"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 28 de abril de 2012

Os hebreus

Yahweh, em grafite hebraico do século VIII a.C., com a inscrição "Eu te abençoo por Yahweh de Samaria e sua Asherah". Península do Sinai

Os hebreus desenvolveram sua civilização no primeiro milênio a.C. Ela não tem, portanto, a antiguidade da civilização egípcia ou mesopotâmica, embora tenha convivido de maneira estreita com essas duas civilizações (na proto-história dos hebreus, Moisés tira o seu povo do Egito no século XIII e Nabucodonosor da Babilônia destrói o templo de Jerusalém em 586). [...]

A religião judaica moderna, originária daquela praticada pelos hebreus antigos, tem um calendário que já chega perto dos 6 mil anos. 

[Os hebreus] se constituem em ponte entre as civilizações do Oriente Próximo e a nossa, a civilização ocidental. Por meio deles conhecemos mitos e ciência, práticas sociais e valores de povos de toda a região. Estudos que utilizam a Bíblia não de forma dogmática, mas como fonte de informações históricas, obtiveram referências que descobertas arqueológicas depois confirmaram.

[...]

O estudo dos hebreus é importante também, e principalmente, por causa do monoteísmo ético que surge e se desenvolve entre eles, constituindo-se em ponto de partida do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

[...]

* Saindo de Ur, na Caldéia. As origens dos hebreus localizam-se na Mesopotâmia. Isso é contado na Bíblia e comprovado por diversas evidências. O hebraico é uma língua semita, pertencente ao mesmo grupo do aramaico e de outras línguas faladas na Mesopotâmia [...].

Notável mesmo é verificar a utilização de mitos mesopotâmicos entre os hebreus. [...] 

O dilúvio sumério fala de Ziusudra construindo um enorme barco, da inundação varrendo as cidades, de tempestades de vento, , do barco jogado em todas as direções, da luz finalmente aparecendo no céu, do sacrifício que faz Ziusudra e da reconstrução do mundo. [...]

E o que dizem os hebreus?

Falam de uma arca construída por Noé, de quarenta dias e noites de chuva, da cheia superando os montes mais altos, da arca resistindo a tudo, até que "cerraram-se as janelas dos céus e a chuva dos céus se deteve". Noé sacrifica um animal a deus e a reconstrução se inicia.

Coincidência? Não.

O mito é mesopotâmico e foi apropriado pelos hebreus, para os quais o importante não era a história, mas a moral da história. Nem teria muito sentido um mito sobre dilúvio desenvolver-se numa região onde as chuvas são limitadas [...], os rios insignificantes [...] e não há degelo de montanhas nevadas.

Já na Mesopotâmia os rios pregavam constantes sustos, ora mansos, ora violentos, em vista do degelo em sua origem, nas montanhas da Armênia. Até os deuses nos dão conta da instabilidade dos rios e do temor que os habitantes tinham de sua variação.

Por tudo isso é de se acreditar na origem mesopotâmica dos hebreus.

* O início do povo hebreu. É preciso ter presente que a Bíblia tem um compromisso básico com a unidade do povo hebreu e não com a narrativa fiel de acontecimentos. Hoje em dia até autores religiosos, cristãos e judeus, duvidam, senão da existência física dos três patriarcas (Abrahão, Isaac e Jacó), ao menos da genealogia que estabelece a sucessão entre eles. (Abrahão pai de Isaac pai de Jacó). O fato de questionarmos a historicidade de alguma personagem não significa que não possam tirar da história contada informações que nos interessam. O narrador acaba referindo-se a costumes e padrões de comportamento que caracterizam uma época e dizem respeito também a mitos que derivam de uma região. Assim, não há contradição entre questionar a historicidade de personagens bíblicos, colocar em dúvida alguns dos fatos milagrosos ali narrados e utilizar o material como fonte para o trabalho do historiador.

A questão da historicidade dos patriarcas tem a ver com a própria questão de quem teria sido o primeiro hebreu, isto é, de quando poderíamos datar a existência dos hebreus como povo. [...]

A Bíblia fala de José, filho de Jacó, indo para o Egito, aprisionado e depois funcionando como ponta-de-lança para a vinda de toda a família. Isso bateria bem com a presença de clãs semíticos durante um certo tempo no delta do Nilo, documentada em material egípcio. [...]

Ramsés II reinou de 1290 a 1224 e teria sido ele o faraó da história de Moisés. De qualquer forma, há uma referência aos apirus ou abiru trabalhando para Ramsés II. Abiru e ibri ou ivri (hebreu, em hebraico) devem ser o mesmo povo. Como saíram do Egito, por que e quantos não sabemos, mas a ideia de entrada de um grupo de tribos na Cananéia lá por 1230/1220 é apoiada em documentos. Pouco depois, por volta de 1190 estabeleciam-se os filisteus, derrotados por Ramsés III, e ocupavam as cidades litorâneas como Ascalon, Asdob e Gaza. Convém lembrar que da palavra filisteu (plishtim, em hebraico) deriva o termo Palestina, uma das várias denominações da região.

As tribos que se instalaram em Canaã seriam as mesmas que de lá haviam saído tempos antes, ao ir para o Egito? É de acreditar que não. Quando para lá se transferiram, premidas pela fome, não foram sozinhas, mas no bojo de um largo movimento de povos famintos. Uma parte dos descendentes de Jacó teria talvez ficado lá, outra teria-se miscigenado. O nome de Moisés, tipicamente egípcio, mostra bem certa preocupação com a assimilação que as tribos instaladas no Egito tinham. Também o grupo levado por Moisés a Canaã não era homogêneo, como reconhece a própria Bíblia. Bastava o líder voltar as costas, que a turma adorava outros deuses. Tanto assim que o grupo, não sendo ainda um povo ou uma tribo, foi denominado "geração do deserto", tendo de caminhar durante anos até adquirir alguma solidariedade grupal.

Assim, embora reconhecendo as origens dos hebreus nos descendentes de Jacó (José e seus irmãos, na narrativa bíblica), só podemos aceitar o início do povo hebreu a partir do momento em que se instalam na região de Jericó algumas tribos que lutam juntas, sob a chefia de Josué, para conquistar um espaço onde possam viver.

Com isso, inaugura-se o ciclo de mais ou menos duzentos anos que vai até o início da monarquia, com Saul, em 1030.

* Juízes e reis. De 1200 a 1030 os hebreus desenvolvem um sistema tribal com a ausência de propriedade particular de bens de produção. Governantes existiram só de passagem e por ocasião de guerras, quase sempre contra os filisteus. Sansão terá sido o mais conhecido dos juízes, denominação dada a esses líderes que não diferiam de outros chefes militares instituídos por federações tribais. [...]

[...] os anciãos de Israel vêm a Samuel, juiz na ocasião, e solicitam um rei "como o têm todos os povos". Samuel conversa com o seu deus, que discorda da ideia, alegando uma série de mazelas que iriam ocorrer com a instituição da monarquia: o rei se apropriaria dos jovens do povo, transformando-os em soldados e cocheiros, em "lavradores dos seus campos e segadores de suas messes"; exigiria dízimos, expropriaria servos e animais e os colocaria a seu serviço. E, finalmente, colocaria o próprio povo a seu serviço, em servidão.

Trata-se de uma preciosa descrição da transição de uma sociedade tribal sem poder central e métodos coercitivos de trabalho para uma monarquia centralizada, cuja organização exige mão-de-obra disciplinada a serviço da organização que precisa alimentar muitas bocas destinadas a tarefas não produtivas.

O cronista que escreveu esse trecho da Bíblia (I Livro de Samuel) teria sido um profeta se não tivesse escrito isso tudo alguns séculos depois de os acontecimentos terem ocorrido. É como se alguém, sabedor de um fato, relatasse-o e colocasse uma data bem anterior para dar a impressão de ter antevisto a história. Isso é muito utilizado como recurso narrativo na Bíblia, que, ao contrário do que muita gente pensa, não foi escrita na ordem cronológica que aparece agora. No caso, nosso cronista foi um profeta do passado.

Com Saul, instaura-se a monarquia entre os hebreus. Mas já nessa ocasião havia uma divisão entre as tribos do norte (Israel) e as do sul (Judá) e Saul fracassa na tentativa de atrair Judá ao seu reino. Morre nessa tentativa fracassada.

Davi tem mais sucesso. Começa organizando o pequeno reino de Judá, constituído da tribo de Judá e de cineus, iemareus e outros povos não-hebreus, sediados na cidade de Hebron. Bom soldado e líder carismático, Davi estende seu poderio derrotando os arquiinimigos filisteus e conquistando a cidade de Jerusalém, a qual transforma em capital do reino.

Manda construir um palácio e verifica que falta algo muito importante ao seu reino e a Jerusalém: o prestígio religioso. Descobre, ou manda fazer, em algum local o que afirma ser a arca da aliança e a traz, com muita pompa. Com isso, legitima o seu poder "pela graça de deus", fortalecendo-o mais e mais.

A organização do Estado torna-se mais complexa e cara; os mercenários, que constituíam parte importante do exército de Davi, tinham de ser pagos, assim como tinha de haver recursos para as construções que edificava com bastante luxo. A solução era manter o expansionismo, conquistar e saquear, o que passou a ser feito com considerável sucesso.

Mesmo no seu momento máximo, o reino de Davi era insignificante se comparado aos grandes impérios egípcios, babilônicos ou hititas. Mas era o máximo que se edificara na região em séculos. Aos olhos dos hebreus, então pouco mais que beduínos, aquilo devia ser considerado uma coisa de outro mundo e Davi é o símbolo do poder político dos hebreus, na Antiguidade e, por extensão, no moderno Estado de Israel. O historiador Adolphe Lods lembra, a propósito, que a primeira referência de caráter messiânico entre os hebreus foi a esperança da volta à idade de ouro dos tempos do rei Davi.

* Salomão e o templo. Salomão foi um soldado inferior a seu pai, Davi, mas compensou essa deficiência com uma grande habilidade política. Logo que subiu ao poder, perdeu algumas terras. Compensou-as com acordos e casamentos em que recebia como dote cidades inteiras. Foi amigo de faraós e reis fenícios, possuiu um enorme harém, construiu palácios e fortalezas.

"Porém, para sustentar a política de grandes construções e o luxo da corte, Salomão instituiu impostos opressivos e criou um corpo de funcionários encarregados da fiscalização e cobrança dos tributos. Além disso, os camponeses eram recrutados à força para trabalhar nas obras públicas. Tais medidas geraram descontentamentos e acarretaram revoltas sociais." BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho, História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 83.

Descobriu com os fenícios que o comércio podia dar mais lucro que a pilhagem, mas não deve ter tido um sucesso muito grande nisso, já que foi obrigado a cobrar taxas de seus súditos, o que lhe proporcionou muita impopularidade. Figura das mais mitificadas, a ele são atribuídas tanto textos filosóficos como eróticos (Cântico dos Cânticos) [...] Ao mesmo tempo que julgava com extrema sabedoria, era amante voraz e sofisticado - consta que tinha setecentas esposas princesas e trezentas concubinas (I Reis, 11, 3). Além de opções noturnas, elas representavam uma extensa rede de alianças políticas.

A mitificação de Salomão decorre do fato de ter sido ele o construtor do famoso templo de Jerusalém, ponto de referência espiritual e material do povo, tanto na época em que foi construído como depois. O templo passou a funcionar como uma espécie de símbolo nacional; da mesma forma como Jerusalém, metaforicamente, tinha o significado de Israel toda, o templo significava Jerusalém. Até hoje, judeus religiosos pedem a Deus a honra de estarem "o ano que vem em Jerusalém" para poderem rezar junto ao muro ocidental, o único que restou do templo.


Parte do muro ocidental

Com o templo, Salomão dá um novo local a Iavé, o deus dos hebreus, a quem tinham sido atribuídas diversas residências antes.

Inicialmente, Iavé morava nos desertos do sul (Juízes 5, 4). Depois, aos poucos, Iavé mudou para a terra de Canaã, passando a possuí-la toda, mas não saindo dela. Um deus "nacional" que não fazia prosélitos, nem gostava de ser adorado fora de seu país, pois terra estranha não é local adequado, por ser impuro. A ligação material com a terra era tão forte que quando Naaman, general arameu, foi curado por Eliseu e quis dar graças a Iavé, transportou para o seu país, no dorso de duas mulas, um pouco da terra de Canaã, sobre a qual construiu um altar (II Reis, 5, 17); para todos os efeitos, ele se erguia sobre território de Iavé...

Pode-se inferir, pela leitura de alguns textos, que Iavé habitava os santuários e depois, de forma especial, o santuário do templo. E em outros fala-se no céu como habitat de Iavé. Salomão, ao levantar o templo, buscava localizar fisicamente Iavé, encarcerá-lo em seu palácio e submetê-lo aos interesses da monarquia.

As regras da religião tinham sido bastante livres até então; cada qual dialogava com Iavé da sua maneira e sem intermediários. A instauração de sacerdotes para fazer os sacrifícios segundo determinadas normas inacessíveis aos simples mortais visava estabelecer uma forte relação de dependência entre povo e poder político, por meio da ritualização da religião.

* O monoteísmo ético. Apesar dos esforços de Salomão, seu reino não sobreviveria após sua morte. O novo rei, Roboão, só consegue governar Judá, já que as tribos de Israel se desmembram. Pressionados pelos pequenos Estados em volta e pelos grandes impérios próximos, nunca mais haveria um Estado forte e independente na região. Os reinos perderam poder, mas seus governantes não perderam a arrogância e a vontade de conservar a suntuosidade a que estavam acostumados. Isso lhes custou desobediência civil e questionamento de sua autoridade.

O reino de Israel sobrevive até o ano 720, quando é destruído pelos assírios, os quais removem grande parte da população para outras partes do seu império. O reino de Judá vais se mantendo, aos trancos e barrancos, até o ano de 586, quando Nabucodonosor destrói Jerusalém e o templo, símbolo do deus nacional e da ligação entre a divindade e o poder político.

As tribos de Israel acabam assimilando os hábitos e a cultura dos povos vizinhos e perdem totalmente sua identidade com Iavé. [...] Os israelitas ou judeus, descendentes dos hebreus, tomam a herança cultural e, por meio de uma série de transformações, carregam-na até agora.

[...]

Entre os hebreus, Iavé evoluiu de um deus tribal para um deus universal, de um deus de guerra, senhor de exércitos, para um juiz sereno, consciência social e individual, exigente de justiça social.

Os profetas sociais, Amós e Isaías, principalmente, foram os grandes responsáveis por esse passo.

Vivendo no século VIII, os profetas sentiam o peso da monarquia sobre o povo, o luxo dos poderosos convivendo com a miséria dos camponeses e criadores, palácios ao lado de palhoças. Utilizando-se de antiga tradição do templo dos cananitas, a tradição de prever o futuro em nome de uma entidade superior inspiradora, os profetas lançam suas negras profecias sobre os que tratam tão mal o pobre, pensando apenas em si mesmos.

É possível que no seu discurso estivesse presente o grito de liberdade de um povo de criadores, livre por excelência, preso agora a obrigações de pagar impostos a um governo que pouco lhes dava em troca.  Deviam os profetas representar o inconsciente coletivo do inconformado grupo com a perda de campos de pastagens, insatisfeito com a centralização monárquica, desconfiado daquele templo que exigia tributos.

O povo tinha nostalgia do período tribal: o olhar para o passado sem injustiças sociais, sem opressão, sem impostos para sustentar a nobreza e o exército inúteis acabou se constituindo em mensagem para o futuro.

Vejam o que diziam os profetas:


De que me serve a multidão de vossas vítimas? Diz o senhor
Já estou farto de holocaustos de cordeiros
e da gordura de novilhos cevados [...]
Deixai de pisar nos meus átrios.
De nada serve trazer oferendas [...]
Vossas mãos estão cheias de sangue, lavai-vos, purificai-vos.
Tirai vossas más ações de diante de meus olhos.
Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem.
Respeitai o direito, protegei o oprimido:


Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva.


(Isaías, 1, 2-7)

O texto é claro no seu anti-ritualismo, na sua crítica aos sacrifícios do templo - prática incorporada à religião -, na sua crítica àqueles que, por meio de uma religião formal, buscavam a divindade. Isaías diz que Iavé não quer oferendas nem rezas, quer que as pessoas ajam de forma correta, isto é, pratiquem a justiça social.

O que fica dos hebreus não é, portanto, o som da lira de Davi ou o discutível e limitado poder político; não fica também o deus tribal nem o Senhor dos Exércitos. Fica a mensagem por uma sociedade mais justa, utopia sem a qual é difícil imaginar o sentido das próprias sociedades humanas.

PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2010. p. 105-118.

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