"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 13 de janeiro de 2013

O controle da Igreja sobre a moda e a beleza feminina na Baixa Idade Média

Moda medieval da nobreza. Livro de Horas do Duque de Berry, cerca de 1410


O ideal de beleza das heroínas medievais, descrito nos romances, era: pele clara, rosto alongado, cabelos louros, boca pequena, olhos azuis e sobrancelhas bem desenhadas.

Com exceção do rosto, as partes do corpo feminino raramente foram descritos. A maioria dos autores omitiu castamente tudo o que se encontrava abaixo do pescoço. Conclui-se, apenas, que os homens do século XII gostavam de mulheres de corpo delgado, linhas delicadas, pernas longas, seio alto e pequeno.

Porém, a mulher que cuidava da aparência era criticada pelos escritores e pregadores da época, que chegavam a afirmar:

Mulher aposta naturalmente na aparência porque se sabe deficitária na substância; a sua tradicional falta de racionalidade e de firmeza leva-a a privilegiar os bens caducos e imperfeitos da exterioridade, incapaz como é de perseguir sozinha os bens perfeitos e duradouros da virtude. (VARAZZE, Tiago. Chronica.)

A dama medieval dos séculos XI e XII foi impelida ao uso de boa roupa porque as transformações econômicas e sociais da época estavam ligadas aos tecidos, que eram mercadoria essencial no comércio europeu e um produto industrial básico nas novas cidades.

O vestuário, portanto, tornou-se uma marca da posição social, como também um meio que possibilitava distinções políticas, o que originou a lei sumptuária, publicada por Filipe, o Belo, em 1294. Essa lei proibia à burguesa a indumentária distintiva da aristocracia e era, na realidade, uma concessão à nobreza ressentida com a proteção régia a essa classe influente e versátil.

As mulheres mostraram-se particularmente vulneráveis à modelação social que o vestuário permitia porque as roupas que lhes eram destinadas simbolizavam os direitos dos maridos sobre elas. Quando rainhas se casavam com estrangeiros, muitas vezes faziam questão de continuar usando a moda de sua terra de origem como que rejeitando ao mesmo tempo um selo conjugal e um selo nacional. Mulheres burguesas que mudavam de vestuário segundo os caprichos da moda ameaçavam desenvolver uma personalidade que desafiava a autoridade dos maridos e enfraquecia a identidade coletiva de uma linhagem.

Outras mulheres, que possuíam convicções espirituais, consideravam que o valor social do vestuário era uma ameaça para a integridade de sua alma, como acreditava uma mãe do século XIII que alertou sua jovem filha sobre o perigo das roupas finas: "Odeia, portanto, bela filha, e despreza, no teu íntimo, as roupas e as elegâncias do mundo, visto que as tens por vezes que usar". (HUGUES, Diane Owen. As modas femininas e o seu controle.)

Outro exemplo é o da esposa de Jacopone da Todi, que, apesar de usar os adornos como símbolo da posição da família, vestia por baixo uma camisa de crina para proteção do seu espírito. Para ela, a camisa de crina constituía um modo secreto de impedir que as marcas coletivas e públicas do vestuário queimassem a sua carne e corrompessem a sua alma. Somente após sua morte, essa sua prática foi descoberta, servindo para conversão de seu esposo.

As mulheres daquela época também gostavam de parecer delgadas; para isso, as damas da nobreza usavam uma comprida camisa de linho, sobre a qual punham um manto guarnecido de pele, muito justo, ao qual acrescentavam uma blusa também justa. Elas usavam cintos cravejados de joias, bolsas de seda e luvas de pelo de camelo. Adornavam de flores os cabelos ou prendiam-nos com fitas de seda cobertas de joias. "Algumas irritavam o clero e, sem dúvida, o marido, com o uso de chapéus altos em forma de cone, enfeitados com chifres. Houve um tempo em que uma mulher ficava sujeita a cair no ridículo se não tivesse chifres no chapéu". (BUTLER, P. Women of medieval France.)

Tronou-se moda nos últimos tempos da Idade Média o uso de sapatos com solas altas. Os moralistas queixavam-se de que as mulheres sempre achavam pretexto para levantar os vestidos uma ou duas polegadas e mostrar os finos tornozelos e os belos sapatos. Também criticavam a maquiagem nas mulheres, afirmando:

A mulher maquiada e vestida com sumptuosidade privilegia, contrariamente à ordem querida por Deus, a vil exteriorização do seu corpo em relação à preciosa interioridade da sua alma; o excessivo agrado que mostra por uma roupa que lhe envolve o corpo, pela cor de um tecido que a valoriza ou por um penteado que lhe fica bem, trai um interesse todo voltado para o cuidado exterior do corpo, que não deixa espaço nem tempo para o cuidado amoroso da virtude. A cosmética, em especial, revela uma soberba sem limites: a mulher que pinta suas faces de vermelho ou que altera a cor dos cabelos ou que esconde os sinais de envelhecimento sob cosméticos e perucas é uma mulher que, a par de Lúcifer, contesta e pretende melhorar a imagem que Deus lhe deu, chegando até a se julgar capaz de intervir nas leis da temporalidade governadas por Ele. (CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia.)

O autor anônimo de um texto do século XIII, denominado Ornatus mulierum (O ornamento das damas), discordando do discurso moralista anterior, afirma que escreveu seu livro para ajudar as mulheres a encontrarem os meios para preservar corretamente os traços físicos e aprender a melhorar a aparência, pois:

[...] quando Deus criou a mulher, deu-lhe a enorme beleza da juventude, mas Eva a perdeu por causa do diabo, depois que comeu a maçã (sic). As damas de sua época, herdeiras do castigo imposto a Eva, continuavam a pagar pelo pecado praticado no Paraíso: quando jovens tinham a pele delicada, clara e rosada, mas perdiam a beleza após o casamento; outras, em nenhum momento da vida gozaram de tal qualidade. (RUELLE, Pierre. (ed.) Ornatus mulierum.)

Para ele, a beleza feminina devia ser valorizada, e não ocultada. Recuperando e mantendo a beleza, a mulher poderia livrar-se da culpa ancestral herdada de Eva. Seu manual de beleza contém 88 indicações de cosméticos e remédios destinados aos cuidados femininos.

[...]

Para os religiosos da Idade Média, o cuidado excessivo com a aparência constituía um grave defeito moral. A vaidade era considerada um defeito que devia ser evitado. Os escritores cristãos, principalmente os vinculados ao clero regular, trabalharam arduamente para restringir a difusão de ideias de valorização dos traços físicos e da aparência.

Tomás de Aquino orientava a tratar o amor ao vestuário como um pecado venial, quando era induzido pela vaidade mais do que pela luxúria; já os pregadores mendicantes posteriores o consideravam um pecado mortal.

Os cardeais elaboraram até algumas leis sobre o comprimento dos vestidos e decretaram que as mulheres deveriam usar véus. Então, elas mandaram fazer véus de musselina e seda muito fina com fios de ouro, com os quais se mostravam mais belas e provocavam ainda mais os olhares dos homens.

Os eclesiásticos tentaram, no século XIII, criar uma categoria visual de honra feminina insistindo no véu como um sinal de mulher convenientemente casada - uma moda expressamente recusada por muitos governos urbanos a prostitutas públicas, que tinham de andar na rua com o rosto descoberto. Essa iniciativa fracassara com a invenção de véus de seda transparente que nada ocultavam e com a de outros véus mais complicados que escondiam demais, dissimulando perigosamente a identidade e o estatuto de uma mulher. (HUGHES, Diane Owen. As modas femininas e o seu controle.)

O monge Guyot de Provins queixava-se de que as mulheres usavam tanta pintura no rosto que nada sobrava depois para colorir as imagens; preveniu-as de que, ao usarem cabelos postiços ou ao aplicarem no rosto cataplasmas de feijões moídos e leite de vaca para melhorar a sua cútis, estariam, com isso, prolongando por muitos séculos o seu sofrimento no purgatório.

[...]

As mulheres laicas viviam debaixo de assídua vigilância e repressão também em relação a seus gestos e movimentos, condenados a fixidez e imobilidade [...].

Além disso, os religiosos condenavam mulheres que dançavam e cantavam, chegando a afirmar: "A mulher que dá início ao canto é a capelã do diabo, e aqueles que a acompanham, os sacerdotes". (VITRY, Tiago de. Ad virgines.)

Recomendações feitas às mulheres, por parte dos leigos, eram menos rígidas, permitindo a dança, mas com compostura, sem deixar, porém, de acrescentar outras normas a serem observadas: não ficar debruçadas na janela ou postadas à porta [...], não se divertir demasiado, não comer muito e mover-se com contenção.

As mulheres de vida secular dispensavam cuidados com sua aparência, apesar de criticadas pelos religiosos, porém as monjas, que eram consideradas quase santas pela vida reclusa e espiritual, tornavam-se mais belas pelo uso de adornos simbólicos [...].

ALMEIDA, Rute Salviano. Uma voz feminina calada pela Inquisição. São Paulo: Hagnos, 2011. p. 63-72.

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