"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O fim da Idade Média: florescimento do comércio, das cidades e da cultura

Comerciante de especiarias

Por volta do ano 1000 o mundo cristão, depois de atravessar muitos séculos de desordens e devastações, começou a conhecer certa estabilidade econômica, social e política. O impulso dado ao comércio e o renascer das cidades, como centros de economia e cultura, permitiram à Europa dos séculos XII e XIII atingir um grau cada vez mais elevado de prosperidade.

* Florescimento do comércio. Por longo tempo a terra representara a principal fonte de riqueza. As cidades haviam-se em parte esvaziado e nos feudos abrigara-se a maioria da população empobrecida, durante o longo período de invasões. Quando estas cessaram registrou-se na Europa um sensível aumento de população e os feudos não puderam mais oferecer trabalho e abrigo ao crescente número de habitantes. Além disso, o progresso nas técnicas agrícolas foi diminuindo a necessidade de braços para a lavoura das terras dos senhores feudais. O aumento populacional e o progresso agrícola levaram parte da população camponesa a deslocar-se dos feudos para as cidades.

- Progresso agrícola. Uma série de inovações técnicas permitiu facilitar as tarefas de plantio e de colheita, conduzindo a uma produção agrícola maior. O arado de madeira foi substituído pelo arado de ferro, a charrua, que revolvendo a terra em profundidade, preparou melhor o solo para a obtenção de colheitas fartas. O peitoral, tipo de atrelagem, aproveitando melhor a força do cavalo, facilitou a tração de arados e carretas, antes puxados a bois. A introdução da ferradura para cavalares e muares deu-lhes resistência e mobilidade maiores, permitindo transportes mais rápidos a longa distância. Apareceu na Europa quase simultaneamente com o estribo. A água passou a ser usada como força motriz para funcionamento de moinhos e de serras, antes movidos à mão, dispensando, assim, o emprego de mão-de-obra numerosa. Foi iniciada a cultura da aveia que, substituindo a cevada, melhorou consideravelmente, com seu alto valor nutritivo, a alimentação tanto humana como animal. Intensificou-se a cultura da vinha, tornando-se cada vez mais rendosa, e a criação de ovelhas foi aumentando à medida que um comércio crescente de tecidos de lã exigia qualidade sempre maior de matéria-prima.

Com o aumento populacional cresceu a demanda de produtos agrícolas, levando camponeses a deslocarem-se para outras regiões de terras ainda virgens, que foram desbravadas e cultivadas; derrubaram florestas, drenaram pântanos e conquistaram novas áreas ao mar, construindo diques de proteção.

- Desenvolvimento do artesanato e do comércio. O artesanato que durante muito tempo ficara reduzido, começou a ganhar importância quando elementos provenientes de zonas rurais procuraram novas condições de trabalho nas cidades, aí desenvolvendo  atividades artesanais das mais variadas. Para defender seus interesses os artesãos organizaram-se em ligas, grêmios ou corporações, segundo o ofício que exerciam, sob a proteção de um santo padroeiro. Os objetivos das corporações eram: 1. regulamentar a profissão, a fim de que somente o indivíduo habilitado pudesse exercê-la; 2. controlar a qualidade e o preço do produto, para defender o bom nome da classe e dificultar a concorrência; 3. amparar os artesãos necessitados; 4. dirigir o aprendizado da profissão.

O desenvolvimento do artesanato reativou o comércio; os vários artigos produzidos pelos artesãos começaram a ser vendidos por comerciantes que, a princípio, se deslocavam de aldeia em aldeia, de cidade em cidade (segundo metade do século X).

Assim o comércio foi-se restabelecendo, aumentando gradativamente; as rotas comerciais multiplicaram-se e estenderam-se. Em pontos de confluência dessas rotas localizaram-se, a partir do século XI, importantes feiras, centros de comércio dos mais variados artigos provenientes de países os mais diversos. Desempenharam papel de destaque as feiras da Champanha (França), onde se reuniam, periodicamente, comerciantes de toda a Europa.

Os comerciantes, assim como os artesãos, formaram associações corporativas, ou ligas, para a defesa de seus interesses e a expansão do comércio a vários países. As corporações de comerciantes tornaram-se muito poderosas por volta do século XIII, quando surgiu a mais famosa dessas associações, a Liga Hanseática (de Hansa = companhia), de comerciantes alemães, que chegou a congregar 80 cidades, chefiadas pelos portos de Lübeck, Bremen, Hamburgo e Colônia (no Reno).

As atividades comerciais, de importação e exportação de produtos, irradiaram-se, por mar e por terra, de três grandes regiões econômicas: Itália, Flandres, costas do Mar Báltico.

Portos italianos se enriqueceram comerciando com o Oriente. Veneza importava em larga escala especiarias (cravo, canela, noz-moscada, pimenta), compradas no Egito e na Síria às caravanas mercantes provenientes da Arábia, da Índia e da China. Transportava para a Europa carregamentos de produtos da terra como arroz, laranjas, damascos, figos, passas e produtos fabricados, tais como perfumes, medicamentos, substâncias corantes e tecidos (algodão, seda, gaze, musselina). Para o Oriente, exportava madeiras e armas. Gênova, depois do século XII, passou a exportar para o Oriente os tecidos de lã de Flandres e Florença, que no fim da Idade Média se haviam tornado comercialmente tão importantes quanto as especiarias.

Em Flandres, Bruges adquiriu, no século XIII, extraordinário destaque internacional, substituindo as feiras periódicas que haviam diminuído em virtude de se terem os comerciantes fixado nas cidades. Isso permitiu contato permanente entre comerciantes de vários países, que mantinham em Bruges grandes lojas, depósitos e armazéns. Além disso, era o principal porto de encontro dos navios mercantes do Mar do Norte e do Báltico.

Quando navios alemães, mais pesados, possibilitaram melhor transporte a grandes carregamentos, a Liga Hanseática passou a dirigir o comércio no norte da Europa, conquistando a mesma importância que tinham os portos italianos no Mediterrâneo.

Bruges continuou centro de ativo comércio para onde convergiam os navios da Liga Hanseática, trazendo trigo da Prússia; peles e mel da Rússia; madeira, alcatrão, peixes secos, arenques salgados das regiões escandinavas e levando lã da Inglaterra, sal e vinhos da França.

Não menos de 150 navios sobem o Zwin, dispersam-se pelos canais, e confundem-se, no crepúsculo, os telhados pontiagudos das casas, os campanários das igrejas, as asas abertas dos moinhos com a floresta entrelaçada de seus mastros. Do fundo de seus porões, marinheiros de todas as raças, do poente e do levante, ou dos frios e sombrios países do Norte descarregam numerosos fardos nos quais se encontram, lado a lado, a cera, o cobre, os couros de Marrocos, as especiarias do Egito, da Arábia e do Sudão, as tâmaras do deserto, os limões, as romãs e o azeite de Navarra e de Andaluzia, as peles da Rússia, os metais da Polônia, a cutelaria da Inglaterra, os vinhos das margens do Reno e os da França. (De uma crônica flamenga do século XV)

A quantidade de mercadorias transportadas pela Hansa foi igual ou mesmo maior do que a transportada no Mediterrâneo. No entanto, os capitais empregados e os lucros obtidos foram menores. Daí a grande influência financeira dos comerciantes italianos no fim da Idade Média.

O reflorescimento do comércio trouxe ampla circulação do dinheiro. Apareceram moedas cunhadas em metal precioso: em ouro, o florim (Florença), o ducado (Veneza), o escudo (França), o cruzado (Portugal); em prata, a libra esterlina (Inglaterra), adquirindo todos enorme prestígio nos mercados europeus.

Em conseqüência da importância crescente da moeda, nasceu, da classe dos comerciantes, a profissão de cambista. Os cambistas, além de fazerem o câmbio (= troca) do dinheiro, controlavam o peso e o teor em metal precioso das moedas. Como trabalhavam junto a um banco ou balcão de madeira, passaram também a ser chamados banqueiros. Os primeiros cambistas surgiram na Itália e logo banqueiros da cidade de Florença passaram a facilitar transações comerciais, introduzindo novo sistema de pagamento por meio de cheques e letras de câmbio, a aceitar depósito em dinheiro dos comerciantes ou fazer-lhes empréstimos.

As facilidades nas transações comerciais, os contatos múltiplos entre homens de negócio de vários países enriqueceram de modo extraordinário a classe dos comerciantes, permitindo-lhes tornarem-se uma potência financeira da qual até mesmo os reis chegaram a depender.

* Florescimento das cidades. A retomada da vida econômica, a concentração de atividades artesanais e bancárias nos núcleos urbanos deu enorme impulso às cidades, cuja vida, durante largo tempo, havia dependido exclusivamente da agricultura circunvizinha e de mercados locais que supriam as necessidades mais prementes de seus habitantes.

Além de garantir com suas muralhas proteção e segurança a um número sempre crescente de moradores, as cidades passaram a oferecer boa oportunidade de lucros a todas as classes: comerciantes, artesãos e camponeses das vizinhanças.

Com o aumento da população as cidades tiveram de ampliar-se. À volta do primeiro núcleo fortificado - onde se erguia a catedral, o palácio do bispo e, por vezes, o castelo do senhor de terras - surgiu novo núcleo, também cercado de muralhas, que se foi tornando mais importante do que o primitivo núcleo, à medida que nele se estabeleciam os prósperos artesãos e comerciantes. Os moradores desse segundo núcleo chamaram-se burgueses (da palavra alemã burg = fortificação), constituindo uma nova classe de homens livres, desvinculados do sistema feudal.

A liberdade tornara-se indispensável ao exercício de novas profissões; já no século XII o servo da gleba considerava-se livre depois de ter morado um ano e um dia em uma cidade. Tornou-se conhecida a frase alemã: "O ar da cidade torna o homem livre".

Todo aquele que vier à cidade tem permissão de aqui se estabelecer livremente e sem ser molestado. Quem tiver residido por um ano e um dia na cidade, sem que qualquer senhor tenha exigido sua volta, gozará, daí em diante, e com toda a segurança, de liberdade incontestável. (Dos Direitos da cidade de Friburgo, 1120)

Desde o início do desenvolvimento das cidades os burgueses buscaram instituir governos próprios, as comunas, e lutaram para conseguir os chamados foros ou forais ou cartas de franquia que lhes garantissem esse direito. A autonomia administrativa das comunas, consolidada no século XII, tinha como principal objetivo fortalecer o sistema defensivo da cidade. Era dever de cada morador contribuir de acordo com seus ganhos para a construção e conservação das muralhas da cidade; esse tributo ou imposto pago em benefício do bem comum substituiu o tributo arbitrário fixado pelo senhor feudal em benefício próprio. Os impostos destinavam-se também à construção de mercados, embarcadouros, pontes, igrejas paroquiais, a disciplinar o exercício do artesanato, a controlar o suprimento de gêneros.

Uma cidade, ao tornar-se independente, elegia um prefeito e um conselho de magistrados encarregados de recolher impostos e zelar pela manutenção da ordem e da segurança da comuna. O território de cada comuna tinha os mesmos privilégios que eram conferidos aos seus habitantes; era lugar de refúgio e liberdade; pátria, para os moradores de uma comuna, era a sua cidade e nenhuma pessoa de fora podia nela residir sem prévio consentimento da comuna.

A evolução das cidades rompeu a estrutura feudal, criando um clima propício ao florescimento cultural, ao aparecimento das nacionalidades, dos Estados modernos.

* Florescimento da cultura. Para atender ao crescimento da população e às exigências de uma sociedade ampla e diferenciada foi necessário reorganizar os centros de primeiros estudos (escolas paroquiais), bem como organizar centros de estudos mais adiantados, em conventos maiores. Estes centros de estudos adiantados adquiriram grande importância, estabeleceram regulamentos próprios, constituindo-se em comunidades, semelhantes às corporações de professores e estudantes, e dando origem às universidades, que foram para os burgueses importante fator de ascensão social. Em todas as universidades os estudos eram feitos exclusivamente em latim, facilitando assim aos estudantes de várias regiões seguirem cursos de sua preferência em uma ou outra universidade e aprimorando ao mesmo tempo a formação religiosa tão característica do mundo medieval.

A força da religião cristã e o papel da Igreja influenciaram de modo decisivo todos os setores da vida intelectual e artística. Com as universidades expandiu-se a vontade de saber e os estudiosos preocuparam-se em obter conhecimentos mais vastos, para isso traduzindo para o latim obras científicas e filosóficas de autores gregos e árabes.

No campo da filosofia mereceram grande atenção os escritos de Aristóteles; do confronto de seu pensamento lógico com os ensinamentos da Igreja surgiu a filosifia Escolástica, cujo maior representante foi São Tomás de Aquino. Em sua obra, Suma Teológica, São Tomás tentou resolver a controvérsia surgida entre fé e razão (filosofia aristotélica), declarando que ambas são dádivas de Deus: certas verdades são entendidas pela razão, outras percebidas através da fé.

No campo das ciências, traduções de obras árabes e gregas exerceram grande influência no mundo medieval: permitiram ampliar os estudos matemáticos adotando os algarismos árabes, a álgebra, a trigonometria, a geometria euclidiana; contribuíram para o progresso dos estudos biológicos e médicos.

A invenção da bússola, de outros instrumentos náuticos e do leme fixo das embarcações, o aperfeiçoamento dos guindastes para melhor serviço nos portos e a feitura de mapas de navegação mais precisos deram grande impulso à arte de navegar, abrindo caminho para as descobertas geográficas da Idade Moderna.

A influência da Igreja manifestou-se também em certas produções literárias redigidas em latim. Destacaram-se os autos sacros, peças em torno da vida de Cristo, da Virgem Maria e dos santos, representadas dentro das igrejas e, mais tarde, em adros, em praças de mercado, feiras, edifícios de corporações.

O latim clássico, porém, já não era acessível ao povo, que começara a desenvolver formas literárias em vulgar. Chamou-se vulgar à alteração sofrida pela língua latina em contato com os idiomas falados por diferentes povos em diferentes regiões. Do vulgar foram evoluindo, pouco a pouco, as várias línguas europeias. Nesses idiomas, em fase de evolução, foram escritas narrativas épicas rememorando feitos heróicos nas lutas contra os invasores. Destacam-se: no século VIII, o Beowulf (redigido em anglo-saxão, base do inglês); no século XI, a Canção de Rolando (em francês antigo); no século XII, a Canção dos Nibelungos (em alemão antigo). Vinculadas às cortes medievais, à vida aventurosa e errante dos cavaleiros desenvolveram-se a poesia e a prosa cavalheiresca bem como a poesia lírica, composta por trovadores e menestréis que, de castelo em castelo, cantavam a honra, a coragem, o dever, o amor, a dedicação do cavaleiro e a formosura, a meiguice, a fragilidade de sua dama. No século XIII surgiu Dante Alighieri, o primeiro grande poeta que resumiu a visão filosófica e o espírito religioso do mundo medieval, descrevendo em sua obra Comédia (mais tarde conhecida por Divina Comédia) uma viagem imaginária, simbólica, através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Os escritos de Dante, tanto os redigidos em latim quanto os redigidos no dialeto de lorença, serviram de inspiração a outros poetas e o dialeto florentino deu origem ao italiano.

Assim como a literatura, também a arquitetura, a escultura, a pintura atestam a poderosa inspiração da fé religiosa. A arquitetura foi caracterizada por dois estilos, o românico e o gótico. O estilo românico lembra certas dominantes dos edifícios de Roma antiga. Usou paredes espessas, colunas maciças, arcos redondos, desenvolvendo-se na horizontal. O estilo gótico, cujas principais características são altas colunas e arcos em ogiva, desenvolveu-se na vertical. Paredes menos espessas permitiram a abertura de amplas janelas ornamentadas por magníficos vitrais coloridos. As fachadas das catedrais góticas foram ricamente ornadas de esculturas. Dominando boa parte da Idade Média, o gótico difundiu-se por toda a Europa, marcando também a construção de palácios e edifícios públicos.

Ao lado da pintura, cuja expressão mais significativa é dada pelas obras dos artistas italianos Cimabue e Giotto, alinharam-se as artes menores representadas por esplêndidos trabalhos em esmalte, mármore, bronze, ourivesaria, e em tapeçaria usada para decorar as paredes dos palácios.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1980. p. 155-163.

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