"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Por que globalizar a cultura? [II- Uma revolução cultural rica e abortada]

Cena do filme Deus e o diabo na terra do Sol, dir. Glauber Rocha

Houve um momento em que se reagiu contra essa penetração ideológica estrangeira.

Foi nas décadas de 1950 e 1960 quando o Cinema Novo produziu algumas películas marcantes. Nelas, havia grande preocupação com o conteúdo social. Foram feitos filmes que alcançaram projeção internacional.

É o caso de Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte. Ambos tratam da população mais pobre da cidade do Rio de Janeiro. Tiveram a direção de Nelson Pereira dos Santos. Como esquecer O pagador de promessas? Nele, Anselmo Duarte conta a história do caboclo Zé do Burro. É um tema nacional porque mostra o sincretismo religioso dos caboclos e a intransigência da Igreja Católica.

Na época, Glauber Rocha dizia: "Uma câmara na mão e uma ideia na cabeça." Quem sabe você já assistiu a uma das suas grandes realizações, chamada Deus e o diabo na terra do sol?

Clubes de cinema, congressos e entidades como o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes, lutaram pela valorização de questões nacionais! [...]

O teatro igualmente deu sua contribuição. Multiplicaram-se os teatros de bolso, cobrando ingressos mais baratos. O Tablado, de Maria Clara Machado, o Teatro de Arena, de Gianfrancesco Guarnieri, e o Grupo Oficina valorizaram antigos e novos autores de peças nacionais. Apresentaram muitos textos políticos!

Dessa época são duas das maiores peças teatrais produzidas entre nós: Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, e Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Viana Filho, o popular Vianinha.

Vianinha, com João das Neves, Augusto Boal e outros, fundou o CPC, em dezembro de 1961. Esse órgão da UNE foi um dos focos dessa revolução cultural. Peças teatrais foram levadas aos sindicatos. Fizeram-se documentários abordando questões econômicas e sociais da realidade brasileira. Distribuíram-se livros, discos e revistas tratando da dívida externa, da reforma agrária e do dia a dia do brasileiro. Editaram-se livros de poesia e de literatura de cordel. Músicas de protesto, como Subdesenvolvido e O povo canta, foram popularizadas.

Essa renovação da cultura brasileira sob uma visão nacional também se deu na revalorização do samba. Muito significativa é a crítica apresentada por Wilson Batista e Roberto Martins. Está presente no samba Pedreiro Waldemar. Veja a letra:

Você conhece o pedreiro Waldemar?
Não conhece
mas eu vou lhe apresentar.
De madrugada toma o trem da circular
faz tanta coisa e não tem casa pra morar.

Em 1960, uma autoridade da cidade do Rio de Janeiro propôs fossem as favelas pintadas. Considerando serem inevitáveis, os barracos nela existentes deveriam ser coloridos. De imediato, Jota Júnior e Oldemar Magalhães deram a resposta:

Favela amarela...
Ironia da vida.
Pintem a favela
Façam aquarela
Da miséria colorida!

Este samba, "Favela amarela", foi bastante cantado no Carnaval de 1960.

Aí veio a longa noite dos generais: a ditadura militar.

A UNE foi fechada. O CPC acabou. A censura e a repressão física chegaram. Muitos acabaram presos. Essa renovação foi sufocada.

Mesmo assim, Zé Kéti ainda conseguiu divulgar seu protesto no samba "Opinião":

Podem me prender.
Podem me bater.
Podem até deixar-me sem comer
que eu não mudo de opinião!

[...] Apesar da influência da Jovem Guarda, foi rica a produção de melodias ligadas às tradições brasileiras. Nos festivais de música popular, realizados nas emissoras de televisão, havia verdadeira guerra entre os sambas e as músicas mais ou menos politizadas. Como titular de programa da TV Record, de São Paulo, desde 1969 destacou-se a Jovem Guarda. Dela participavam Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléia e outros. Em suas músicas, as letras eram românticas ou reproduziam as angústias da classe média. Muitas delas foram feitas para ganhar festivais, pois o grupo também participou do Festival da Música Popular Brasileira, em 1967.

Essa corrente tinha letras despolitizadas. Era um verdadeiro contraste com as músicas de protesto.

De que vale o céu azul
E o sol sempre a brilhar
Se você não vem
E eu estou a lhe esperar
Só tenho você no meu pensamento
E a sua ausência é todo o meu tormento
Quero que você
me aqueça neste inverno
e que tudo mais vá pro inferno.
(Quero que vá tudo pro inferno, canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos)

Outra linha musical "tinha como características a marca regional, o acento nordestino e a ausência de conotação urbana". Essa análise é de Martha San Juan França. [...]

[...]

Foi nesse contexto que explodiu uma reação de grande impacto: o Tropicalismo. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e outros artistas, muitos deles baianos, provocaram verdadeiro escândalo. Por vezes, apresentavam-se acompanhados de conjuntos tocando guitarras elétricas.

Na História social da música popular brasileira, o crítico José Ramos Tinhorão afirma que os tropicalistas renunciaram a qualquer questionamento político-ideológico. Textualmente declara que os tropicalistas "acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do governo militar no plano político-econômico. Ou seja, a tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no palco".

[...]

Mesmo assim, Alegria, alegria, de Caetano, e Domingo no parque, de Gil, foram bastante populares na época, principalmente entre os jovens. Para algumas pessoas, aquela música de Caetano era uma crítica à alienação.

Apesar da feroz censura, a resistência à ditadura militar e aos estrangeirismos produziu melodias de grande sensibilidade e beleza. As críticas não deixavam dúvidas da posição política dos autores.

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo o troco...
(Pesadelo, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós)

Mas as expressões máximas desse período foram certamente Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda, Torquato Neto, Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, Ivan Lins, Taiguara e Jards Macalé. Esses artistas chegaram a ser considerados malditos. Tiveram músicas censuradas. Alguns partiram para o exílio.

[...]

Vandré compôs uma melodia cheia de frases-denúncias e de estímulo à luta: Caminhando - Pra não dizer que não falei de flores. Foi uma loucura em um dos festivais da canção. Centenas de pessoas logo repetiam a letra, entoando a melodia.

Caminhando e cantando
E seguindo a canção.
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos,
De armas na mão.
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição.
De morrer pela pátria
E viver sem razão [...]

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.

Militares até pediram a prisão de Vandré.

Felizmente, a sensibilidade e a coragem de um punhado de artistas resgatavam os valores e a riqueza da cultura nacional. Eles e muitos outros continuaram a resistir. A denunciar a violência existente.

[...]

Quase ao findar a década de 1970, a censura deixou passar uma canção marcante. Melodia belíssima. Notável interpretação de Elis Regina. Letra de alegorias, mal disfarçando as denúncias e críticas à ditadura existente. Às atrocidades cometidas. Às mulheres viúvas de opositores assassinados. Uma mensagem plena de esperança no amanhã. Na volta da democracia. No retorno daqueles que partiram. Exilados ou banidos.

O bêbado e o equilibrista, canção de Aldir Blanc e João Bosco, em 1979, tornou-se verdadeiro hino do Movimento pela Anistia.

E nuvens
lá no mata-borrão do céu
chupavam manchas torturadas,
que sufoco!
[...] Chora
a nossa pátria-mãe gentil
[...] com a volta do irmão do Henfil
com tanta gente que partiu
num rabo de foguete.
[...] Azar,
a esperança é equilibrista,
sabe que o show de todo artista
tem que continuar.

É fundamental multiplicarmos o número de artistas cada vez mais conscientizados da necessidade de lutar. Lutar contra a globalização da cultura e da sociedade brasileira.

Globalização que, na realidade, é a nova face do imperialismo.

[...]

Não podemos contar com a grande maioria das autoridades. Ela está preocupada em subvencionar os Rock' in Rio, Hollywood Rock, Free Jazz. O domínio da opinião pública pelos meios de comunicação e gravadoras multinacionais busca impor sons musicais contaminados pelo popularesco.

As emissoras de rádio e televisão inundam o país com os sons de conjuntos impregnados por esses sons. [...]

[...] a política dos meios de comunicação não visa apenas a compor gostos, modas. Criar sucessos. Seu objetivo real é alienar. [...]

[...]

Apesar dessa massificação o rap tem invadido as cidades, descendo do morro ou da periferia, com músicas de duvidosa qualidade. Algumas delas, no entanto, constituem verdadeiros protestos políticos e sociais.

Felizmente um Zeca Pagodinho, um Bezerra da Silva, uma Beth Carvalho, um Renato Russo, um Paulinho da Viola, um Nelson Sargento ainda sustentam a bandeira da genuína MPB. Sem perder a beleza da melodia, nem a malemolência do ritmo, suas músicas contêm frases-denúncia da realidade brasileira.

A injustiça impera na face
da Terra
A miséria sempre gera guerra
Por isso existem os conflitos
sociais
E as nossas crianças nas ruas
estão desamparadas
(Juiz de toda humanidade, samba de Bicalho e Capri. Canta Bezerra da Silva)

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Brasil: uma história popular. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 166-175.

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