"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 6 de agosto de 2011

A recuperação do passado pré-colombiano

Vida dos astecas no mercado de Tlatelolco,  Diego Rivera


Os eurocentristas ignoram qualquer possibilidade do surgimento na América de algum povo civilizado. Desconhecem que, enquanto os camponeses morriam de fome durante o feudalismo europeu, Estados centralizados construíam na América complexas obras hidráulicas, controlavam o tempo através do calendário, conseguiam alimentar decentemente todo o povo, que possuíam aposentadoria, pública e gratuita, ou que as primeiras universidades envolvidas com a tecnologia da produção de alimentos surgiram fora da Europa ocidental.

A ciência teria demonstrado, segundo os eurocentristas, que existiam dois tipos de índios: os "aproveitáveis" e os "descartáveis". Aqueles que moravam nas planícies eram "indomáveis" e portanto não podiam ser integrados ao processo civilizatório, resultando daí a necessidade de seu extermínio.

Os que moravam na serra estavam acostumados ao trabalho agrícola, à construção das grandes obras hidráulicas e, por isso mesmo, deviam ser preservados pela nova civilização imposta pelos europeus.

O colonizador parte do pressuposto que o índio não era semelhante ao homem branco. A ordem era rebaixar seus habitantes ao nível do macaco superior, uma besta de carga capaz de responder ao estímulo da violência sem se transformar num animal irracional e violento, incapaz de trabalhar.

Para desumanizá-los devem ser liquidadas suas tradições, sua cultura. Sua língua devia ser substituída pela do europeu. Se resistia, devia ser morto, se cedia deixava de ser um homem. A vergonha e o terror desintegravam sua personalidade, destruíam seu caráter. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, não era um animal nem um homem, apenas um indígena.

[...] o eurocentrismo consiste, pois, numa perspectiva intelectual para a qual todas as experiências históricas americanas são abordadas como se estivéssemos diante de acontecimentos europeus, que servem como referencial comparativo necessário.

Segundo essa perspectiva, a história da América seria apenas um apêndice da história do Velho Continente. Se não existisse a história da Europa, não existiria a história da América.

O pensamento eurocentrista afirma que descobrir o passado da América procurando uma identidade perdida é uma coisa irrelevante. Segundo eles, o que os latino-americanos necessitariam seria de um "choque capitalista", técnicas avançadas para cultivar a terra, educação, saúde, privatização, modernização...


Acreditam que para tirar o homem americano de sua situação e levá-lo para uma vida melhor seria necessária a introdução do pensamento científico através de universidades técnicas e não políticas, de modernos processos de produção, eliminando, por exemplo, a reserva de mercado para computadores, fator considerado instrumento privilegiado para modificar o atraso desse continente.


Nosso grande mal seria pensar com categorias míticas e metafísicas de origem pré-colombiana. A América é catalogada simplesmente como uma terra de ditadores, oligarquias, índios, negros, fome, desperdícios, corrupção, espaço bárbaro carente de racionalidade, de ciência, incapaz de multiplicar suas riquezas através de seu próprio esforço, motivo pelo qual necessita da tutela de norte-americanos e europeus.


Negar o eurocentrismo não significa desprezar a herança cultural europeia, mas resgatar aqueles elementos que nos permitam construir uma nova sociedade. Os sonhos de liberdade, da fraternidade e de solidariedade unem os homens do velho e do novo continente.


A Europa festejou recentemente os duzentos anos da Revolução Francesa, destacando a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que proclamava a igualdade de todos diante da lei e estabelecia que a única fonte de poder era o povo. Também ratificava o direito à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão.


A Revolução Francesa é inseparável da Revolução Industrial inglesa, no sentido que são parte de um mesmo processo de consolidação do capitalismo, mas que geraram, em sua formação, diferentes projetos sociais. A primeira se identifica com as propostas de liberdade, igualdade, fraternidade, enquanto a segunda se associa ao pensamento utilitário e individualista. Essas duas propostas ainda continuam se debatendo.


Os ingleses consolidaram a ideia de que os fins justificam os meios, de que todos os instrumentos devem ser utilizados para a implantação do capitalismo. O liberalismo lentamente abandona as aspirações dos revolucionários franceses para abraçar as propostas dos pensadores ingleses.


Os americanistas encontraram nas instituições sociais pré-colombianas ideias defendidas na Europa pelos iluministas, preocupados com a investigação científica, a crítica da realidade existente e a modificação das estruturas sociais e movidos pela luta contra o poder, o despotismo e o obscurantismo e em defesa da racionalização da existência social.


O pensamento pré-colombiano, baseado na reciprocidade, na solidariedade, no controle público da autoridade, nos trabalhos coletivos, possuía em seu interior muitas das aspirações defendidas pelos homens europeus do século XVIII.


A busca da modernidade libertadora na Europa foi vencida, derrotada por uma modernidade que concebia a racionalização como um instrumento de poder e dominação, não de libertação. Sua derrota também foi a derrota da América Latina, que com a transferência da hegemonia capitalista da Inglaterra para os Estados Unidos, que também abandonam os ideais de seus fundadores para assumir a racionalidade inglesa no século XIX, passa a ser vítima da modernização.


Os eurocentristas afirmam que os americanistas estão fazendo uma análise política e não científica da descoberta de Colombo, que estão querendo discutir questões como controle direto das autoridades, debatendo e decidindo suas formas de exercício, o controle público da produção e da distribuição das riquezas, tomando como exemplo o passado pré-colombiano.


Os americanistas, por sua vez, afirmam que a recuperação do passado somente adquire sentido se o projetamos para o futuro. Que a história da América não é apenas um longo relato de violências, de golpes militares, de políticos corruptos, obras faraônicas, desperdícios e desordens.


Muitos dos ideais de reciprocidade, liberdade, fraternidade e solidariedade, perseguidos pelos homens da Revolução Francesa, lemas esquecidos nas comemorações europeias, estavam presentes entre astecas, maias e incas.


O que podemos recuperar do passado pré-colombiano para as gerações presente e futura de nosso continente? Da antiga área das Altas Culturas devemos resgatar os conceitos de reciprocidade e de solidariedade então dominantes.


Falamos de reciprocidade para explicar as relações entre os indivíduos  de uma mesma sociedade, onde os deveres econômicos implicavam reconhecer os direitos dos outros, num intercâmbio mútuo de donativos, sem a finalidade de acumular riquezas materiais em poucas mãos, enriquecendo uma minoria e empobrecendo a maioria.


Essa era uma das características da vida econômica auto-suficiente das comunidades aldeãs pré-colombianas, onde o trabalho era coletivo e tinha como finalidade a transformação comum da natureza e sua posterior distribuição conforme as necessidades de cada unidade familiar.


Nessas terras americanas a produção material não mutilava as forças criativas dos homens porque estes, além de serem construtores e trabalhadores, eram também artistas, pintores, escultores, poetas.


Sem dúvida, as sociedades maia, asteca e inca não eram um paraíso. Existia a exploração dos camponeses através da apropriação da produção por parte de uma classe que controlava o Estado. Tal classe incluía sacerdotes, guerreiros e funcionários ou burocratas, que protegiam as comunidades ao mesmo tempo que as exploravam. Também as protegiam contra os ataques exteriores, a fome, as doenças ou o frio, sendo capazes de organizar as estruturas produtivas para conseguir alimentar decentemente, por exemplo, 25 milhões de pessoas somente no vale do México, fato que nenhum Estado moderno latino-americano consegue hoje repetir.


A alimentação é uma questão que separa definitivamente eurocentristas e americanistas. Na atualidade quase não encontramos os produtos agrícolas que dominavam a economia pré-colombiana. A América foi coberta por produtos procedentes da Europa. Apenas três por cento das terras produtivas de nosso continente são dedicadas ao cultivo de plantas nativas.


Segundo os eurocentristas, produtos, como cana-de-açúcar, trigo, aveia, centeio, arroz, gado, ovelhas e coelhos, e instrumentos, como arado e máquina de tecer, foram as grandes contribuições da Europa para o desenvolvimento latino-americano. Com isso, segundo eles, foi possível a preservação da vida de milhões de índios.


O que eles esquecem é que isso significou a destruição de um sistema produtivo local, com sua tecnologia que ainda se pode ver nos canais, túneis e pontes construídos na época dos incas, com suas formas de trabalho coletivo.


Significou a substituição de uma alimentação local baseada na batata, no milho, nas verduras e nas frutas, por uma outra alimentação de origem estrangeira sustentada pela carne e pelos produtos agrícolas europeus.


Os eurocentristas procuram esconder que essa desestruturação calamitosa de um sistema produtivo provocou somente entre 1530 e 1600 a morte de 9 milhões de pessoas, somente no Peru, enquanto a carnificina dos nazistas, quando na Segunda Guerra Mundial invadiram a Rússia, foi de 25 milhões de pessoas.


Os europeus conseguiram construir nos atuais Estados Unidos uma sociedade bem diferente da nossa. Sem sofrer diretamente a opressão colonial, o norte dos atuais Estados norte-americanos da costa do Atlântico conseguiu acumular o capital fundamental para o impulso desenvolvimentista, baseado em pequenas e médias propriedades, economia voltada para dentro, trabalho livre e uma estrutura política autônoma, bem diferente da opressão luso-espanhola.


Certamente que o capitalismo norte-americano não foi construído sem sangue. Foi necessária uma sangrenta guerra civil entre o Norte e o Sul, bem como sua lucrativa participação em duas guerras mundiais para transformar esse país situado ao norte do continente americano numa potência mundial.


Isso nos leva a uma outra discussão. O que significa ser habitantes da parte menos desenvolvida do continente? Se no passado os latino-americanos foram considerados bárbaros, em oposição aos civilizados europeus, hoje, muitos norte-americanos se consideram civilizados em oposição aos habitantes do sul do rio Grande, que separa esse país do México.


O que significaria para eles ser latino-americanos? Essa palavra nos homogeniza utilizando adjetivos negativos, como subdesenvolvidos, pouco inteligentes, inaptos para o trabalho, incapazes de ter um governo democrático, corruptos, separando-nos dos legítimos americanos do norte, capitalistas e desenvolvidos.


Para os eurocentristas, os latino carecem de uma identidade própria porque foram colonizados pelos espanhóis e portugueses, muito envolvidos na moral e na ética religiosa do catolicismo tradicional, que atrapalhava a racionalização capitalista, coisa que não acontecia com os protestantes que colonizaram a América do Norte.


O raciocínio desses autores conduz a uma conclusão assustadora e absurda ao mesmo tempo, quando afirmam que esse idealismo salvacionista dos ibéricos também os teria levado a misturar seu sangue com o indígena, na tentativa de "melhorar essa raça", com resultados claramente negativos, porque os mestiços, nome dado aos descendentes do cruzamento de espanhóis e índios, apesar de serem "superiores aos índios", não conseguiram atingir o mesmo grau de inteligência dos europeus ou norte-americanos, que se mantiveram fundamentalmente puros.


A América Latina tem ou não identidade? Os ricos e diversos elementos que alimentam nossa história [...] certamente ainda não terminaram seu longo processo de fundição em algo novo e original. Ainda não conseguiram se articular autonomamente numa nova e diferente estrutura de relações entre as pessoas, capaz de criar um sentimento de união, uma identidade.


Por que isso ainda não foi conseguido? Porque nossa cultura e nossa consciência estão marcadas pelo passado de exploração, pela nossa função na acumulação de capital nos centros hegemônicos do capitalismo, que nos mantêm num estado de dependência.


A dependência é muito mais que a subordinação de um país a um poder exterior. Significa pensar como o europeu, o norte-americano ou o japonês. Significa acreditar que a América Latina é o quintal do mundo, que o Brasil não tem mais jeito.


O rompimento dessa dependência exige um novo relacionamento entre as pessoas, a criação de uma inter-subjetividade, descobrindo que tivemos um passado não dependente, não colonial, [...] a partir da qual é possível elaborar um projeto alternativo para as sociedades latino-americanas. [...]


PEREGALLI, Enrique. A América que os europeus encontraram. São Paulo: Atual, 2003. p.83-89.

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