"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 31 de julho de 2016

Cotidiano das mulheres camponesas [Europa, final do século XIX]

Camponesas com silvado, Jean-François Millet

A vida das camponesas era regrada pela da família e dos ritmos dos campos. Numa rígida divisão de papéis, tarefas e espaços. Para o homem, o trabalho da terra e as transações do mercado. Para a mulher, a casa, a criação de animais, o galinheiro e a horta, cujos produtos [...] ela vendia na feira. De acordo com a idade e com a posição na família, elas trabalhavam no campo por ocasião das colheitas de todos os tipos, de batatas a vindimas, curvadas sobre a terra ou sob o peso de cargas. A velha camponesa é uma mulher recurvada. Elas cuidavam do rebanho, das vacas, que vigiavam e ordenhavam, das cabras, cujo leite servia para fabricação artesanal de queijo, que também era serviço delas. [...] A camponesa é uma mulher ocupada, preocupada em vestir (ela fia) e em alimentar os seus (autossubsistência e confecção das refeições) e, se possível, trazer para casa um suplemento monetário a partir do momento em que o campo se abriu para o mercado: mercado alimentar, mercado têxtil. Muito cedo ela fia para fora ou faz rendas [...] que são buscadas nas aldeias por estafetas. O luxo, na corte e na cidade, principalmente a partir do século XVII, aumentou a demanda com relação às mulheres, que assim entraram no circuito monetário.

A fiadeira, Jean-François Millet


Esse mundo rural, cujo pilar é o casal, é muito hierarquizado: entre os sexos (ele é o senhor); entre as mulheres. A dona de casa reina sobre a família e os agregados. Ela toma conta das filhas, preocupada com seus namorados e seu enxoval, modo de transmissão privilegiado entre mãe e filha. Cuida da roupa branca, cujas lavagens constituem verdadeiras cerimônias. Cuida dos parentes idosos, reclamando quando tem de trazê-los para morar em sua casa. Vigia as criadas, muitas vezes às voltas com as inconveniências dos cavalariços, ou do patrão, para ver se não estão engordando além do normal por baixo de seus blusões ou aventais. Essas criadas, filhas de famílias numerosas, que não podem sustentá-las nem empregá-las, pertencem à camada mais pobre e mais exposta do mundo rural.

As lavadeiras, Jean-François Millet


Essa vida rude tem seus ritos e seus prazeres para as mulheres, cujo poder oculto é, com freqüência, muito forte. Ele se exerce pelo olhar e pela palavra. Na igreja, onde elas são as mais fervorosas. Nas feiras, onde gerenciam o comércio a varejo. Na lavanderia, as mulheres falam entre si e lavar roupa branca é atividade propícia à confidência. Os homens temem o burburinho das lavanderias, que operam uma espécie de censura, desfazem uma reputação. À noite, nos momentos de vigília, as mulheres mais velhas contam histórias e transmitem as lendas e os acontecimentos da vizinhança. Mas logo os jovens forasteiros lhes furtam essa vantagem com seus relatos em que predominam os rumores da cidade. [...]

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013. p. 111-2.

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