[...]
A ciência, que nessa segunda metade do século XIX conheceu
notáveis avanços, orientava e dava legitimidade às ações do Estado para
organizar a vida urbana.
Isso criou o mito de que as cidades podiam ser administradas
unicamente com critérios técnicos. Acreditava-se em uma racionalidade que
estaria acima das desigualdades e dos conflitos sociais. A boa condução
política da vida urbana seria uma questão de competência e de eficiência. Dessa
noção nasceu a ideia de que na sociedade existiam "classes
perigosas", ou seja, classes que ameaçavam a ordem e a saúde públicas.
Assim, uma questão social era reduzida a um problema administrativo e policial,
a ser resolvido pela competência das autoridades públicas.
A pobreza, nessa visão, estava ligada à ociosidade, à
preguiça. Pobreza e preguiça relacionavam-se com a criminalidade, a
promiscuidade, a falta de higiene e a imoralidade. Por tudo isso, ao lado de
medidas sanitárias, prescrevia-se o combate aos vadios.
Em um importante debate parlamentar na Câmara dos Deputados
do Império, logo após a abolição da escravatura, em 1888, discutia-se um
projeto para combater a ociosidade. Os deputados estavam preocupados com as
consequências da abolição na organização do trabalho.
Inspirada em autores franceses que trataram das
"classes perigosas", a comissão parlamentar que examinou o projeto de
lei contra a ociosidade concluiu:
As classes perigosas e viciosas, diz um criminalista
notável, sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas
as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o
título de classes perigosas; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo
crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo
motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se mais a
mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o
que é pior, pela ociosidade.
Os estudos sobre o mundo urbano se intensificam com o
objetivo de tomar medidas ligadas à saúde pública.
Nesse novo ponto de vista, a morte deixava de ser um mal
inevitável, que devia ser aceito com resignação cristã. Tornou-se um mal com
causas que a ciência era capaz de evitar e combater.
Foi assim que nasceram os projetos públicos de cuidados com
a vida e a saúde da população urbana. Era preciso prevenir, estabelecer uma
medicina do ambiente que permitisse evitar as doenças, principalmente as
epidemias. O Estado assumiu para si o encargo de cuidar da saúde da população.
A nova ordem implantada pelo capitalismo exigia uma vida
social mais disciplinada e previsível. A racionalidade calcada nos
conhecimentos científicos passou a orientar as ações do poder público.
Uma população civilizada, ordeira e saudável interessava
tanto ao desenvolvimento econômico, como ao poder do Estado. O controle do
Estado sobre a vida social aumentou enormemente.
Essa modernização, que na própria Europa encontrou
obstáculos, foi marcada por grandes contradições no Brasil.
Um bom exemplo dessas contradições são as avaliações acerca
da conveniência ou não da roda dos enjeitados.
Na Europa as políticas de assistência aos pobres provocaram
intensos debates, principalmente nas décadas de 20 e 30 do século XIX.
Do ponto de vista da racionalidade e da moralidade burguesa,
defendia-se a ideia de que a assistência aos pobres estimulava a
irresponsabilidade, a indisciplina e a imoralidade. Assim, argumentava-se que o
acolhimento das crianças contribuía para o aumento do abandono, e não para a
sua redução. Encobrindo-se o crime, acolhendo os frutos de amores ilícitos,
contribuía-se para a depravação dos costumes.
No Brasil os pronunciamentos médicos foram no sentido de
defender a Casa dos Expostos com argumentos religiosos. Os médicos argumentavam
que sem essa instituição as maiores vítimas seriam crianças inocentes.
A eliminação da Casa da Roda favoreceria crimes considerados
ainda piores do que o de abandonar crianças: o infanticídio e o aborto. A
caridade e a solidariedade cristãs, e mesmo a própria Providência divina, eram
invocadas em defesa da roda. Ela seria sinal de civilização, de caridade cristã
e uma forma de preservação da família e da sociedade. Impediria o escândalo de
uma mãe com um filho natural, visto como a maior prova da sua fraqueza.
A mulher, considerada um ser frágil e passivo, seria uma
vítima da sedução, precisando de proteção e de uma oportunidade para se redimir
e levar uma vida digna. Mais culpados do que a frágil mulher seriam o
celibatário e o libertino, os quais contribuiriam para a decadência dos
costumes.
Dessa forma a racionalidade das normas recomendadas à mulher
como esposa e mãe se perdia quando os médicos se referiam à Casa dos Expostos.
Com isso eles manifestavam a dualidade entre a modernização e o compromisso com
o passado.
PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos
temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 256-59.