"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A 1ª Guerra Mundial: Um rio tingido de sangue [Parte IV]

Soldados intoxicados por gás, John Singer Sargent

Perto da fronteira entre a França e a Bélgica, corria o Rio Somme, um córrego calmo, mal notado pelos ciclistas que por ali passavam às vésperas da guerra. Perto do Somme, dois anos mais tarde, um numeroso exército de britânicos e franceses foi se reunindo silenciosamente em trincheiras e abrigos, em acampamentos e vilarejos parcialmente destruídos por bombardeios, de prontidão para uma das mais duras batalhas da história mundial. Lá, os soldados aliados, muitos dos quais tinham vindo da abandonada Gallipoli, esperavam abrir caminho através das trincheiras e dos postos de artilharia alemães, para dar continuidade a uma guerra que havia se tornado estática, sem solução. Muitos armamentos pesados, como morteiros, metralhadoras e rifles, já estavam preparados. Uma semana antes da batalha planejada, as fileiras alemãs foram incessantemente bombardeadas.


Uma luta defensiva, Karl Friedrich Gsur 

Logo depois do nascer do sol do dia 1º de julho de 1916, o ataque britânico teve início. Dezenas de milhares de soldados começaram a deixar as trincheiras onde se escondiam e a avançar contra as linhas alemãs. Logo atrás, estavam grupos de soldados treinados, que avançavam no momento certo. No entanto, sobrecarregados, levando em mochilas a própria comida, água e munição, caminhavam, corriam e tropeçavam em uma terra pontilhada de crateras e bloqueada com arame farpado. Em alguns locais, soldados alemães eram rendidos ou mortos, permitindo que toda uma linha de trincheiras fosse capturada; mais adiante, entretanto, os britânicos encontravam os alemães e suas barricadas, seus postos fortificados e seu pesado armamento, que lançava as balas contra os inimigos.


Stand de canhão, József Rippl-Rónai

A Batalha do Somme durou mais de quatro meses. Ondas de soldados emergiam das trincheiras, e os ataques se repetiam. As armas ribombavam, e o número de mortos e feridos aumentava. A batalha terminou formalmente em 18 de novembro de 1916. O número de baixas por parte dos ingleses foi contabilizada em 419.654, mas somando franceses e alemães, mortos e feridos chegava quase a 1 milhão. E o total poderia ter sido mais alto, não fosse o fato de a munição ter praticamente acabado em certos dias.


Nas trincheiras: Infantaria com mascáras de gás, Ypres, 1917. Foto: Capitão Frank Hurley

O resultado da guerra dependia parcialmente do que as fábricas de munição podiam oferecer. A Alemanha, no momento em que o conflito eclodiu, era a maior produtora europeia de produtos químicos, máquinas operatrizes e uma série de itens, de rolamentos a velas de ignição e munições ópticas. A Grã-Bretanha e a França, incapazes de igualar-se ao poderio industrial de sua rival, precisavam importar muitos produtos dos Estados Unidos. Sem os suprimentos norte-americanos, a Grã-Bretanha e a França teriam perdido a guerra no primeiro ano. Mais do que qualquer conflito anterior, a Primeira Guerra Mundial seria vencida em indústrias, usinas siderúrgicas, minas de carvão, fábricas de material bélico e estaleiros.


Soldados na neve, János Vaszary

A Alemanha passou a interceptar navios cargueiros que transportavam material bélico norte-americano para a Europa. Construiu um número cada vez maior de submarinos grandes, em formato de charuto, equipados com motores a diesel e capazes de viajar incógnitos, surpreendendo o inimigo: podiam lançar torpedos mortais sobre navios próximos, que não tinham tempo de alterar a rota. Em setembro de 1914, no mar entre a Inglaterra e a Holanda, três cruzadores britânicos que navegavam enfileirados, com apenas 3 milhas de distância entre si, foram surpreendidos pelo submarino alemção U9. Os três cruzadores foram afundados por torpedos, e o número de mortos foi quase igual ao do acidente com o gigantesco transatlântico Titanic, que, dois anos antes, havia colidido com um iceberg.

Com a intensificação do ritmo de produção dos estaleiros alemães, submarinos novos apareciam no leste do Oceano Atlântico, no Mar do Norte e mesmo no Mediterrâneo. Embarcações para transporte de passageiros ou de carga, mais do que os navios de guerra britânicos, eram seu principal alvo. Dois torpedos foram lançados contra o transatlântico Lusitânia quando este se aproximava da costa sul da Irlanda – já no fim da viagem -, procedente dos Estados Unidos. Naquela tarde de 7 de maio de 1915, os tombadilhos estavam lotados. O comandante alemão assistiu, de seu submarino, ao grande transatlântico desaparecer lentamente. Naquela noite, morreram 1.198 pessoas, entre mulheres, homens e crianças.

Houve intensos protestos em todo o mundo. A partir de então, os alemães decidiram poupar as embarcações de passageiros e as neutras – que, no entanto, eram ocasionalmente afundadas. Nada motivou mais os Estados a deixarem de ser uma nação neutra e entrarem na guerra do que os submarinos alemães e seus ataques intermitentes aos navios norte-americanos, em especial nos primeiros meses de 1917.

Em terra, doenças aumentavam as baixas. Epidemias de tifo chegaram ao Leste Europeu. Talvez pela primeira vez em uma guerra, enfermidades nervosas de difícil tratamento – popularmente conhecidas como traumas de guerra – se disseminaram. Cinqüenta anos mais tarde, em asilos e hospitais de cidades como Auckland, Salzburgo e São Francisco, ainda viviam homens cujas memórias haviam sido apagadas por traumas de guerra. Depois que o gás começou a ser usado como arma, lançado dentro de tubos, centenas de milhares de pessoas foram afetadas por outras doenças.

Travoys chegando com feridos em uma estação em Smol, Macedônia, setembro de 1916. Stanley Spencer

A disenteria amebiana, embora comum no norte da África, não tinha assolado a Europa até o verão de 1915, quando se espalhou pelas trincheiras de Gallipoli. A maior parte dos soldados britânicos que lá se encontravam foi infectada, pois a doença se espalhava através das moscas. Realmente, “a disenteria foi um dos fatores decisivos no fracasso da campanha de Gallipoli”, escreveu o tenente-coronel Arthur F. Hurst, especialista em Medicina. A disenteria bacilar – transportada das latrinas para as pessoas também através de moscas – era comum no verão no leste da Prússia, na ampla linha de frente oriental e também nas batalhas travadas mais tarde no calor de Salônica, Mesopotâmia e Palestina. Na Macedônia, no verão de 1916, quase todos os soldados sofreram com as nuvens de mosquitos de malária. Nos quatro anos da Primeira Guerra Mundial, para cada quatro soldados mortos por balas, estilhaços ou explosivos de alta potência, um soldado morria por doença.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 59-62.

NOTA: O texto "A 1ª Guerra Mundial: Um rio tingido de sangue [Parte IV]" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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