"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O homem do século XVI: o regime biológico do homem

A ação do homem sobre a natureza corresponde a que ele possui sobre o seu corpo. Evidentemente, a alimentação é o melhor meio de sustentar e de fortalecer os corpos. É quase o único que, então, se conhecia, dotado de algum valor. No começo do século XVI, o emprego de estimulantes é muito mal regrado. A medicina e a educação física, em absoluto, nada têm de racional.

- Alimentos e estimulantes. Os tipos de alimentação são menos mesclados do que em nossos dias. O meio geográfico comanda. Pão, cozidos de arroz e de milho reinam sobre domínios completamente isolados. Juntam-se a isso as prescrições religiosas (sem vinho, porco e álcool; a Índia bramânica, sem carne nem peixe de mar). Enfim, a tradição resiste à introdução de alimentos novos e de receitas novas.

Decorre disso, em cada região, uma grande monotonia do regime alimentar. Imaginemos a mesa do europeu desprovida de batatas, arroz, cozido de milho, perus, açúcar, álcool, chocolate, chá, café e a ausência do tabaco. Contudo, não se deveria encarecer tal monotonia uma vez que, a partir do século XVI, o europeu renunciou ao consumo de numerosos produtos naturais: bagas silvestres, “ervas”, caças diversas. Existem, além disso, segundo as estações, diferenças de regimes alimentares de que o europeu perdeu o hábito.

Esta monotonia é quebrada pela irregularidade das quantidades consumidas. Fome e penúria não poupam nenhuma região do globo. Todavia, seus efeitos se atenuaram momentaneamente, na Europa, em conseqüência da diminuição da população consecutiva à Peste Negra. Isso é também verdadeiro nos países onde é praticada a pesca marítima, pois a pesca não está submetida aos mesmos imperativos meteorológicos do cultivo. Acrescentemos ainda a importância dos jejuns e das abstinências (153 dias por ano na Europa anterior à Reforma). Se a alimentação cotidiana é modesta, as festas são acompanhadas de comezainas. Mesmo entre os poderosos, é-se mais sensível à quantidade e à consistência dos pratos do que à sua qualidade.

Por apegados que os homens sejam à sua alimentação tradicional, esta evolui. Vêm as inovações menos da necessidade que da ainda limitada curiosidade dos poderosos do momento (F. Braudel). Mas quando um alimento ou um condimento é difundido, perde seu valor. É este o caso das especiarias cuja busca constituiu um dos aguilhões das Grandes Descobertas e das quais se desviarão os gourmets do século XVIII.

A grande maioria da humanidade tem uma alimentação essencial ou exclusivamente vegetariana. O arroz não presta, então, os mesmos serviços de hoje em dia, pois a segunda colheita, parece, não é ainda praticada. O milho é uma planta “milagrosa”. Cresce em cinco meses, requer apenas cinqüenta dias de trabalho anuais e pode alcançar um rendimento da ordem de 100 por 1.

O pão apresenta inúmeras vantagens. Pode ser conservado. É também o alimento que se torna menos caro. Quase em toda parte, a moagem é um empreendimento industrial, mas os particulares, mui frequentemente, fazem o seu pão. Cozem-no quer em seus próprios fornos, quer num forno banal mediante compromissos. Do mesmo modo, há nas cidades padeiros estabelecidos que fabricam pães feitos de misturas de cereais, de diferentes qualidades: escuro, para os mais humildes; “entre branco e escuro”... O pão branco constitui um luxo, menos raro talvez no século XVI do que no XVIII.

A padaria de panqueca, Pieter Aertsen

A Europa distingue-se das demais regiões do mundo por uma alimentação de carne, por vezes exuberante, mesmo, ao que parece, entre os pobres, antes da metade do século XVI (F. Braudel). Em contrapartida, a carne é bem pouco difundida alhures.

O leite e os ovos são consumidos em toda parte. O queijo é a maneira mais propagada do laticínio. Em toda parte é consumido fresco. Porém, sob sua forma seca, é um meio de conservação dos produtos do leite. É a providência dos marujos.

A dança do ovo, Pieter Aertsen

O peixe das lagoas ou dos rios é pescado onde quer que o possa ser. A Europa cristã multiplica mesmo as lagoas de barragem a fim de a conseguir. O peixe do mar, contrariamente, é negligenciado por grande porção da humanidade. A Europa busca o peixe em todos os lugares, sobretudo nos mares setentrionais: Mancha, Mar do Norte, Báltico e, outra vez, Atlântico norte. Desde a Idade Média fora estabelecida a moda do harenque. O embarricamento começou a efetuar-se no século XV, pelo menos. Nos fins do mesmo século o harenque abandona as costas da Europa. Vai-se procurá-lo mais distante; de onde o aperfeiçoamento de diversos processos de conservação, da organização de transportes. Mas, atingida a Terra Nova, produz-se uma corrida dos marinheiros bascos, franceses, holandeses, ingleses aos bancos de bacalhau.

Os quatro elementos: água. Um mercado de peixes. Joachim Beuckelaer

Manteiga, banha e óleo desempenham ainda um papel limitado no preparo dos alimentos. Propaga-se o uso do sal para a conservação da carne e para relevar a insipidez dos cozidos e das sopas. Do mesmo modo, são como que o desfile na monotonia da nutrição e das receitas. Utilizam-se as mais variadas hortaliças. As especiarias constituem os únicos produtos exóticos utilizados na cozinha. Triunfam com as Grandes Descobertas. O mel não foi ainda destronado pelo açúcar.

Mulher vendendo vegetais, Joachim Beuckelaer

[...] assinalemos que, na Europa, mal começa a difundir-se entre as pessoas mais abastadas o prato, a colher, o garfo, o copo individuais, mais frequentemente a partir de Veneza.

A água não é apenas a bebida do pobre. O problema da água potável não está resolvido em toda parte de maneira satisfatória. Há que se contentar com a que se tem ao alcance nas fontes, nos poços, nas cisternas. Nas cidades os aguadeiros multiplicam-se. Se a Europa Central tem o privilégio de contar com boas fontes, em inúmeros países a água só pode ser consumida depois de fervida. Para a tornar aceitável, a China pratica a infusão do chá.

O vinho é conhecido na Europa inteira. Ele é tanto mais caro na Europa não vinícola quanto menos se sabe conservá-lo. E conquanto ainda não seja objeto de consumição de massa, a embriaguez aumenta. Ao lado da cerveja fraca, geralmente fabricada em casa, a Europa do Norte começa a conhecer cervejas de luxo. Mas esta bebida apresenta o inconveniente de, para a sua fabricação, concorre com o pão, uma vez que ambos os produtos são feitos de cereais. É esta concorrência que explica o êxito da sidra no fim do século XV e no princípio do XVI? É por esta época que, vindo da Biscaia, ela se instala na baixa Normandia. Há muitas outras bebidas fermentadas, mesmo na Europa, onde se utilizam frutos e folhas de árvores silvestres (freixo, seiva de bétula). É o caso, em especial, fora da Europa, das bebidas feitas de sumo de Acer (Canadá), do vinho de palma e do de arroz. A América conhece uma cerveja de milho geminado.

Em princípios do século XVI, a aguardente deixa de ser do domínio exclusivo dos médicos e dos boticários. Da França, ganha a Europa do Norte, depois a do Sul. Fora da Europa, ignora-se amiúde o álcool. Em compensação, a Europa ignora os estupefacientes, o haxixe da Ásia, a coca da América tropical e o tabaco antes de sua introdução em Lisboa, em 1558.

É na Europa que a alimentação parece menos precária e mais energética pois a carne dá a impressão de ser aí difundida, inclusive na mesa do pobre, até o advento da crise econômica da metade do século XVI. Teria isso dado uma superioridade física ao homem europeu? Explicaria seu dinamismo no início dos Tempos Modernos?


O dentista, Johann Liss, e/ou Lucas van Leyden

- Doenças e fraqueza da profilaxia. A saúde pública está frequentemente afetada pelas epidemias. Na verdade, esses flagelos golpeiam sobretudo os pobres devido à subalimentação e a promiscuidade em que vivem.


Pode-se distinguir as doenças de carência causadas pelas fomes e as demais doenças, notadamente infecciosas, encorajadas por aquelas. Mais que os gelos hibernais, que destroem os cereais de inverno nos deixam a esperança de uma colheita de cereais de primavera, os estios úmidos, que reduzem as colheitas, provocam irremediavelmente a penúria. Duas más colheitas, e eis a fome. A catástrofe, as mais das vezes, é local; a impossibilidade dos transportes em massa à grande distância fazem-na considerar como geral. Os pobres, então, não mais encontram pão, tornado demasiado caro, a não ser pelas distribuições feitas nas cidades. O trigo desaparece. O camponês tem, em geral, poucas reservas. Indubitavelmente, é possível incorporar às sopas e aos cozidos toda sorte de coisas. Os mais poderosos e os mais ricos sobrevivem, bem como os mais robustos. Não obstante, em tempos de fome, os ímpetos da mortalidade podem adquirir proporções cruéis, atingindo localmente o terço ou o quarto da população.

Na verdade, as doenças de carência caracterizadas grassam sobretudo quando a alimentação é demasiado rara ou baseada quase exclusivamente num só gênero. Em relação às demais doenças, não se sabe infelizmente o que elas são na realidade. As descrições fornecidas pelos contemporâneos parecem confundir entre elas numerosas espécies de febres e numerosas espécies de doenças que marcam a epiderme. Os médicos hesitam no tocante à interpretação dos sintomas que nos foram relatados. De resto, é possível que as doenças não sejam, hoje, mais as mesmas dos começos dos Tempos Modernos ou não apresentem mais as mesmas formas. Que pensar das febres terçá, quartá, das brotoejas? Difteria, tifóide, varíolas, sarampo talvez constituíssem o seu fundo. Deve-se ajuntar a isso as febres intermitentes. A malária castiga as regiões quentes e úmidas. A Europa não é mais atingida que as outras partes do mundo.

"Os vírus colonizam mais rápido que os homens as regiões novas para eles". A sífilis, que talvez já existisse no Antigo Mundo, sob uma outra forma, triunfa em Barcelona desde as festas que assinalam o regresso de Cristóvão Colombo. Em quatro ou cinco anos conquistou a Europa. Em 1506-1507, atinge a China. A lepra se mantém na Ásia, mas recua bem nitidamente na Europa onde, em princípios do século XVII, terá quase desaparecido. Por causa do uso de roupas brancas ou devido à concorrência de outros vírus?

A doença mais temível continua a ser a peste, então invencível. Ela é o símbolo de todas as doenças do mundo cristão. De fato, existem duas espécies de pestes: a peste pulmonar, pandemia que nada detém (Peste Negra de 1348), e a peste bubônica, transmitida pela pulga do rato. Esta segunda é endêmica no sul da China, na Índia, na África do Norte e durante quase dois séculos, ainda, na Europa onde ressurge sem cessar localmente sob uma forma mais ou menos violenta. Entre os mais atingidos estão os recém-nascidos e as mulheres grávidas.

Na luta contra a peste e outras doenças, a medicina é impotente, quando não prescreve remédios, vomitórios, sangrias que enfraquecem o doente. O empirismo popular é talvez mais eficaz. Mas, provavelmente, é ele que inspirará , com o fito de deter sífilis, a desaparição dos banhos públicos. Leva os doentes a recorrer aos curandeiros. Os reis da França e da Inglaterra tocam as escrófulas (= adenites tuberculosas).

A melhor salvaguarda contra a peste é o isolamento. As autoridades municipais começam a organizar, seriamente, quarentenas, cordões sanitários, redes de informação externa. Mas a luta não ultrapassa o plano local. Todos os que podem abandonam a cidade infectada e se retiram para as habitações rurais. A par de admiráveis devotamentos, a peste suscita abandonos de posto. Mais do que qualquer outro flagelo, ela age sobre os espíritos, exasperando não somente os egoísmos das pessoas, mas também os dos grupos e das classes da sociedade. Suscita verdadeiras loucuras coletivas. Os pobres, em geral, permanecem encerrados nas cidades infectadas. Aí saqueiam e aí morrem. Por onde passa, a peste inspira, igualmente, uma arte mórbida (danças macabras). Desarmado assim diante da morte, o homem pode oscilar do fatalismo à raiva de viver, da prostração à ação. É necessário ainda que suas capacidades físicas lhe permitam esta última.


Triunfo da morte em Clusone, Val Seriana, Itália. Giacomo Borlone de Buschis

- As capacidades físicas. O homem mudou no talhe e na estatura. Podemos compreendê-lo ao estudar as armaduras. Para algumas exceções, como a de Francisco I, quantas outras chocam pela pequenez do talhe, pela estreiteza das espáduas e pelo tórax dos guerreiros.

A uma aristocracia bem nutrida e afeita a um treinamento esportivo opõem-se as classes populares menos bem ou insuficientemente prematuro da musculatura ameaça frenar o crescimento do esqueleto.

Só possuímos características assaz precisas dos indivíduos relacionados com o fim do século XVII e, unicamente, relativas aos soldados da Europa. Essas características deixam adivinhar inúmeras malformações congênitas, deformações devidas a doenças. Todo ferimento deixa traços; o tronco e os membros amiúde ficam tortos. A humanidade do princípio dos Tempos Modernos não apresenta, provavelmente, um melhor espetáculo. Os quadros dos realistas flamengos não ilustram casos muito raros.

Inversamente, esses homens revelam, possivelmente, uma resistência que já não possuímos. Resistência à dor, não embotada pelo emprego de anestésicos; ao calor, ao frio, às mudanças de temperatura, à fadiga. Do mesmo modo, os corpos são rapidamente gastos. Muitos homens de quarenta anos mostram-se decrépitos e são considerados como anciãos. A diminuição da visão é irremediável. As pessoas abastadas se retiram da vida ativa bem mais cedo do que hoje. As mulheres já não podem dar à luz muito antes de atingir a menopausa.

Os indivíduos reagem diferentemente a tais provas impostas a seus corpos. Alguns homens desistem frente às provas, outros lutam. Prostração e displicência, às quais crenças fatalistas podem fornecer uma justificação a posteriori, parecem imperar sobre a grande maior parte do mundo e conservam a fraqueza física e fisiológica. Contrariamente, quase sob todos os climas e em quase todos os universos religiosos, encontram-se homens em maior ou menor número que exigem muito de seus corpos, não só porque podem fazê-lo, como porque são a isso constrangidos. O esforço cotidiano do coolie chinês adulto exige desde a tenra idade a mobilização de toda a energia do homem. Há, igualmente, inúmeras atividades especializadas. O tecelão adapta o corpo à sua profissão, como o cavaleiro ao seu cavalo. Adquirem atitudes bastante particularistas que fazem com que seus corpos então se diferenciem muito mais do que nas sociedades evoluídas atuais.

Para se libertar da natureza, deve o homem impor-se esforços físicos. Deve considerar seu corpo como um instrumento e como um motor. Deve moldá-lo em tal objetivo e aceitar em consequência a deterioração e o desgaste. Assim, para explicar a maneira de ser e as atitudes do homem, é necessário fazer com que intervenham fatores afetivos e morais.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 15-19.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o regime biológico do homem" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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