"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Cultura popular e vida cotidiana na Europa moderna

O Renascimento, que marcou a cultura europeia da época moderna, impregnou-a de valores eruditos e elitistas.

Até por volta da segunda metade do século XX, a historiografia tradicional nem sequer levantava questões sobre a vida das pessoas comuns. Atualmente, porém, as questões envolvendo a vida, as ações, os sentimentos e as concepções de homens e mulheres comuns constituem um dos principais campos de estudos históricos, gerando novos temas, como a história dos oprimidos, excluídos, marginais e vencidos. Isso indica um tipo de avaliação qualitativa sobre o sentido histórico da expressão povo em oposição à história dos grandes homens, isto é, os vencedores, dominantes, opressores e heróis.

Essa nova abordagem requer, também, a utilização de novos tipos de documentos e/ou uma nova leitura dos documentos tradicionais. Nesse sentido, há dois tipos de fontes fundamentais: as obras de arte - literatura e artes visuais -, que em geral registram a vida das pessoas comuns, incluídas no conjunto da sociedade; e os documentos jurídicos e inquisitoriais, entre os quais se encontram processos contra os transgressores das normas vigentes, isto é, os oprimidos e marginalizados.


A leiteira, gravura de 1510 do artista holandês Lucas de Leyde.

* Homens e mulheres comuns. Os grandes (como os reis) eram poucos e quase todos aparentados. Podem, assim, ser conhecidos em suas individualidades. Já o povo, formado pelos mais diversos grupos e categorias sociais - que em muitos casos nem a mesma língua falavam, é mais facilmente conhecido por meio de tipos, componentes de uma multidão (camponeses, soldados, artesãos).

Dois setores fornecem alguns tipos mais significativos da cultura popular e do modo de vida de homens e mulheres comuns, na época moderna: o trabalho e a feitiçaria.

* Trabalho e cultura popular. O trabalho era o principal elemento de identificação da parte da população conhecida como povo. Na Europa moderna, 80 a 90% dessa categoria ainda era constituído por camponeses. Entretanto, a importância dos trabalhadores urbanos foi crescendo gradualmente.

Na época moderna, o campo e a cidade partilhavam de uma identidade popular comum, conferida por sua posição frente aos poderosos. Para estes, o trabalhador, do campo ou da cidade, seria o povo e, como tal, alguém a ser sobretudo controlado.

Embora partilhassem de uma identidade comum, camponeses e cidadãos (habitantes da cidade) hostilizavam-se. Ou melhor, os cidadãos desprezavam e discriminavam os camponeses.

- A vida nos campos. Entre os camponeses havia uma diversidade muito grande, conforme as regiões que habitavam e as atividades que desenvolviam. Os homens do campo eram agricultores, artesãos, pastores, mineiros. Entre eles havia muitas diferenças culturais e antagonismos.

Os agricultores estavam ainda muito marcados pelas estruturas feudais, algumas das quais persistiram durante toda a época moderna. Entre os pastores, porém, eram raros os servos da gleba; já os artesãos levavam vida itinerante, praticando seu ofício em diferentes aldeias.

Cada grupo desenvolvia culturas distintas e próprias. As canções, poesias, danças e outras manifestações populares revelam uma extraordinária diversidade de condições de vida e visões de mundo.

De modo geral, a cultura popular camponesa apresentava profundos vínculos com as tradições pagãs, notadamente nos aspectos religiosos. Muitos mitos e práticas rituais cristãs eram adaptações ou mesmo transposições de cultos e lendas referentes às antigas divindades e seres sobrenaturais. Por isso, no imaginário popular moderno, o espaço do campo era habitado por seres fantásticos (duendes, anões, gnomos, fadas, bruxas, magos e prestidigitadores de toda sorte) que interagiam e interferiam na vida dos seres humanos. Acreditava-se que percorriam os campos e as aldeias, às vezes auxiliando, mas quase sempre causando medo e prejuízos aos habitantes.

Esses seres eram considerados poderosos, podendo ser conjurados por meio de mágicas e sortilégios, tanto para fazer o bem quanto para provocar malefícios.

- O cotidiano nas cidades. Embora ainda vigorassem instituições e normas feudais na regulamentação dos ofícios e da prática do comércio, as atividades nas cidades eram cada vez mais desenvolvidas de acordo com as novas exigências capitalistas. O trabalho assalariado tornou-se predominante, e a produção manufatureira submeteu-se às necessidades do comércio, ficando mais sob o controle de quem vendia as mercadorias do que de quem as produzia.

A cultura popular nas cidades apresentava-se, mais do que no campo, extremamente diversificada. Apesar das modificações das formas de trabalho, os artesãos urbanos continuavam organizados em corporações ou guildas que, além de defender os interesses da categoria, eram responsáveis por manifestações culturais específicas.

As festas, a arte, a religião ensejavam os mais diferentes tipos de manifestações culturais da população urbana, cujos registros - alguns recolhidos bem posteriormente - compõem uma espécie de patrimônio constituído de poemas, canções, pinturas e peças de teatro que representam a modernidade tanto quanto as belas-artes clássicas do Renascimento.

* Feitiçaria e Inquisição. O crescimento da massa trabalhadora, do qual dependia o desenvolvimento econômico das nações modernas, e as mudanças em sua condição de vida eram ensejos para muitas situações de conturbação da ordem e conflitos, sobretudo quando havia carestia ou escassez dos gêneros de subsistência. Ou, no contexto das reformas religiosas, quando havia contestação às igrejas oficiais.

Nessas ocasiões, os trabalhadores eram tratados como transgressores, tanto da ordem social como da ortodoxia religiosa.

Dentre os diversos tipos de transgressores, os praticantes da feitiçaria - ou mais especificamente as feiticeiras - eram apontados como os principais perturbadores da ordem terrena e divina.

O desenvolvimento da modernidade tinha por fundamentos o humanismo e o uso da razão, do discernimento crítico. No entanto, isso não foi capaz de conter, e talvez tenha até estimulado, um dos mais violentos e irracionais processos de perseguição a pessoas cujo crime era ser diferente, estranho, isto é, pessoas consideradas o outro.

A instituição que chamou a si o encargo e o presumido direito de exercer o controle sobre o pensamento e a ação das pessoas, vigiando, coibindo e punindo os desvios e as contestações, foi a Inquisição.

As pessoas identificadas como hereges eram consideradas "perigosas e ameaçadoras" para as instituições e a sociedade organizada. Dois grupos foram os principais enquadrados nessas categorias: os cristãos-novos (judeus) e os praticantes de feitiçaria. Entre estes últimos, embora houvesse homens, a grande maioria era de mulheres. Herdeiras da misoginia medieval, também eram muito discriminadas na época moderna.

A perseguição inquisitorial aos judeus convertidos ao catolicismo foi típica, quase exclusiva, dos países da península Ibérica, estendendo-se às suas colônias na América. As feiticeiras foram caçadas em toda a Europa. O período compreendido entre o século XV e meados do século XVI foi marcado pela caça às bruxas.

Além da violência da execução, os processos inquisitoriais admitiam o uso da tortura como meio de obter a confissão das acusadas. Mesmo que escapasse da morte, a mulher não estava livre dos tormentos.

O tribunal religioso recebia as denúncias, interrogava e concluía pela culpa ou não dos acusados. Os considerados inocentes (raros) eram liberados, depois de pagas as custas do processo. Os condenados a cumprir penitência eram mantidos em prisão perpétua pela Igreja.

Os culpados de falta grave, os que não confessavam sua culpa e os reincidentes eram entregues ao poder laico, que, depois de um novo julgamento meramente formal, estabelecia e executava a sentença de morte. A condenação e a execução deviam ser assumidas pelo Estado, pois a Igreja, generosa e caridosa por definição, não podia sujar as mãos com o sangue dos cristãos.

* Expansão do mundo moderno e o outro. A modernidade europeia foi múltipla e diversificada. Foi uma época marcada pelas criações fulgurantes da arte renascentista e pela intolerância em relação ao outro - diferente e, por isso, inimigo -, reafirmada pela renovação religiosa. Nesse período a Europa expandiu suas fronteiras continentais pelo mundo, sem reconhecer limites, como afirmam os versos de Camões, em Os Lusíadas:

Por mares nunca dantes navegados
Nossos mundos ao mundo ião mostrando
E mais mundo houvera lá chegara.

Mas nos novos mundos havia outros povos, diferentes dos europeus. Para cada novo e estranho povo, tratado como o outro, o inimigo, não faltaram fogueiras... e outras penitências!

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 265-269.

Nenhum comentário:

Postar um comentário