"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 12 de maio de 2013

Os postos avançados do helenismo: Náucratis, Cirene, Marselha

Na orla de territórios estrangeiros ou bárbaros erguem-se por vezes cidades gregas isoladas, mas cujo prestígio e influência irradiam amplamente, mensageiras distantes da cultura helênica.

1. Náucratis deve sua prosperidade ao faraó Amásis, que fez dela um grande centro pan-helênico e a única cidade grega federal, estimando que um porto único aberto aos estrangeiros facilitaria o controle comercial e a percepção de direitos. Em torno do Helênion, agrupavam-se doze cidades: com Mileto, a primeira ocupante, Quio, Teos, Focéia e Clazômenas representavam a Jônia, Mitilene da Eólida, Cnido, Halicarnasso, Fasélis, Lindos, Camiros e Iálisos, a Dórida. Os samnitas tinham ali um templo de Hera, os eginetas um templo de Zeus, os lesbianos um templo de Afrodite, e cada povo seu bairro próprio. O coração da cidade era o Helênion, centro financeiro e comercial ao mesmo tempo que religioso, onde se elevavam, ao lado do templo e dos edifícios sagrados, entrepostos, bazares, feitorias e uma vasta Bolsa de Comércio que centralizava as trocas do Oriente com o Ocidente e do Egito com o Mediterrâneo.

Ligada por um canal a Sais - a capital egípcia -, acessível aos maiores navios, Náucratis introduz no Delta os produtos gregos - óleo, vinhos, tecidos, vasos, objetos de arte - e leva até as colônias helênicas mais distantes os cereais, o linho, o papiro, o sal, o alabastro, as pedras raras e os bibelôs do Egito, assim como os metais, o marfim, os arômatas e todos os produtos exóticos da Arábia ou da Etiópia.  Juntamente com a cerâmica e a porcelana, sua mais célebre especialidade é o comércio das flores do Delta, rosas, violetas, goivos e narcisos que, sob a forma de coroas, guirlandas e buquês, desempenham importante papel na vida antiga. Dizem que as lindas floristas de Náucratis dispensavam seus favores tão generosamente quanto sua mercadoria perfumada, desde que se pagasse o preço, e Safo censura vistuosamente seu irmão Caraxo, que veio entregar vinhos de Lesbos, por ter se arruinado pela bela Doriquéia.

Ativa, brilhante e hospitaleira, Náucratis constituía, no limiar do Egito, uma ilha de puro jonismo, mas o velho império quase não se abria à sua influência, e os helenos tinham, diante dessa civilização muitas vezes milenária, a atitude de curiosidade um tanto desdenhosa que exibiam com relação a todos os estrangeiros, os "bárbaros".

2. Cirene - Senhora de terras extensas e férteis, Cirene reina sobre campos de cevada e trigo, vinhas e vergéis, pradarias exuberantes onde pastam bois, carneiros e cavalos renomados. Píndaro canta "a cidade célebre por seus carros" numa ode a Arcesilau IV de Cirene, cuja quadriga triunfara em Delfos. Sua principal riqueza é o sílfion, planta aromática e tônica, tão difundida na época quanto o chá ou o café em nossos dias, e cuja venda é monopólio de Estado: uma bela taça com figuras negras, de estilo laconiano, mostra empregados pesando e embarcando o sílfion em presença do rei Arcesilau.

Os casamentos dos colonos gregos com mulheres líbias e a influência dos egípcios, que introduzem os cultos de Amon e Ísis, deram à civilização de Cirene um aspecto africano enxertado num fundo helênico já compósito, visto que os primeiros colonos foram terianos e depois cretenses e peloponesianos, e é com este caráter original que ela se desenvolveu vitoriosamente entre o vasto império egípcio e a ameaça das ambições cartaginesas nessa fachada inóspita da África do Norte.


Ruínas de Cirene


3. Marselha - Isolada no Mediterrâneo ocidental, gravemente ameaçada depois de Alalia e da ruína do império foceu em proveito de Cartago e dos etruscos, Marselha conseguiu, por um prodígio de vitalidade e energia, construir um grande domínio marítimo e colonial, onde Ampúrias e Rhodê se tornaram por sua vez centros de helenismo; a pesca de atuns e de sargos permite a fabricação de conservas e peixes salgados; os produtos da Sicília, da Etrúria e da Ática, levados ao porto de Lacidon, são trocados por lã, artigos têxteis e prata da Espanha. Mas, como Cartago fecha o estreito de Gibraltar aos navios estrangeiros, é para o interior da Gália que Marselha volta suas ambições: pelo vale do Ródano, após trinta dias de transporte por terra e navegação fluvial, descem o estanho e o âmbar; em contrapartida, o alfabeto grego penetra na Gália e as moedas de prata que Marselha cunha no fim do século VI com a efígie de Ártemis ou de Apolo sobem os vales do Ródano, do Loire, do alto Danúbio e do Reno, acompanhadas dos vasos, dos bronzes cinzelados e das jóias que se trocam por madeiras, cânhamo, pedras preciosas e ervas medicinais.

Entretanto, a exemplo das colônias do Ponto Euxino, Marselha, permanecendo ela própria um intenso centro de helenismo, não consegue difundir essa cultura para muito longe: no limiar das florestas impenetráveis, onde vivem povos ainda primitivos, ela assinala o limite do mundo grego.

GABRIEL-LEROUX, J. As primeiras civilizações do Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 107-109.

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