"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Legenda Áurea: Anatomia do Diabo

Se a Idade Média se caracteriza pela influência da Igreja sobre toda a sociedade, não parece estranho afirmar que a grande batalha que o mundo medieval presenciou foi a luta de Deus e seu exército celeste contra o Diabo e suas tropas demoníacas. Satã era o grande tentador, aquele que, por meio de suas artimanhas, colocava toda a humanidade perto da perdição. A luta contra o Maligno era ativa e sem descanso: o homem medieval se via obrigado a evitar a tentação do demônio e o pecado continuamente, em todas as horas. O demônio não cessava de atacar o gênero humano, e quando não o fazia de modo astuto (por meio da tentação), utilizava a força (por meio da possessão) para enganar o homem, ou, simplesmente, tratava de aterrorizá-lo para que cedesse ao seu poder.

Não à toa, os demônios são personagens muito presentes na Legenda Áurea (c. 1260), a coletânea de hagiografias - vidas de santos - de maior sucesso na Idade Média. Escrita pelo frade dominicano Jacopo de Varazze (1228-1298), a obra dá exemplos de conduta moral utilizando como parâmetros as vidas dos santos. Pertence ao gênero das legendae novae, compilações preparadas entre os séculos XIII e XIV, a maior parte feita pelos representantes da Ordem Dominicana. A Legenda Áurea, com narrativas de inúmeras batalhas entre santos e demônios, atenderia também ao empenho da Igreja em reordenar e unificar a memória cristã.


Martírio de São Saturnino, Jacopo de Varazze. Legenda Áurea


A sociedade cristã latina havia aumentado seus contatos comerciais e culturais com outros povos e crenças, por isso a Igreja sentiu a necessidade de levantar todos os detalhes teológicos sobre a questão do mal e suas criaturas, defendendo os ensinamentos ortodoxos contra uma variedade de oponentes, dentro e fora da cristandade.

Se externamente o inimigo era associado aos pagãos, judeus e muçulmanos, internamente o perigo eram os heréticos, ou seja, aqueles que interpretavam o cristianismo de forma diferente dos preceitos de Roma. O grande problema estava na expansão da heresia cátara, cuja preocupação teológica principal girava em torno da questão do mal. O catarismo foi um movimento religioso cristão que ocorreu na França e na Itália entre os séculos XI e XIV. Os cátaros acreditavam que existiam dois princípios criadores opostos, o do Bem e o do Mal, sendo Satanás o príncipe do mundo material, seu criador e regulador. A resposta católica para o dualismo cátaro foi resumida no Quarto Concílio de Latrão, de 1215. Os bispos se preocuparam em afirmar que existia um só Deus, criador de todas as coisas a partir do nada. Entre as criaturas divinas estavam também o Diabo e os outros demônios - bons em sua natureza, mas que fizeram mau uso de seu livre-arbítrio. Para a doutrina cristã, Satã é apenas um agente de Deus, este sim a única fonte e o único senhor de todas as coisas. O Diabo, um anjo decaído, submete-se a Deus e não pode agir sem sua permissão. Cabe a ele aplicar as penas do inferno.

Nos primeiros séculos da Idade Média, do V ao XI, Satã ainda era definido de forma pouco concreta. Foi a partir do século XII que ideias esparsas, e muitas vezes contraditórias, sobre sua figura começam a ser reunidas em uma sistematização dogmática. As manifestações heréticas em voga no período conduziram a Igreja a um processo de reestruturação e renovação da espiritualidade que influenciou a forma como o Diabo aparece na doutrina e consequentemente, nas representações em imagens.

Na Legenda Áurea, a luta dos santos contra os demônios aparece o tempo todo, mostrando que os inimigos da cristandade se encontravam em todos os lugares e que os fiéis deveriam estar preparados para enfrentar o mal, concretizado na figura dos demônios. Dividida em cerca de 180 capítulos, a Legenda foi inicialmente concebida como um instrumento doutrinário para ser utilizado na pregação dos membros da Ordem Dominicana, que participou ativamente da renovação da Igreja no século XIII, junto com a Ordem Franciscana. Com o passar do tempo, a Legenda obteve popularidade, sendo traduzida do latim para as línguas locais. Uma das versões de maior destaque foi a francesa, feita por Jean de Vignay (1282/1285-?), membro da congregação dos frades hospitaleiros da Ordem de Saint Jacques du Haut-Pas e tradutor de várias obras para a família real francesa. Sua tradução da Legenda Áurea teria sido realizada entre 1333 e 1348, por encomenda da rainha da França, Joana de Borgonha (1293-1349), esposa do rei Filipe VI de Valois (1293-1350).

O manuscrito mais antigo dessa tradução que chegou até nós pode ser encontrado na Biblioteca Nacional da França. Datado de 1348, contém 345 fólios, com 132 miniaturas no total. Suas iluminuras foram produzidas na oficina de Richard de Montbaston, e algumas dão destaque às cenas de enfrentamento entre os santos e os diabos descritas no texto. Cabe destacar que, na maioria das vezes, as imagens nos manuscritos da Legenda Áurea têm a função de identificar o santo e nem sempre a de ilustrar a sua história narrada no texto. Assim, é importante constatar que o(s) iluminador(es) tivesse (m) se preocupado em retratar estas cenas de embate em algumas imagens, reconhecendo sua importância no texto.

Os corpos dos demônios retratados realçam sua origem: o reino dos mortos. São quase sempre magros e estão nus, cobertos de pelos, sempre repugnantes. Tem um rabo e duas asas (de morcego) que lembram sua condição de anjos caídos. Seus pés bifurcados parecem os de um bode. Suas cabeças são enormes e escuras, dotadas de chifres pontudos e cabelos eriçados, que evocam as chamas do inferno.

A imagem de Santo Antão apresenta dois demônios cruéis atormentando-o, com suas asas de morcego vermelhas, seus corpos peludos negros e rostos com expressões de maldade. A cena mostra o santo em visita a um túmulo, sendo agredido pelos demônios, que tentam retirar sua auréola, marca de santidade. Na imagem aparecem também três javalis, animais frequentemente associados ao diabólico.

Os demônios têm aparência sempre cruel. Fazem caretas de escárnio, com a boca fendida até as orelhas. Na imagem referente a São Macário, os diabos também tentam retirar sua auréola. Na cena, o santo dorme em um lugar onde estão sepultados pagãos e usa um corpo como travesseiro. Os demônios surgem para atormentá-lo, mas o santo mantém o semblante calmo.

A cor preta aparece constantemente nos textos e nas imagens para descrever ou representar os demônios. No Ocidente, a partir do século XI, essa é a cor diabólica por excelência. As trevas do inferno se opõem à luz celeste, assim como Satanás se opõe a Deus. São frequentes também os diabos pretos e vermelhos, duas cores que vêm diretamente do inferno, caracterizando as trevas e as chamas. O Diabo as carrega sobre si, contribuindo para torná-las ainda mais maléficas.

Os demônios podem apresentar sobre uma parte do corpo - em geral, a mais obscena, o baixo-ventre ou o traseiro - um segundo ou até mesmo um terceiro rosto, em forma de máscara, igualmente com caretas de escárnio. É o caso da imagem de Santa Teodora, em que um demônio a agride verbalmente. Ele apresenta asas vermelhas, chifres, pelos, o dedo em riste, uma expressão raivosa e um rosto no traseiro. A mesma cena ilustra a vida de São Francisco, só que, neste caso, os chifres e as asas do demônio não aparecem.

O paganismo, assim como todas as manifestações religiosas que fogem ao cristianismo, é considerado demoníaco. Os demônios, de acordo com a Legenda Áurea, habitam dentro dos ídolos, portanto, o templo pagão é seu território. Os santos procuravam convencer as pessoas disso. Assim o faz São Filipe, que se recusa a sacrificar diante de uma estátua de Marte. É nesse momento que um dragão imenso, figura relacionada ao Diabo, sai da base do ídolo e mata o filho do sacerdote que comandava o sacrifício.

As formas e as ações do Diabo e dos demônios na Legenda Áurea têm como objetivo introduzir na mente dos fiéis a convicção de que a presença do mal é real. Informado sobre a aparência, os meios e os lugares pelos quais os demônios se manifestam, o cristão poderia aprender a evitar o pecado. Para isso, suas armas seriam os exemplos de vida dos santos. Por meio dessa pedagogia sobre o mal, a Igreja reforçava suas normas de conduta moral.

Tereza Renata Silva Rocha. Anatomia do Diabo. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8, nº 88, janeiro 2013. p. 66-71.

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