"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 4 de maio de 2014

A 1ª Guerra Mundial: Gallipoli [Parte III]

Na Sérvia, 1914. László Mednyánszky. 
Foto: Yelkrokoyade

A guerra foi marcada por momentos decisivos e oportunidades perdidas ou aproveitadas. Gallipoli foi um desses momentos. A península turca comandava a entrada para a curta e estreita rota marítima do Estreito de Dardanelos, que unia o Mar Mediterrâneo ao Mar Negro. Com menos de 44 quilômetros de comprimento, esse estreito era quase como o gargalo de uma garrafa e, em um ponto próximo de Chanak, mal chegava a 1,5 quilômetro de largura.

Os alemães, percebendo a importância dessa rota marítima, tentaram controlá-la, buscando aliar-se à Turquia. Menos de uma semana antes da guerra, os dois países assinaram secretamente uma aliança militar. Uma vez que o Império Turco ficava bem ao sul e quase alcançava a margem norte do Canal de Suez, essa era outra rota marítima crucial que os alemães poderiam tomar.

O Estreito de Dardanelos também era vital para a Rússia, que não podia usar o Mar Báltico, cuja saída era controlada por navios e submarinos alemães. O Mar Negro era, portanto, essencial para a marinha e os navios cargueiros russos, os quais levavam os grãos que alimentariam alguns de seus aliados ocidentais. Cada vez mais, conforme a guerra avançava, a Rússia precisava de armas e munições de seus aliados ocidentais, mas como poderia transportá-los? Certamente era possível ir da longínqua costa do Pacífico ao centro da Rússia, mas a ligação era feita pela ferrovia mais longa do mundo, com um trilho único na maior parte do caminho. O porto de Vladivostok, no Oceano Pacífico, ponto final da ferrovia, começou a receber cargas importadas de arame farpado, munição e outros materiais essenciais, que esperavam locomotivas para serem transportados até a distante linha do front russo, onde a munição já escasseava.

A Rússia estava semiestrangulada por sua geografia peculiar, bem como pelo fato de a marinha alemã controlar a foz do Báltico e, com a ajuda da Turquia, o Mar Negro. Mesmo São Petersburgo, com suas inúmeras chaminés altas, sofreu com o bloqueio marítimo e a escassez de carvão. Os líderes da Revolução Russa, três anos mais tarde, seriam ajudados pela desarticulação econômica gerada pelo longo bloqueio de guerra.

No início de 1915, o Estreito de Dardanelos se tornou crucial. A Grã-Bretanha e a França necessitavam urgentemente de um modo de enviar armas e munições para a Rússia, onde não faltavam soldados, mas havia uma escassez terrível de armamento pesado, metralhadoras leves, rifles, munição e mesmo uniformes de inverno. O enorme exército russo era comparado a um rolo compressor gigante, difícil de movimentar, mas decisivo quando finalmente se movia. No primeiro ano da guerra, o rolo compressor começou a avançar, mas depois foi parando.

Não fazia sentido convocar mais russos, a menos que se pudesse dar a cada um deles um rifle ou, ainda melhor, uma metralhadora. Se mais armas e munições fossem conseguidas, os russos poderiam enviar a campo um significativo e eficiente exército e assim forçar os alemães a deslocar centenas de trens carregados de tropas, do front ocidental para o oriental. E então o resultado da guerra poderia ser modificado em ambas as linhas de frente.

A Grã-Bretanha, com toda sua força naval, começou a considerar a ideia de ocupar o Estreito de Dardanelos. Poderia então conquistar Constantinopla, capital da Turquia e centro da indústria de armamentos, reabrindo assim a rota marítima para a Rússia. A marinha britânica, excessivamente confiante, fez planos ambiciosos, bombardeando inicialmente os fortes turcos próximos à entrada do estreito. O ataque foi um fracasso que custou caro.

Os turcos se assustaram. Parecia muito provável que o avanço naval fosse seguido de uma invasão por terra e por isso decidiram inicialmente transferir a capital de Constantinopla para o terminal ferroviário de Ankara, no interior do país. Em janeiro de 1915, apenas duas divisões turcas guardavam o Estreito de Dardanelos, mas em abril já havia seis divisões de prontidão, e os fortes haviam sido reforçados.

Finalmente, e 25 de abril de 1915, um domingo, as forças britânicas, francesas, australianas e neozelandesas chegaram às praias da Península de Gallipoli e montaram uma perigosa base de operações perto do Estreito de Dardanelos. O número de mortos e feridos foi grande. A luta logo chegou a um impasse. Britânicos e franceses enviaram reforços que, se tivessem chegado antes, poderiam ter ajudado a conquistar o terreno. Enquanto isso, o exército russo havia se reunido no porto de Odessa, no Mar Negro, em prontidão para um ataque independente a Constantinopla. Esse exército acabou sendo deslocado dali.

Os turcos estavam sob grande pressão. Atacados pelas forças anglo-francesas perto do estreito, também enfrentavam a ameaça de um pesado regimento russo próximo às montanhas do Cáucaso. Em 27 de maio de 1915, apenas um mês após a invasão de Gallipoli, o governo turco concluiu que seu país também abrigava um inimigo interno perigoso. Decidiu deportar os armênios cristãos, exceto os que viviam nas cidades portuárias de Constantinopla e Izmir, onde a sobrevivência era mais fácil. Os deportados, lentamente e carregando os poucos pertences que podiam, foram enviados da Anatólia para o deserto sírio. No caminho, homens, mulheres e crianças foram assassinados por soldados e civis turcos, e muitos outros morreram de doenças e fome. O número de armênios turcos mortos é geralmente estimado em 600 mil, mas alguns historiadores, aumentando o número para 1 milhão, chegam a falar em genocídio.

Depois de lutar contra os turcos em uma faixa de praias e colinas próximas ao mar, os britânicos e franceses concluíram que a vitória no Estreito de Dardanelos era impossível. Perto do fim do ano, noite após noite, seus soldados foram silenciosamente retirados dali e enviados para outros lugares. Gallipoli finalmente foi abandonada, lá permanecendo apenas as fortificações turcas e os túmulos.

Se os aliados tivessem tido sucesso em tomar o estreito e Constantinopla, poderiam ter mandado comboios semanais de suprimento para os mal-armados russos. O resultado da guerra para a Rússia poderia ter sido diferente. Mas essa reviravolta em potencial não se realizou.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 55-59.

NOTA: O texto "A 1ª Guerra Mundial: Gallipoli [Parte III]" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

Nenhum comentário:

Postar um comentário