"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 21 de maio de 2013

Onde foi parar o Mar Tenebroso?

Mapa do Oceano Pacífico, 1589. Ortelius

Apesar das dificuldades, as expedições foram bem-sucedidas, tanto as que seguiram para o Oriente quanto as que foram para o Ocidente. Inúmeras descobertas: mares, terras, povos, animais, plantas... Retornos cheios de glória e com muitos relatos. Isso tudo causou grande impacto e fez com que muitas ideias sobre o universo e a Terra, aceitas como verdadeiras, sofressem alterações.

Um cronista espanhol, Francisco Lópes de Gómara, em 1522, escreveu que a descoberta da América "foi o maior acontecimento desde a criação do mundo". Hoje, passados 500 anos, é difícil imaginar como as pessoas da época receberam as notícias. O espanto e a surpresa seguramente não foram sem razão. Os relatos aguçaram a curiosidade e o desejo dos reis, dos comerciantes, dos navegadores e dos estudiosos.

Américo Vespúcio, que fez várias viagens à América, em uma de suas cartas a um amigo se mostrava deslumbrado com a natureza encontrada:

"[...] fomos à terra e descobrimo-la tão cheia de árvores que era coisa maravilhosa, não somente a grandeza delas, mas seu verdor e cheiro suave que delas saía e que dava tanto conforto ao olfato [...] E o que vi aqui foi uma feíssima coisa de pássaros de diversas formas e cores, e tantos papagaios que era deslumbrante [...] E a mata é de tanta beleza e suavidade que pensávamos estar no paraíso terrestre".

Em outra carta, Américo Vespúcio apresenta um aspecto em que a realidade era diferente das ideias que corriam:

"[...] parece-me que a maior parte dos filósofos nesta minha viagem seja reprovada, pois afirmam que dentro da tórrida zona não se pode habitar por causa do grande calor, e eu vi nessa minha viagem ser o contrário [...]". (VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo, cartas de viagens e descobertas. p. 50, 51 e 55).

Os europeus tiveram que mudar muitas teorias. Por exemplo, aquelas que afirmavam ser o Oceano Atlântico um mar tenebroso e cheio de monstros. Ficou provado que as sereias e os ímãs que atraíam os navios para o fundo do mar não passavam de uma lenda, pois nenhum navegador sofreu qualquer dano dessa ordem. Também não se tem notícias de mortes provocadas pelo calor, na região do Equador.

Os habitantes encontrados na América, vivendo em diversos níveis de desenvolvimento as mais diferentes formas de vida, assustaram também os europeus¹, que tiveram de refazer muitas de suas ideias sobre a população da Terra. Encontraram pessoas, animais e plantas vivendo em regiões muito frias, temperadas ou de muito calor. Gente morando nos desertos, nas planícies, nas montanhas, nos alagados e ilhas. Gente muito diferente! Nos costumes diários, na forma de religião, nas concepções de riqueza, na alimentação, no vestuário, nas habitações...

¹ [O europeu diante dos índios americanos] "Andavam nus como a mãe lhes deu à luz [...] E todos os que vi eram jovens, nenhum com mais de trinta anos de idade: muito bem feitos, de corpos muito bonitos e cara muito boa; os cabelos grossos, quase como pêlos de cavalos, e curtos [...] Eles se pintam de preto e são da cor dos canários, nem negros nem brancos, e se pintam de branco, e de encarnado, e do que bem entendem, e pintam a cara, o corpo todo, e alguns, somente os olhos ou o nariz. Não andam com armas, que nem conhecem, pois lhes mostrei espadas, que pegaram pelo fio e se cortaram por ignorância. Não têm nenhum ferro: as suas lanças são varas sem ferro, sendo que algumas têm no cabo um dente de peixe e outras uma variedade de coisas". (COLOMBO, Cristóvão. Diários da descoberta da América. 1492, p. 45.)

Em muitas cidades da Ásia e da África oriental, os europeus ficaram fascinados pelo luxo e riqueza encontrados. No entanto, era mais ou menos o que esperavam encontrar, de acordo com as descrições que já tinham chegado à Europa através dos mercadores e viajantes. Mas ficaram espantadíssimos com as cidades ricas da África, de população negra, e com as dos astecas e incas, na América.


Templo do Sol, Palenque


Também as populações mais simples, tanto da África quanto da América, assombraram os europeus. Quem são elas? Por que se comportam assim? Como chegaram a se organizar dessa forma? Por que não se interessam, como os europeus, pelas riquezas, por exemplo, o ouro e as pedras preciosas? Seguramente, essas questões estavam na cabeça dos descobridores e das pessoas que passaram a ter conhecimento do que existia no mundo, um mundo muito maior do que tinham imaginado.

Nos diários, nas cartas e relatos diversos que nos deixaram os navegadores, os escrivãos e outros estudiosos que faziam parte das expedições, as descrições são inúmeras e demonstram o espanto do primeiro encontro. Na África², encontraram populações que possuíam o ouro e a prata, mas esses metais de nada lhes serviam e, como moeda, usavam os búzios. Em certas regiões da América e em algumas ilhas da Oceania, encontravam povos vivendo de forma muito simples. Quase todos andavam nus, enfeitavam-se com penas coloridas e viviam do que coletavam na natureza. Um exemplo é o caso dos índios do Brasil e de várias outras partes do continente americano.

² [Os africanos diante do europeu] "Os negros, tanto homens como mulheres, acorriam todos para me ver [...] Alguns mexiam-me nas mãos e friccionavam-me os braços com saliva, para ver se minha brancura provinha de qualquer pintura ou se a carne era mesmo assim. Quando verificavam isso, ficavam muito espantados". (CADAMASTO, A. Relação da viagem à costa ocidental da África. 1457, p. 70).

Mas, por outro lado, a organização política, social, econômica e cultural, principalmente dos astecas e incas³, espantou os espanhóis. Tenochtitlán, capital dos astecas (onde hoje é a cidade do México), deixou Cortés, conquistador espanhol, absolutamente surpreso. Ele a descreveu em detalhes e chegou a compará-la com as grandes cidades da Espanha. Para alguns historiadores, Tenochtitlán, no século XVI, juntamente com Constantinopla, eram as duas maiores cidades do mundo, apesar de se ignorarem.

³a [Os incas diante dos espanhóis] "Atahualpa (cacique dos incas) viu chegar os primeiros soldados dos espanhóis, montados em briosos cavalos ornamentados com casquetes e penachos, que corriam provocando ruído e poeira com seus cascos velozes: tomado pelo pânico, o inca caiu de costas". (GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina).

³b [Os astecas diante dos espanhóis] "[...] rápido dispararam um canhão: tudo ficou confuso. Corriam sem rumo, as pessoas dispersaram-se sem que nem porque, debandavam, como se fossem perseguidos. Tudo era como se todos tivessem comido cogumelos estupefacientes, como se tivessem visto algo assombroso. O terror dominava a todos, como se todo mundo tivesse perdido o coração. E, quando anoitecia, era grande o espanto, o pavor se estendia a todos, o medo dominava todos, por temor perdiam o sono". (LEÓN-PORTILLA, Miguel. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. p. 76).

As descrições dos contemporâneos são muitas e cheias de assombro. Era o espanto diante do diferente e do inacreditável, tanto do lado dos europeus quanto dos povos africanos e americanos. O Mar Tenebroso deixou de ser o lugar perigoso que separava os povos para tornar-se o mar que conduzia as embarcações, os homens e as ideias, ligando a Europa ao Oriente, África e América. Mundos diferentes! Pessoas diferentes! Ideias diferentes! Mas, no entanto, vivendo o mesmo tempo histórico e, a partir dos descobrimentos, não mais podendo se ignorar.

GARCIA, Ledonias Franco. Estudos de história: sociedade dos tempos modernos. Goiânia: UFG, 1998. p. 79-84.

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