"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 14 de agosto de 2011

Fragmentos de um discurso higiênico

Cena de uma casa de banhos. Miniatura anônima, século XV.


Algumas reflexões feitas sob o chuveiro quente, num dia frio de inverno: desde quando o curso histórico da água doméstica ajuda a observar as diferenças entre asseio e repugnância, entre sujeira e limpeza? Para cada cultura e para cada diferente época, a guerra entre "limpo e sujo" desenvolveu-se de um modo específico.

Na Idade Média, por exemplo, cultivavam-se as abluções completas e repetidas. Os cruzados haviam trazido do Oriente o hábito dos banhos de estufa. Esses eram lugares de alegre promiscuidade, onde os corpos eram tratados, depilados e perfumados pelas diligentes mãos do barbeiro, misturando-se à água e ao vapor. Mas o cristianismo nunca incentivou esse uso da água - basta pensar no tradicional encardido monástico -, e passou a desenvolver uma profunda desconfiança em relação aos banhos. Desde o século XVI, o anátema da Igreja abateu-se sobre as "estufas" e os banhos, sob a alegação de que aí desenvolviam-se atitudes obscenas e condutas licenciosas. Mas os constrangimentos eram também de ordem material. Com o crescimento das cidades, aos fins do século XV, não havia água suficiente ou madeira para aquecer os banhos.

Cena de uma casa de banhos. Miniatura anônima, século XV.

Eis porque a sujeira do corpo sedentarizou-se, passando a ser familiar - mesmo entre os mais ricos e poderosos. Era preciso perfumar o corpo, mas desodorizar as peças da casa, as salas de baile, os salões de espetáculos. Aromas corpulentos, como o âmbar ou o almíscar, tentavam recobrir a terrível pestilência. O perfumista, homem de segredos entre o alquimista e o médico, é o grande general nessa luta olfativa. Mas será que o exagero odorífico mascarava os efeitos das flatulências fugidas a um controle esfincteriano mais rigoroso? Ou o hálito empestado de dentes que só de vem em quando eram visitados por palitos? Pouco. Vivia-se num contexto no qual o mau cheiro era banal. O castelo de Versalhes - um dos mais belos da Europa - tinha seus corredores e escadas fedendo à urina e a excrementos de seus nobres moradores. Nele, a água só tinha função decorativa na forma de lagos, fontes e repuxos nos belos jardins. Tudo para agradar os olhos, nada para o corpo.

A penúria sanitária do palácio evidenciava-se nas anotações do médico de Luís XIV, quando, ao diagnosticar uma dermatite, justificava compenetrado. "O Rei só tomou um único banho em 1665, e por razões de saúde!" No restante do tempo, aquele que ficou conhecido como o Rei-Sol limpava seu rosto em um algodão embebido em vinho branco - uma vez a cada dois dias. Versalhes possuía em seu mobiliário um total de 274 "chaises-percées", ou seja, lindas poltronas em madeira entalhada e dourada, cujo assento dava passagem a um penico estrategicamente colocado. No rol de roupas contabilizavam-se os chamados "acessórios de comodidade" (que tinham a função do nosso papel higiênico). O de Madame du Barry eram de renda. Os de Richilieu, de linho; os de Madame de Maintenon, de fina lã. Os pobres faziam como os antigos gregos, servindo-se de plantas e pedras. A burguesia utilizava-se de estopas. Apenas sob o reinado de Luís XVI, na segunda metade do século XVIII, será construído um verdadeiro "gabinete de bem-estar" em mármore, porcelana e mogno.

A utilização da água era desaconselhada para tratar todo e qualquer excreto do corpo. Um livro de medicina de 1671 incitava as mães a só limpar o rosto e os olhos dos filhos com um pano. No século XVIII, a água começa a chegar lentamente, discreta mas possível, agregando-se aos ritos da vida cotidiana. Ao longo do rio Sena multiplicam-se os banhos públicos, onde banheiras possuíam entradas para deixar passar a corrente. O mobiliário sanitário ganhava inovações. O bidê, de estanho ou porcelana, chamado "o confidente" das damas, encarregava-se da higiene íntima mas também, em tempos libertinos, de cuidados contraceptivos. As banheiras, que tanto podiam ser alugadas quanto compradas, adquiriam a forma confortável de poltrona, canapé, leito ou chaise-longue. Tais banhos, jamais tomados no inverno, incentivavam a elite a construir "apartamentos para o banho".

O final do século XVIII anunciou uma revolução olfativa que com muito custo chegou aos nossos dias. Com a emergência da burguesia e de seus hábitos de privacidade, passa a ser mais importante "cheirar bem" - aliás, prova de um caráter são - do que camuflar-se dos odores desagradáveis. As narinas abrem-se a fragâncias sutis e delicadas e até os móveis passam a ser confeccionados com madeiras olorosas. Águas de melissa, junquilho, violeta, essências de canela e anis, pomadas de rosas e lírios passam a revestir o corpo indolente do burguês. A palheta de perfumes manuseada, a partir dessa época, não serve mais para limpar, mas para seduzir. E a geografia física e moral da limpeza vai adquirindo, pouco a pouco, os contornos que são os nossos.

PRIORE, Mary Del Priore. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 17-19.

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