiu sua expressão culminante na pessoa do rei persa que, com a proteção divina, governava um vasto império - "três quartos da terra". Os reis persas desenvolveram um sistema eficiente de administração - baseada em parte no modelo assírio -, que deu estabilidade e uma certa unidade aos seus extensos territórios. [...] Os reis persas permitiram às províncias uma certa margem de autonomia e respeitavam as tradições locais, particularmente em questões de religião, desde que os súditos pagassem os tributos, servissem no exército real e se abstivessem de rebelar-se.

O império era unificado por uma língua única, o aramaico (a língua dos cananeus da Síria), usada pelos funcionários governamentais e pelos comerciantes. O aramaico era escrito com letras baseadas no primeiro alfabeto, desenvolvido pelos fenícios. Fazendo dele uma língua universal, os persas facilitaram as comunicações escritas e orais dentro do império. Este teve ainda outro elemento unificador na bem desenvolvida rede de estradas, num sistema postal eficiente e num sistema comum de pesos e medidas, bem como na cunhagem de moedas válidas em todo o império e baseada numa invenção dos lídios, da Ásia Menor ocidental.

Além de constituírem uma unidade política e administrativa impressionante, os persas fundiram e perpetuaram as várias tradições culturais do Oriente Próximo. Nos palácios persas, por exemplo, foram encontrados os terraços da Babilônia, as colunas do Egito, os touros alados que decoravam os portões dos palácios assírios e a habilidade artesanal dos ourives medos.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 20-22.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Civilização cretense ou egeia

A Parisiense.  Artistas desconhecidos. Ao descobrir no palácio de Cnossos este fragmento de afresco, Arthur Evans é seduzido pelo nariz empinado da jovem mulher, seu cabelo cacheado sobre a testa, seus lábios pintados e seus adereços amarrados a uma fita. Ele o batiza "A Parisiense". Mas essa Parisiense, que se tornou célebre no mundo inteiro, não é uma elegante dama da corte de Minos. É uma divindade reconhecível pelo laço que traz nas costas. Cnossos, por volta de 1500 a.C.

No início do III milênio a.C., surgiu na ilha de Creta, no Mediterrâneo oriental, e nas ilhas do Mar Egeu, uma notável civilização, a civilização cretense ou egeia, desenvolvida por povos que aí se estabeleceram, oriundos provavelmente da Ásia Menor.

Desde os primeiros tempos a civilização cretense caracterizou-se pelas atividades comerciais que se estenderam ao Mar Egeu, à península grega, ao litoral do Mar Negro e ao Egito, fundando também algumas colônias como Micenas e Tirinto, no Peloponeso, e Tróia, na Ásia Menor. Em função da expansão marítima, os cretenses tiveram contato com várias civilizações deles contemporâneas, principalmente dos egípcios, dos mesopotâmios e, mais tarde, dos fenícios. Além disso, a posição geográfica de Creta era quases um traço de união entre a Ásia, a Europa e a África.

[Creta] parece ter sido feita pela natureza para comandar a Grécia. Sua posição é muito bela. Domina o mar em torno do qual localizam-se todos os gregos. De um lado achava-se a curta distância do Peloponeso; de outro diante daquela região da Ásia Menor situada atrás da ilha de Rodes [...] Este o motivo pelo qual Creta possui o domínio do mar e conquistou e colonizou as ilhas. (Aristófanes)

Conhecemos mal a história de Creta, pois sua escrita (escritas minóicas) ainda não foram totalmente decifradas. Apenas os relatos dos antigos gregos e, sobretudo, as escavações arqueológicas nos permitem reconstituir em parte sua história e descrever sua cultura em traços bastante gerais.

* Evolução histórica dos cretenses. O primeiro período, conhecido como Minóico antigo (2700 a 2000 a.C.), caracterizou-se pelo predomínio das cidades de Cnossos e de Faístos.

Creta é uma terra que se acha no meio do mar cor de vinho, bela e fecunda, cercada por ondas. Inúmeros homens, quase infinitos, lá moram, formando noventa cidades [...] Entre as cidades se nota a de Cnossos, a opulenta, onde Minos, o confidente de Zeus, o comando exerceu por nove anos. (Homero, Odisseia, canto XIX, v. 172-179).

O segundo período, ou Minóico médio (2000 a 1500 a.C.) foi o apogeu da civilização cretense. Terminou com o ataque dos aqueus (povo helênico indo-europeu) às colônias de Creta - Micenas e Tirinto - onde assimilaram a cultura do povo conquistado.

No terceiro período, ou Minóico recente (1580 a 1200 a.C.), os aqueus atacaram novamente Creta (1400 a.C.) e Tróia (séc. XII a.C.). Creta foi invadida também por outro povo helênico indo-europeu, os dórios (1200 a.C.)

* Economia. Inicialmente baseou-se na agricultura, com o cultivo de cereais, oliveiras e vinhas, e na criação de animais. Os cretenses dedicaram-se também, em seguida, ao comércio marítimo com outras ilhas do Mar Egeu, com cidades da Ásia Menor e do Egito. Para abastecer esse comércio desenvolveram uma indústria de cerâmicas, tecidos e artigos de metal que produziam em larga escala para o mercado interno e externo.

A ilha exportava azeite, vinho, jóias e maravilhosas cerâmicas, e importava metais preciosos (ouro, prata), cobre, estanho, marfim, vidros e tecidos. Os cretenses tinham um sistema de pesos e medidas semelhante ao dos egípcios e dos mesopotâmios; como dinheiro usavam lingotes de cobre, discos de metal precioso, às vezes marcados com sinetes, para facilitar as transações comerciais, identificar e proteger propriedades.

Surgia assim, pela primeira vez, uma civilização cujo poder se assentava no domínio do mar (talassocracia), através das rotas comerciais do Mediterrâneo, alcançando, além do Peloponeso, a Ásia Menor, o Egito e até o sul da Itália.

* Religião. A religião cretense baseava-se sobretudo no culto de uma Deusa-Mãe, que governava todo o universo e representava a fecundidade. Além disso, eram adorados certas árvores e alguns animais, como a serpente, o touro, o veado e o minotauro (animal metade touro e metade homem). As cerimônias religiosas eram oficiadas pelo rei (autoridade religiosa suprema) e por sacerdotes que faziam aos deuses oferendas de cereais e sacrifícios de animais.

Os cretenses encaravam a morte com naturalidade, como um prolongamento da existência na terra. Acreditavam, portanto, em uma vida de além-túmulo; por isso os mortos eram enterrados com cuidados especiais e, como no Egito, com todos os pertences que, achavam, poderiam necessitar.


Príncipe dos lírios. Artistas desconhecidos. Afresco do Palácio de Cnossos

* Arte. Em arquitetura, os palácios reais, devido aos constantes acréscimos exigidos pelo conforto, não apresentavam um estilo único e formavam estruturas complexas a que os gregos denominaram labirintos.

A escultura revela a preocupação com o detalhe; limitou-se quase sempre a estatuetas de faiança, marfim, bronze ou argila. O mais alto grau de expressão artística dos cretenses foi a pintura, que se revela nos delicados vasos ou nos afrescos coloridos que cobrem as paredes dos palácios, mostrando flores, aves, animais de toda espécie e cenas da vida cotidiana.

Afresco do pescador. Artistas desconhecidos. O pescador volta para casa carregando seus peixes atados em réstias. Este tema bem banal é realçado pela elegância do homem e pelo contraste entre sua pele morena e o azul prateado dos peixes. Sobre sua cabeça, dois polvos ficaram presos em sua cabeleira, quando subiu à superfície da água com seus peixes. Akrotiri (Théra), século XVI a.C.

* A vida em Creta. Temos noções da vida dos cretenses pelas obras de arte que nos legaram. Mesmo nas camadas humildes parece ter sido mais livre, feliz e confortável do que a vida de outros povos da Antiguidade.

"Os cretenses - diz o historiador André Ribard - gostavam de flores nos jardins e nas casas. [...] As mulheres usavam saias e corpetes de mangas, tão decotados que seu peito estava nu, togas debruadas, às vezes rodadas, e botins de saltos. As modas cretenses lhes davam uma graça taful que contrastava com o tom empolado do luxo oriental. Os homens, barbeados, apertando o talhe até o excesso, calçavam botas de couro, cobriam-se com mantos de lã e apreciavam tanto quanto as mulheres os braceletes e colares."

O rei de Creta - denominado Minos - apesar de seu poderio político e econômico, não oprimia seus súditos, nem possuía um exército forte ou uma classe militar, governava com justiça e sabedoria. Mesmo a escravidão, se em Creta tiver existido, parece não ter sido significativa.

Minos foi, com efeito, dentre os homens que conhecemos pela tradição, o que mais cedo adquiriu uma frota e dominou a maior extensão do mar que hoje se chama helênico; exerceu a hegemonia sobre as ilhas Cícladas e foi quem primeiro instalou a maioria das colônias [...]. (Tucídides, I, 4)

A mulher ocupou posição de destaque na sociedade cretense, tendo podido dedicar-se, como os homens, a quaisquer atividades e ocupações.

Mosaicos representando três mulheres. Artistas desconhecidos. Estas três belas mulheres de Cnossos foram "restauradas" quando de sua descoberta, o que explica seu perfeito estado. Com seus longos cachos de cabelos descendo sobre seus ombros, seus boleros vermelhos bordados e suas jóias, respondem aos critérios de beleza feminina em Creta. Cnossos (Creta, século XVI a.C.)

O cretense foi um povo interessado em esportes, corridas, jogos, danças, festas. A principal festa era em honra à deusa-mãe, na qual se destacava uma espécie de tourada onde o touro, animal sagrado, não era morto e sim parceiro de um tipo de perigosa exibição acrobática executada por homens e mulheres jovens.

Acrobatas e touros. Artistas desconhecidos. Afresco do vestíbulo do palácio de Cnossos, por volta de 1550 a.C.
Foto: Nikater

A Grécia sofreu considerável influência da civilização cretense. Alguns povos gregos aprenderam a escrever nas escritas minóicas, que mais tarde substituíram pelo alfabeto fenício. É provável que também a religião grega tenha sido influenciada pela cretense, no culto da deusa da fecundidade e em outros cultos menores. Dos cretenses os gregos receberam a cultura da vinha e da oliveira, os costumes das festas religiosas e a prática de jogos esportivos. (HOLLANDA, Sérgio Buarque de (et all). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 39-42.)

Afresco de Campstool.  (Parcialmente restaurado). Artistas desconhecidos. Palácio de Minos, Cnossos, século XVI a.C.

* A influência da civilização egeia. Não é fácil avaliar a influência da civilização egeia. Os filisteus, que provinham de algum recanto do mundo egeu, introduziram certos aspectos dessa cultura na Palestina e na Síria. Há razões para acreditar que muitos elementos da arte fenícia, assim como as lendas de Sansão, do Velho Testamento, foram, na realidade, tomadas aos filisteus. É provável também que as tradições religiosas e estéticas dos cretenses, e talvez alguma coisa de seu espírito de liberdade, tenham influenciado os gregos. Mas uma considerável parte da civilização egeia perdeu-se ou foi destruída. Em seguida à queda de Cnossos iniciou-se uma era de obscurantismo que durou quase quatrocentos anos. Os conquistadores eram bárbaros, incapazes de apreciar grande parte da cultura do povo que dominaram e, consequentemente, deixaram que ela perecesse.


Afresco da procissão. Palácio de Cnossos. Artistas desconhecidos. Foto: Nikater

* Importância da civilização egeia para o mundo moderno. A despeito de sua influência limitada, a civilização egeia tem importância para os estudiosos de história, pois foi Creta uma das poucas nações dos antigos tempos que asseguraram, mesmo aos seus cidadãos mais humildes, uma razoável parcela de felicidade e de prosperidade, vivendo livres da tirania de um estado despótico e de um clero insidioso e astuto. A ausência aparente de escravidão, de punições brutais, de trabalho forçado e de conscrição militar, juntamente com uma grande igualdade virtual entre as classes e a nobilização da mulher - tudo compõe um regime em flagrante contraste com o dos impérios asiáticos. Se forem ainda necessários testemunhos adicionais para salientar esse contraste, eles serão encontrados na arte das várias nações. O escultor ou o pintor egeu não se gloriava em representar a destruição dos exércitos ou o saque das cidades, mas em retratar paisagens floridas, festas alegres, emocionantes exibições de proezas atléticas e cenas semelhantes, próprias de uma existência livre e pacífica. Por fim, a civilização egeia é significativa pelo parentesco com o que muitas vezes pensamos ser o espírito moderno. Isso é claramente exemplificado pela inclinação do povo ao conforto e à opulência, pelo seu amor aos divertimentos, seu individualismo, seu gosto pela vida e a coragem de tudo submeter à experiência. (BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964. V. 1, p. 142.)

Referências:

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1964.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de (et all). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980.
RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.
SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas 1: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008.

domingo, 28 de agosto de 2011

A travessia do Atlântico e a chegada dos africanos no Brasil

Navio negreiro "Amistad"

Nos séculos XVIII e XIX, as embarcações que transportavam escravos da África para o Brasil, os chamados tumbeiros, tinham diferentes tamanhos. Contudo, as mais comuns eram do tipo bergantim, galeão ou corveta, e conseguiam embarcar em média quinhentos africanos por viagem.

Apesar de, no início do século XIX, as condições das embarcações terem melhorado um pouco, comparando-se com os séculos anteriores, pois passaram a contar com a presença de ao menos um cirurgião-barbeiro, de capelães, de uma botica, além da separação entre homens e mulheres, as viagens continuavam sendo muito penosas, com porões superlotados de africanos, que se apertavam para conseguir dormir durante meses sobre o chão duro. Eles passavam quase todo o tempo acorrentados e, no momento do embarque, ou ainda nos barracões, costumavam ter o corpo marcado a ferro quente com as iniciais ou símbolos dos proprietários.

No século XIX, a viagem de Moçambique até o Rio de Janeiro, por exemplo, durava aproximadamente três meses. Já um navio que saía da região ocidental africana, ou de Angola, levava cerca de 35 dias para chegar ao mesmo destino. No século XVII, a mesma viagem (Angola-Rio de Janeiro) poderia durar até dois meses. Essa mudança foi ocasionada, em grande medida, pelos avanços da tecnologia empregados na construção das embarcações, tornando-as mais resistentes às intempéries, possibilitando a diminuição do tempo das viagens e, consequentemente, a queda da mortalidade.

Por outro lado, o declínio do número de mortes nas viagens é creditado também às melhorias nas condições de higiene, ao cuidado com a saúde e alimentação. Esta consistia em feijão, farinha de mandioca, arroz e carne-seca. Frutas, por exemplo, eram raras, ocasionando a deficiência de vitaminas que provocavam o escorbuto, doença  muito comum nos navios. Além disso, procurou-se diminuir o tempo de espera para o embarque, evitando a exposição dos cativos mais vulneráveis às doenças.

Mesmo assim, muitos africanos morriam, alguns sucumbiam  à espera do embarque que podia durar meses nos barracões, outros a bordo dos navios, sem mencionar as mortes dos africanos capturados durante a viagem do interior ao litoral da África. Os que morriam durante a longa travessia do Atlântico tinham seus corpos jogados ao mar.

Quando os navios aportavam em terras brasileiras, os escravos eram levados em pequenas embarcações até a alfândega para ser feita uma listagem com os dados sobre o carregamento. Daí eram levados para os estabelecimentos comerciais, nos quais eram vendidos.

Na região Nordeste, os fazendeiros e senhores de engenho faziam encomendas de escravos africanos aos traficantes baianos. Estes estavam acostumados a buscá-los na região ocidental da África, em especial na Costa da Mina, por conta da preferência dos mercadores africanos pelo tabaco produzido na Bahia. Os traficantes baianos sempre traziam uma quantidade maior de escravos para ser vendida em lojas próximas ao porto ou em leilões e reexportada para outras localidades do Nordeste, como Pernambuco e Maranhão, e durante os séculos XVII e XVIII para as áreas mineradoras.

No Rio de Janeiro, foi criado, na segunda metade do século XVIII, um local específico, na Freguesia de Santa Rita, conhecido como Valongo, para a venda dos chamados "negros novos".

Mercado da Rua Valongo,  J. B. Debret

Depois da proibição do tráfico de escravos africanos, em 1830, dificilmente eles passavam pela alfândega e ficavam expostos nos estabelecimentos do Valongo, sendo vendidos de forma clandestina, sobretudo durante a noite. Desembarcavam quase nus, com apenas um pano na parte inferior do corpo. Muitos chegavam doentes, com varíola, sarnas e feridas.

A varíola, mais conhecida como bexigas, era uma das moléstias mais frequentes entre os africanos, sobretudo naqueles embarcados em Angola, onde, no século XIX, houve uma epidemia da doença. Nessa época, para evitar o aumento de contágio no Brasil, os escravos africanos recebiam uma vacina. Além disso, foi adotada no Rio de Janeiro uma medida de isolamento dos escravos recém-chegados, por oito dias, dentro dos navios.

Assim que chegavam, eram-lhes cortado o cabelo e a barba, tomavam banho e vestiam-se minimamente, tudo para melhorar a aparência para a venda. Aqueles que estavam muito debilitados por conta de doenças eram isolados e recebiam cuidados médicos e alimentação adequada para que se restabelecessem e, mais tarde, serem oferecidos ao mercado.

A descrição deixada pelo viajante Charles Brand, na década de 1820, dá-nos uma boa noção da situação desses africanos novos no Valongo:

A primeira loja de carne em que entramos continha cerca de trezentas crianças, de ambos os sexos; o mais velho poderia ter doze ou treze anos e o mais novo, não mais de seis ou sete anos. Os coitadinhos estavam todos agachados em um imenso armazém, meninas de um lado, meninos de outro, para melhor inspeção dos compradores; tudo o que vestiam era um avental xadrez azul e branco amarrado na cintura; [...] O cheiro e o calor da sala eram muito opressivos e repugnantes. Tendo meu termômetro de bolso comigo, observei que atingia 33º C. Era então inverno [junho]; como eles passam a noite no verão, quando ficam fechados, não sei, pois nessa sala vivem e dormem, no chão, como gado em todos os aspectos.

Alguns africanos mal chegavam e eram levados em comboios, em barcos ou a pé, em direção às cidades do interior ou comprados por tropeiros de São Paulo e Minas Gerais, configurando-se assim o tráfico interno de escravos. Outras localidades, como Buenos Aires e Montevidéu, e a região Sul do Brasil (Santa Catarina e Porto Alegre), também eram abastecidas pelos comerciantes de escravos cariocas.

Depois da proibição definitiva do tráfico de escravos africanos, em 1850, o comércio interno seguia a rota nordeste-sudeste. Era a época em que as fazendas de café necessitavam de um grande número de trabalhadores e os senhores de engenho estavam se desfazendo da sua escravaria, por causa da queda das exportações de açúcar. Os escravos vendidos no comércio interno, chamados de ladinos - pois já estavam há algum tempo no Brasil e haviam se adaptado ao trabalho, aos costumes e à língua local - eram oferecidos à venda em casas de leilão, estabelecimentos comerciais e por meio de anúncios em jornais.



MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 100-103.

sábado, 27 de agosto de 2011

O Oriente medieval: Bizâncio e Islã Βυζάντιο الإسلام

Os favoritos do Imperador Honório, John William Waterhouse

O triunfo do cristianismo e o estabelecimento de reinos germânicos em terras outrora romanas representaram uma nova fase na história ocidental: o fim do mundo antigo e o início da Idade Média, período que se estendeu por mil anos. No mundo antigo, o centro da civilização greco-romana estava no mar Mediterrâneo; o coração da civilização medieval transferiu-se para o norte, para as regiões da Europa que a civilização greco-romana mal havia penetrado. Durante a Idade Média desenvolveu-se na Europa uma civilização comum, que integrou elementos cristãos, greco-romanos e germânicos. O cristianismo estava no centro da civilização medieval; Roma era a capital espiritual, e o latim, a língua da vida intelectual, enquanto os costumes germânicos impregnavam as relações sociais e jurídicas. Na Alta Idade Média (500-1050), a nova civilização lutava para tomar forma; no período de 1050 a 1300, a civilização medieval atingiu seu apogeu.

Das ruínas do Império Romano surgiram três novas civilizações baseadas na religião: Bizâncio, o Islã e a cristandade latina (Europa central e ocidental).


Mehmed II entrando em Constantinopla, Fausto Zonaro

Βυζάντιο

* Bizâncio. Βυζάντιο Embora o Império Romano do Ocidente tivesse caído diante das tribos germânicas, as províncias do Oriente sobreviveram - por serem mais ricas, urbanizadas e populosas, e porque os invasores germânicos e hunos visavam principalmente o oeste. Nas regiões orientais tomou forma a civilização bizantina. Sua religião era cristã; a língua e a cultura, gregas; e a máquina administrativa, romana. A capital, Constantinopla, era uma cidade fortificada, cuja localização dificultava ataques por mar e terra.

Durante a Alta Idade Média, a civilização bizantina encontrava-se econômica e culturalmente muito mais adiantada que o Ocidente latino. Numa época em que poucos ocidentais (cristãos latinos) sabiam ler ou escrever, os eruditos bizantinos estudavam a literatura, filosofia, ciência e direito da Grécia e Roma antigas. Enquanto o comércio e a vida urbana haviam sofrido uma grande regressão no Ocidente, Constantinopla era uma cidade magnífica, com escolas, bibliotecas, praças abertas e mercados cheios.

Com o passar dos séculos, desenvolveram-se muitas diferenças entre a Igreja bizantina e a Igreja romana. O papa resistia às tentativas de domínio do imperador bizantino, e os bizantinos não queriam aceitar o papa como chefe de todos os cristãos. As duas igrejas discordavam em relação às cerimônias, dias santificados, adoração de imagens e direitos do clero. O rompimento final ocorreu em 1054. A Igreja cristã dividiu-se em Católica Romana, no Ocidente, e Ortodoxa Oriental (grega), no Oriente - divisão que perdura até hoje.

Afresco bizantino. Cena da comunhão. Artista desconhecido

Divergências políticas e culturais ampliaram a separação entre a cristandade latina e Bizâncio. No Império Bizantino, o grego era a língua da religião e da vida intelectual; na cristandade latina, predominava o latim. Os cristãos latinos recusavam-se a reconhecer os imperadores bizantinos como sucessores dos imperadores romanos. Os governantes bizantinos tinham poder absoluto e declaravam-se escolhidos por Deus para instituir a vontade divina na Terra. Como sucessores dos imperadores romanos, reivindicavam domínio sobre todas as regiões que haviam pertencido ao Império Romano.

Em seu apogeu, sob o governo do imperador Justiniano - que reinou de 527 a 565 -, o Império Bizantino incluía a Grécia, Ásia Menor, Itália, sul da Espanha e partes do Oriente Próximo, África do Norte e Balcãs. Ao longo dos séculos, os bizantinos sofreram ataques dos lombardos e visigodos germânicos, dos persas, árabes muçulmanos, turcos seldjúcidas e cristãos latinos. O golpe mortal sobre o império foi desferido pelos turcos otomanos, originários da Ásia central, que haviam adotado o islamismo como religião e iniciado a construção de um império. Eles avançaram sobre os bizantinos a partir da Ásia Menor e conquistaram grande parte dos Balcãs. Por volta do início do século XV, o Império Bizantino consistia apenas em dois pequenos territórios na Grécia e a cidade de Constantinopla. Em 1453, os turcos otomanos venceram as grandes muralhas de Constantinopla e saquearam a cidade. Depois de mais de dez séculos, o Império Bizantino chegava ao fim.

Em sua história de mil anos, Bizâncio deixou uma marca significativa na história do mundo. Primeiro, impediu que os árabes muçulmanos avançassem sobre a Europa ocidental. Se os árabes tivessem rompido as defesas bizantinas, grande parte da Europa poderia ter sido convertida à nova fé islâmica. Outro fato importante foi a codificação das leis da Roma antiga, durante o governo de Justiniano. Essa realização monumental, o Corpus Juris Civilis, preservou os princípios da razão e da justiça do direito romano. Os códigos jurídicos de hoje têm, em grande parte da Europa e da América Latina, raízes no direito romano preservado pelos juristas de Justiniano. Os bizantinos conservaram também a filosofia, ciência, matemática e literatura da Grécia antiga.

Os contatos com a civilização bizantina estimularam o conhecimento, tanto no mundo islâmico do leste, como na cristandade latina do oeste. Bizâncio também levou essa sua avançada civilização e o cristianismo ortodoxo aos povos eslavos do leste e sudeste da Europa, inclusive russos. Deu-lhes princípios legais, formas de arte e um  alfabeto (o cirílico) baseado no grego, permitindo que suas línguas passassem a ser escritas.

Conquista de Bagdá por Tamerlão, Ya'qub ibn Hasan, conhecido como Siraj al-Husaini

الإسلام 

* Islã. الإسلام A segunda civilização a emergir depois da queda de Roma baseava-se na nova e vigorosa religião do Islã, surgida no século VII entre os árabes da Arábia. Seu fundador foi Maomé (c. 570-632), um próspero mercador da cidade de Meca. Por volta de 40 anos de idade, Maomé acreditou ter sido visitado pelo anjo Gabriel, que lhe ordenou  "recitar no nome do Senhor". Transformado por essa visão, Maomé convenceu-se de que fora escolhido para servir como profeta. Embora a maioria dos árabes do deserto venerassem deuses tribais, nas cidades e nos centros comerciais grande parte da população tomara conhecimento do judaísmo e do cristianismo, e alguns árabes já aceitavam a ideia de um Deus único. Rejeitando as divindades das religiões tribais, Maomé ofereceu aos árabes uma nova fé monoteísta, o Islã, que significa "render-se a Alá (Deus)".


Construção do Forte de Kharnaq, Kamāl ud-Dīn Behzād

Os padrões islâmicos de moralidade e as normas que regulam a vida cotidiana são fixados pelo Alcorão, que os muçulmanos acreditam conter a palavra de Alá, tal como revelada a Maomé. Para os muçulmanos, sua religião é a conclusão e o aperfeiçoamento do judaísmo e do cristianismo. Consideram os antigos profetas hebreus como mensageiros de Deus e valorizam sua mensagem de compaixão e a igualdade dos seres humanos. Também reconhecem Jesus como um grande profeta, mas não o consideram divino. Para eles, Maomé foi o último e maior dos profetas, mas era totalmente humano. Cultuam apenas a Alá, o criador e soberano do céu e da terra: Deus único e todo-poderoso, misericordioso, compassivo e justo. De acordo com o Alcorão, no Dia do Juízo os incrédulos e os iníquos serão arrastados a um lugar terrível de "ventos abrasadores e água escaldante" e os "pecadores (...) comerão (...) fruto [amargo] (...) [e] beberão água fervente". Aos muçulmanos fiéis que vivem na virtude é prometido o paraíso, um jardim de prazeres carnais e deleites espirituais.

Em pouco mais de duas décadas, Maomé unificou as tribos árabes, envolvidas em constantes disputas, numa força poderosa dedicada a Alá e à difusão da fé islâmica. Após sua morte, em 632, Maomé foi sucedido por seu amigo e sogro Abu Bakr, que se tornou califa. Considerado como o defensor da fé, cujo poder derivava de Alá, o califa governava segundo a lei muçulmana, tal como definida no Alcorão. O Estado islâmico era uma teocracia, em que governo e religião eram inseparáveis [...]. Para os muçulmanos, Deus era a fonte de toda a autoridade legal e política, e o califa era seu representante na terra. A lei divina regulava todos os aspectos das relações humanas. [...] O islamismo era, portanto, mais que uma religião; constituía também um sistema de governo, sociedade e lei que, segundo acreditavam os muçulmanos, unia todos os seus adeptos numa única e abrangente comunidade. [...]


Três mulheres em pé, uma de joelhos tocando alaúde e um rapaz com pandeiro. Artista descnhecido

O Islã propiciou às tribos árabes unidade, disciplina e organização para vencerem suas guerras de conquista. Sob os quatro primeiros califas, que governaram de 632 a 661, os árabes rapidamente dominaram o Império Persa, tomaram algumas províncias de Bizâncio e invadiram a Europa. Os guerreiros muçulmanos acreditavam estar envolvidos numa guerra santa (jihad), cuja finalidade era propagar o islamismo aos infiéis, e aqueles que morressem nessa guerra tinham um lugar garantido no paraíso. Outra razão que contribuiu para a expansão foi desejo de fugir à aridez do deserto árabe e explorar as prósperas terras bizantinas e persas. No leste, o território islâmico estendeu-se até a Índia e as fronteiras da China; no oeste, incorporou a África do Norte e a maior parte da Espanha. [...]

Nos séculos VIII e IX, sob os califas abássidas, a civilização muçulmana entrou na sua idade de ouro. Ela sintetizou, criativamente, as tradições culturais árabe, bizantina, persa e indiana. Durante a Alta Idade Média, quando o conhecimento estava em decadência na Europa ocidental, os muçulmanos forjaram uma civilização superior. A ciência, a filosofia e a matemática muçulmanas basearam-se, em grande parte, nas realizações dos gregos antigos. Os árabes adquiriram o conhecimento grego através das civilizações persa e bizantina, mais antigas, que mantiveram vivo o legado helênico. Traduzindo as obras gregas para o árabe e comentando-as, os eruditos muçulmanos realizaram a grande tarefa histórica de preservar a herança filosófica e científica da Grécia antiga. O conhecimento grego, suplementado pelas contribuições originais dos intelectuais e cientistas muçulmanos, foi então transferido à Europa cristã.

O império árabe, estendendo-se desde a Espanha até a Índia, foi unificado por uma língua, uma fé e uma cultura comuns. [...]

No século XIII, os mongóis, liderados por Gengis Khan, devastaram as terras muçulmanas; no século XIV, dessa vez chefiados por Tamerlão, novamente atravessaram o território árabe pilhando e massacrando tudo o que encontravam pelo caminho. Após a morte de Tamerlão, em 1404, o império mongol desmoronou, abrindo caminho para os turcos otomanos.

O Império Otomano atingiu seu apogeu no século XVI, com a conquista do Egito, África do Norte, Síria e litoral da Arábia. Os otomanos desenvolveram um sistema de administração eficiente, mas não conseguiram restaurar o esplendor cultural, o comércio florescente e nem tampouco a prosperidade que o mundo muçulmano conhecera sob o governo dos califas abássidas de Bagdá.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 146-151.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O legado da Mesopotâmia

Estandarte de Ur, um grande painel de cerca de 2500 a.C., feito em materiais variados, como marfim, mármore e conchas. Podemos ver um desfile militar, com soldados e carros de combate.

[...] De uma ou de outra das quatro nações mesopotâmicas (sumérios, amoritas, assírios, caldeus), deriva um apreciável número de elementos culturais modernos:

O ano de 12 meses e a semana de 7 dias, os 12 números dos nossos relógios, correspondentes à divisão caldéia do dia em 12 horas duplas; a crença em horóscopos; a superstição de fazer o plantio de acordo com as fases da lua; os 12 signos do zodíaco; o círculo de 360 graus; o processo da multiplicação.

Os povos da Mesopotâmia exerceram influência mais significativa em várias nações da antiguidade. Os hititas, que ajudaram os cassitas na destruição dos babilônios, adotaram as tabuinhas de argila, a escrita cuneiforme, a narrativa épica Gilgamesh (história dos notáveis feitos de um aventureiro sobrenatural, semelhante ao Hércules grego) e muito da religião do povo que conquistaram.

A religião mesopotâmica influenciou os fenícios, como se verifica pela adoração de Astartéia (Ishtar) e de Tamuz. Os persas foram profundamente influenciados pela cultura babilônica e assíria. Com exceção da religião, os persas foram continuadores da civilização mesopotâmica, da qual tomaram a escrita cuneiforme, as artes e a organização militar. Assim, por exemplo, os palácios persas estavam construídos, como os da Mesopotâmia, sobre enormes plataformas de 10 a 15 metros de altura. A ornamentação inspirou-se nos assírios: frisos de pedra com relevos, ou frisos de tijolos esmaltados e coloridos, em cuja execução os persas superaram seus mestres de Nínive.

Os cananeus herdaram, dos sumérios ou dos amoritas, grande parte do seu direito e também muitas das suas crenças religiosas.

Também os hebreus são, em certos aspectos, herdeiros da cultura mesopotâmica. Provavelmente, um dos seus patriarcas, Abraão (por volta de 1900 a.C.), viveu algum tempo em Ur, cidade do Eufrates, na Baixa Mesopotâmia. Muitos traços mesopotâmicos foram também adquiridos, indiretamente, através do contato com cananeus e fenícios. Foi assim, possivelmente, que os hebreus adotaram as lendas da Criação e do Dilúvio, e um sistema de Direito - derivados da civilização mesopotâmica.

Maior influência foi exercida durante o período do Cativeiro, de 587 a 539 a.C. Durante esses anos, os judeus foram introduzidos, pela primeira vez, direta e intimamente, na vida de uma nação rica e poderosa. A despeito do ódio aos seus opressores, os hebreus adotaram, talvez inconscientemente, muitos dos seus costumes. O calendário judaico, por exemplo, é de origem babilônica. Além disso [...] muita coisa do simbolismo, pessimismo e demonologia dos caldeus passou para a religião de Judá, corrompendo-a grandemente.

As crenças e instituições mesopotâmicas também exerceram sua influência, embora indiretamente, sobre os gregos e romanos. A filosofia estóica, com suas doutrinas do determinismo e do pessimismo, deve ser, em parte, reflexo dessa influência, pois que seu criador, Zenão, era semita, provavelmente um fenício.

Melhor exemplo de uma origem mesopotâmica será encontrado, talvez, em práticas romanas como a adivinhação, a adoração dos planetas como deuses, e o uso do arco e da abóboda. Muitos desses elementos foram introduzidos, entre os romanos, pelos etruscos, povo de origem asiática ocidental. Outros foram trazidos pelos próprios romanos, em consequência das suas campanhas militares na Ásia Menor.

Finalmente, há a considerar a influência mesopotâmica (como integrante do fator oriental), exercida indiretamente, através da Grécia - sobretudo no período helenístico.

BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 60-62.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Lampião, bandido ou herói do sertão?

Lampião e Maria Bonita, c. 1936/1937. 
Fotógrafo: Benjamin Abrahão Botto

"O bandido social é, em geral, membro de uma sociedade rural e, por razões várias, encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado e pelos grandes proprietários. Apesar disso, continua a fazer parte da sociedade camponesa de que é originário e é considerado herói por sua gente, seja ele um justiceiro, um vingador ou alguém que rouba dos ricos". 
(Carlos Alberto Dória)

Anúncio de jornal do governo da Bahia oferecendo recompensa pela captura de Lampião, 1930.

[O cangaço] O cangaço é o fenômeno de formação de bandos de sertanejos que assolaram o sertão nordestino e viveram escondidos pela caatinga, roubando, matando e fugindo. Alguns desses bandos tornaram-se tão organizados e poderosos que chegaram a assustar não só os ricos da região como também o governo (...)


Cangaceiros, Carybé 

(...) Os bandos de cangaceiros começaram a se destacar ainda no Império, durante o governo de D. Pedro II (1840-1889), quando os conflitos entre as famílias pertencentes a partidos políticos que disputavam o poder se transformaram em longas lutas. Essas lutas entre famílias, chamadas de vendetas, estavam diretamente relacionadas à posse das terras, pois disputavam-se os melhores pastos e os terrenos que tivessem água, fundamental nesta zona de seca. Um grande proprietário era aquele que possuía não apenas maior quantidade de terra, mas, principalmente, terras de melhor qualidade, irrigadas naturalmente, pois para esta sociedade a terra significava poder.

Contudo, foi somente no inicio do século XX, quando as lutas das famílias pelo poder continuavam e a situação política nacional favorecia essas disputas locais, que se observou a formação dos bandos mais importantes e organizados, como os de Antônio Silvino e Lampião. Percebe-se, nesse momento, o aumento dos conflitos, na tentativa de fazer crescer a autoridade de cada chefe local, os “coronéis”, que eram um dos grupos característicos dessa sociedade sertaneja na virada do século XIX para o XX (...). ROITMAN, Valter. Cangaceiros – Crime e aventura no sertão. São Paulo: FTD, 1997.


Indumentária dos cangaceiros

[Os cangaceiros] Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, foi chefe do mais famoso e duradouro bando de cangaceiros. [...]

Muitos ingressavam no cangaço por estar desempregados ou mesmo passando fome. Faziam dele um meio de vida. Outros, por não se submeter mais aos trabalhos penosos das fazendas, passaram a viver de assaltos aos senhores de terras, pilhagens de armazéns, sequestros de pessoas ricas e opressoras. Rebelavam-se contra uma ordem social injusta e opressiva, buscando a justiça pelas próprias mãos.

Na literatura de cordel, o povo cantava as histórias do cangaço, depositando nele suas esperanças de um mundo melhor.

"Pra havê paz no sertão
E a gente pudê drumi
Cumê, bebê e vesti
Pulas festa vadiá 
Sem nunca se atrapaiá
É perciso Lampião
Fazê do seu bataião
a Polícia Militá."

O cangaço era um movimento independente. Consciente ou não, o cangaceiro rebelava-se contra os latifundiários, os poderosos. Diferia dos capangas - os jagunços - que eram assalariados do crime, lutando a serviço dos coronéis que pagassem mais.

O tamanho dos bandos variava de acordo com a época (aumentando nos períodos de seca e de fome) ou segundo o prestígio do líder. O bando de Lampião, o Rei do Cangaço, foi o maior de todos, chegando a ter, em algumas épocas, 100 homens. Durante 20 anos, 1918 a 1938, ele percorreu todo o Nordeste. Atacava de preferência os grandes proprietários, dos quais exigia dinheiro, alimentos e às vezes abrigo contra a polícia. Em troca, prometia que o latifundiário não seria molestado, nem mesmo por outros bandos.

Entre os líderes do cangaço, contam-se ainda Antônio Silvino, que dominou o sertão nordestino de 1896 a 1914, Calango, Moçoró e Corisco, sendo que os dois últimos aderiram ao bando de Lampião.

Em quase todos os bandos, as mulheres participavam em pé de igualdade com os homens: Maria Bonita, mulher de Lampião; Enedina, que morreu em combate ao lado de Maria Bonita; Inacinha, companheira de Gato; Sebastiana, mulher de Moita Brava; Dadá, companheira de Corisco.

Dadá e Corisco, 1938. 
Fotógrafo: Benjamin Abrahão Botto

Como fenômeno social, o cangaço foi uma manifestação da revolta não-organizada em termos políticos dos oprimidos contra os opressores. Por isso, conquistava a simpatia da população pobre.

"Pra havê paz no sertão
E as moças pudê prosá
E os rapaz pudê casá
E o povo pudê se ri
E os menino diverti
É preciso uma inleição
Pra fazê de Lampião
Gunvernador do Brasil."

ALENCAR, Chico et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1994.

Cangaceiros, Carybé


[O cangaço na literatura de cordel] A literatura de cordel — tipo de literatura popular presente no mundo inteiro, através de cantorias, improvisos, desafios: os poetas populares dizem suas mágoas, alegrias, esperanças e desespero de cada dia — cantou inúmeras vezes os feitos de Lampião, o Rei do Cangaço, pois seu bando era apenas um dos que perambulavam pelo sertão. Leia o que se cantou e contou sobre Lampião.

"Canção do cangaceiro"

Adeus, adeus, minha mãe
Me dê sua benção.
Vou acertá minha vida
No grupo de Lampião.
[...]
Querendo andá no cangaço,
Inté sou bom cangaceiro,
Que isso de matá gente
É o serviço mais maneiro.
[...]
Se o cabra não tem corage,
Que mude de profissão,
Vai prô cabo da enxada
Aprantá fava e argudão.

ROCHA, Melquíades da. Bandoleiros das caatingas.  In: Coletânea de documentos históricos para o 1º grau. São Paulo: SE/Cenp, 1980.

O bando de Lampião, ca. 1936/1937. 
Fotógrafo: Benjamin Abrahão Botto

"Os cabras de Lampião"

O Clementino Furtado,
fazendeiro do sertão,
sentou praça na polícia
para pegar Lampião
recebeu logo as divisas
de sargento, o valentão.
O sargento um certo dia
deitou a mão num coiteiro
ameaçando matá-lo
na boca do granadeiro
para que ele revelasse
onde estava o cangaceiro.
[...]
O sargento fez o cerco,
preparou os seus soldados,
depois mandou chover balas,
quase por todos os lados,
os cabras surpreendidos
acordaram atordoados.
[...]
O fuzil de Lampião
na luta não tinha falha,
da boca saía fogo
parecendo uma fornalha
ou uma metralhadora
descarregando a metralha.
[...]
Durava já duas horas
essa luta sem cessar,
Lampião foi dar um salto
mas no pulo deu azar
pois recebeu uma bala
no esquerdo calcanhar.
[...]
Alguns meses Lampião
tratando o seu calcanhar,
na serra de Baixa Verde,
com o grupo a descansar
perto da Vila de Patos
pôde se recuperar.
Corria até a notícia
que ele havia morrido
enquanto isso saía
com um grupo decidido
a atacar, encontrando
o povo desprevenido.
Manoel D’Almeida Filho

Referências: 

ALENCAR, Chico et al. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1994.
MEYER, Marlyse. Autores de cordel: literatura comentada. São Paulo: Abril, 1980. 
ROCHA, Melquíades da. Bandoleiros das caatingas.  In: Coletânea de documentos históricos para o 1º grau. São Paulo: SE/Cenp, 1980. 
ROITMAN, Valter. Cangaceiros – Crime e aventura no sertão. São Paulo: FTD, 1997.