"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 6 de agosto de 2011

Do mito à história das mentalidades

Helena (à direita, nas costas do jovem) sendo raptada por Teseu. Ânfora Ática, 510 a.C.


* A pré-história da história. "História" é uma palavra de origem grega, que significa investigação, informação. Ela surge no século VI antes de Cristo (a.C.). Para nós, homens do Ocidente, a história [...] iniciou-se na região mediterrânea [...].

Antes disso, porém, vemos que os homens, desde sempre, sentem necessidade de explicar para si próprios sua origem e sua vida. A primeira forma de explicação que surge nas sociedades primitivas é o mito, sempre transmitido em forma de tradição oral. Entre os conhecimentos práticos, transmitidos oralmente de geração a geração, essas sociedades incluem explicações mágicas e religiosas da realidade. [...]

O mito é sempre uma história com personagens sobrenaturais, os deuses. Nos mitos os homens são objetos passivos da ação dos deuses, que são responsáveis pela criação do mundo (cosmos), da natureza, pelo aparecimento dos homens e pelo seu destino.

Os mitos contam em geral a história de uma criação, do início de algo. É sempre uma história sagrada. [...]

Em geral o mito é visto como um exemplo, um precedente, um modelo para as outras realidades. Ele é sempre aplicado a situações concretas. Existem inúmeros mitos da criação do mundo (mitos cosmogônicos) que são vistos como exemplos de toda situação criadora. [...]

Conhecemos a existência, entre o IV e o III milênios a.C., de sociedades mais complexas, nas quais existe a escrita e um governo centralizado, que dirige uma sociedade organizada em uma hierarquia social. Nessas sociedades, as fontes históricas mais remotas são as inscrições, assim como os anais religiosos (listas de sacerdotes, cerimônias religiosas, etc.).

Esse governo é em geral monárquico, e a sua origem é sempre vista como divina. Os reis representam os deuses e são eles que tudo decidem, sendo seus atos registrados em anais. [...]

Entre essas civilizações destacam-se a egípcia e a mesopotâmica, duas das mais importantes na chamada Antiguidade Oriental.

[...]

Na Grécia, por volta do primeiro milênio a.C., o mito começa a ter uma conotação diferente: vamos encontrá-lo na poesia, por exemplo, na Ilíada, poema épico atribuído a Homero [...]. Nele encontramos lendas e mitos da época micênica, berço inicial da civilização grega. Entre outros mitos, lá referidos, encontramos o da origem da Europa. Europa era filha de Agenor, rei da Fenícia, país da Ásia Menor, no Oriente Próximo. Zeus, o principal dos deuses gregos, por ela se apaixona. Sob a forma de touro, vai seduzi-la e raptá-la, atravessando o mar Mediterrâneo e levando-a para a ilha de Creta. Lá ela vai se tornar a mãe de Minos e seu nome vai ser dado a uma das três partes do mundo antigo. É curioso notar que a civilização europeia é, em grande parte, herdeira da civilização grega. Por esse mito, vemos uma relação entre a Europa e a Fenícia; ora, os fenícios são os grandes navegadores que difundiram pelo Mediterrâneo a civilização do Oriente Próximo; a eles devemos, entre outras contribuições, o alfabeto europeu ocidental.

* O aparecimento da história. A explicação mítica não vai, evidentemente, desaparecer, continuando até hoje em quase todas as manifestações culturais, não como a única forma de explicação da realidade, mas paralela a outras, como a história.

Ao recontar ou recopiar essas explicações, num certo momento, os homens passam a refletir sobre elas. É especialmente um estudioso dos mitos, Hecateu de Mileto [...], que vai, ao voltar do Egito, dizer:

"Vou escrever o que acho ser verdade, porque as lendas dos gregos parecem ser muitas e risíveis".

Na região onde Hecateu vive, cruzam-se muitas civilizações, e os viajantes, em seus contatos mútuos, vão-se esclarecendo.

A história, como forma de explicação, nasce unida à filosofia. Desde o início elas estão bastante ligadas [...]. São os próprios gregos que descobrem a importância específica da explicação histórica. Heródoto, de acordo com a orientação empreendida por Hecateu de Mileto, se propõe a fazer investigações, a procurar a verdade. Heródoto é considerado o pai da história, pois é o primeiro a empregar a palavra no sentido de investigação, pesquisa. Sua obra mais antiga começa assim:

"Eis aqui a exposição da investigação realizada por Heródoto de Halicarnasso para impedir que as ações realizadas pelos homens se apaguem com o tempo".

Ele e os primeiros historiadores gregos vão fazer indagações entre seus contemporâneos, aproveitando, para escrever a história, também, as tradições orais e os registros escritos.

Os cidadãos gregos querem conhecer a organização de suas cidades-estado, as transformações que elas sofrem. [...] Heródoto [...] estuda sobretudo a guerra entre os gregos e os persas [...]. Tucídides [...] vai estudar as guerras do Peloponeso [...].

[...]

A explicação não é mais atribuída a causas sobrenaturais, não são mais os deuses os responsáveis pelos destinos dos homens. Estes começam a examinar os fatores humanos, como os costumes, os interesses econômicos, a ação do clima, etc., embora ainda se encontrem referências aos mitos e aos deuses.

Há uma preocupação explícita com a verdade. Políbio [...] escreve:

"Desde que um homem assume atitude de historiador, tem que esquecer todas as considerações, como o amor aos amigos e o ódio aos inimigos..." [...]

[...]

A cultura romana é, em grande parte, herdeira da cultura grega. Às características da história na Grécia, os romanos acrescentam sobretudo uma noção utilitária, pragmática: a história exalta o papel de Roma no mundo, servindo ao seu imperialismo. [...] A história é vista como mestra da vida [...].

* A história teológica. A essa visão unificada da humanidade, os judeus, povo do Oriente Médio dotado de uma religião e uma visão do mundo específicas, atribuem um outro sentido. Com a difusão da religião judaico-cristã no Império Romano, durante o período da desestruturação deste, temos grandes mudanças. O processo histórico pelo qual passa a humanidade é então unificado não mais em torno da ideia de Roma, mas de uma visão do cristianismo como fundamento e justificativa da história. A influência do cristianismo é tão grande em nossa civilização que toda a cronologia de nosso passado é feita em termos do seu acontecimento central, a vinda do filho de Deus à terra. Cristo, tornando-se homem, possibilita a salvação da humanidade, meta final da história. [...]

A história continua tendo uma visão do tempo linear, cujo desenvolvimento é conduzido um plano da Providência Divina. É a volta a uma explicação sobrenatural, semelhante à do mito, e também cosmogônica. Ela se impõe no início do período medieval [...] perdurando como forma única por toda a Idade Média, quando se forma a civilização europeia ocidental.

A realidade agora está dividida em dois planos: o superior, perfeito (representado por Deus) e o inferior, imperfeito (representado pelos homens). [...] O plano superior da realidade é a Cidade de Deus, enquanto que o plano inferior é a Cidade dos Homens.

[...]

O sentido global da história da humanidade é revelado por Deus aos homens, e a Igreja é a responsável pela orientação da humanidade em sua busca da salvação.

[...]

Os séculos iniciais da Idade Média são de regressão demográfica e cultural; a população vive em sua maior parte no campo e quase ninguém sabe ler [...]. A Igreja, grande proprietária de terras, é quem registra a organização e as formas de trabalhar essas terras. [...]

Somente membros do clero sabem ler e escrever. A maior parte do que foi escrito nessa época é feita pelo clero. Grande parte das fontes são, por exemplo, vidas de santos. [...]

Os documentos leigos vão começar a aparecer só bem mais tarde, nos séculos XII, XIII, com o renascimento urbano e comercial; surgem como registros de comerciantes particulares, diários de escudeiros, de cavaleiros famosos, de menestréis, etc.

A história escrita nesse período [...] se compõe sobretudo das chamadas crônicas ou anais, em que se relatam fatos, mais do que outra coisa. [...]

A Idade Média é um período em que se vê, associada à predominância da fé, uma enorme credulidade geral. Acreditava-se em lendas fantásticas, no paraíso terrestre, na pedra filosofal, no elixir da vida eterna, em cidades toda de ouro, etc. Existem lendas sobre os mares estarem assolados por monstros, sobre a terra que terminava de forma súbita por ser plana, etc. Toda essa mentalidade reinante refletiu-se na forma de se escrever a história, na qual há uma grande presença do milagre, do maravilhoso e do impossível.

Aos poucos isso tudo vai sendo substituído por um melhor conhecimento do globo, que a Europa vai descobrir e explorar. São publicados estudos de geografia, mapas, há uma renovação da visão do mundo como um todo, e a história acaba refletindo essas alterações.

* A erudição, a razão e o progresso na história. A sociedade europeia ocidental está, no período que é considerado como o início da Modernidade (século XVI), em plena desestruturação do sistema feudal. As condições de sociedade em crise permitem que um grupo social em formação (a burguesia) [...] vá se impor [...] ao longo de alguns séculos, num fenômeno de urbanização [...] que se prolonga até nossos dias [...].

Um mundo real devido à expansão comercial se estende à frente dos homens da Europa Ocidental, e eles vão se dedicar à sua compreensão. Um humanismo que procura focalizar sua atenção no homem, como centro desse universo, se impõe lentamente desde o final da Idade Média. [...]

Aos poucos, assim, vai-se formando uma concepção não teológica do mundo e da história. O conhecimento não parte mais de uma revelação divina, mas de uma explicação da razão. [...]

Durante o Renascimento, a cultura europeia ocidental, desprezando os dez séculos medievais, procura retomar a Antiguidade greco-romana, seus valores, sua arte, etc. [...] Com a preocupação pelos textos antigos e por sua exatidão, com a pesquisa e a formação de coleções de moedas, de objetos de arte, de inscrições antigas, vai ser levantado um enorme material para a reconstituição desse passado. [...]

[...]

No século XVIII, numa sociedade em plena transformação, com a desestruturação final do sistema feudal e o avanço da ordem burguesa, surge o Iluminismo, corrente filosófica que procura mostrar a história como sendo o desenvolvimento linear progressivo e ininterrupto da razão humana. Para os iluministas, a Idade Média foi o período das trevas [...].

A burguesia [...] vai procurar reorganizar suas formas de pensamento, buscando explicar a nova realidade. Não são mais os teólogos que estão no comando dessa explicação, mas sim os filósofos. [...]

[...]

No século XIX, temos a afirmação dos nacionalismos europeus e conflitos daí recorrentes. Nesse sentido, os Estados em organização e estabilização [...] vão estimular o interesse pelo estudo de sua história nacional. Surgem inúmeras sociedades de pesquisa [...].

* O materialismo histórico e a história acadêmica. No século XIX, temos a efetivação da sociedade burguesa e a implantação do capitalismo industrial. Ora, desde meados desse século o capitalismo é criticado como forma de organização da sociedade; nessa linha, destacam-se dois pensadores, Karl Marx e Friedrich Engels. Ambos elaboram uma nova concepção filosófica do mundo (materialismo dialético), ao fazerem a crítica da sociedade em que vivem e apresentarem propostas para sua transformação. Seu método aplicado à história é o materialismo histórico.

Os dois estudam sobretudo o capitalismo, a sociedade burguesa, suas leis de evolução e a transformação dessa realidade fundamental que, da Europa, se estende ao resto do globo. [...]

[...]

O materialismo histórico mostra que os homens, para sobreviver, precisam transformar a natureza, o mundo em que vivem. Fazem-no não isoladamente, mas em conjunto, agindo em sociedade [...]. O ponto de partida do conhecimento da realidade são as relações que os homens mantêm com a natureza e com os outros homens; não são as ideias que vão provocar as transformações, mas as condições materiais e as relações entre os homens.

[...]

Para Marx e Engels, a história é um processo dinâmico, dialético, no qual cada realidade social traz dentro de si o princípio de sua própria contradição, o que gera a transformação constante na história. A realidade não é estática, mas dialética, ou seja, está em transformação pelas suas contradições internas. No processo histórico, essas contradições são geradas pela luta entre as diferentes classes sociais. [...]

[...]

Na Europa, as primeiras universidades datam do século XIII, mas é somente no século XIX que o conhecimento histórico passa a ter uma presença específica em seus currículos. Daí em diante, o conhecimento histórico passa a ser produzido sobretudo no âmbito das universidades. [...]

[...]

É sobretudo na França que ocorrem as primeiras transformações dessa história. Os trabalhos iniciais que revelam essa revisão são os elaborados pelos historiadores franceses, professores universitários, da década de 30. Esses trabalhos são publicados na revista Anaes de História Econômica e Social, cujo primeiro número é publicado em janeiro de 1929. Esse grupo ficou conhecido como a "escola francesa" ou "escola dos Anaes"; seus grandes iniciadores foram Marc Bloch e Lucien Febvre. [...] Aceitam uma história total, que veja os grupos humanos sob todos os seus aspectos e, para tal, uma história que esteja aberta às outras áreas do conhecimento humano, numa visão global: economia, sociologia, política, etc.

* Perspectivas atuais. A expansão colonialista levou a Europa a entrar em contato com outros povos, outras formas de vida, outros costumes, outras instituições; mas essas outras formas de organização social eram sempre comparadas com a forma de organização europeia, que era considerada como o padrão. [...] O eurocentrismo, esse privilegiamento [...] continua. [...] a história é apresentada como um processo de desenvolvimento contínuo, desde a pré-história até o período contemporâneo; ela parece ter como meta final a civilização europeia ocidental [...].

A Segunda Guerra Mundial, ao projetar a importância dos EUA, da Rússia e do Japão, mostra aos historiadores a necessidade de rever suas posições eurocentristas. [...] A Europa não poderia mais ser vista como o centro do mundo; explicar a história em função da história da civilização ocidental não faz mais sentido. [...]

As maiores influências nos trabalhos de história, da metade do século em diante, são, portanto, no mundo ocidental, a visão do materialismo histórico e a visão da "história das civilizações", ligada à escola dos "Anaes" [...].

Os herdeiros da chamada "Escola dos Anaes", a partir dos anos 70, galgaram os mais importantes postos acadêmicos e editoriais; [...] procuram trabalhar a partir de objetos, abordagens, fontes e documentos utilizados por outras disciplinas.

[...] Há cada vez mais uma preocupação pelo que exista dentro da cabeça dos homens, em todos os seus aspectos; assim, alguns trabalham com a chamada "história das mentalidades", por exemplo, fazendo a história da morte, ou da alimentação, do sexo, ou do medo no Ocidente.

Há uma preocupação com os detalhes do cotidiano dos homens, em seus diversos grupos sociais. [...]

BORGES, Vavy Pacheco. O que é história. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 11-43.

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