"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O mundo mediterrâneo às vésperas das Cruzadas 3: o mundo cristão ocidental

Debate entre católicos e cristãos orientais, artista desconhecido

[Se comparado com o Oriente, o Ocidente parece um mundo bárbaro onde, contudo, grandes mudanças estão para acontecer] No princípio do século XI, o Ocidente encontrava-se esvaziado de homens, seu campesinato era pobre e subjugado. Castelos construídos em madeira formavam o horizonte dos homens. O dinheiro não circulava, a cultura estava acantonada na corte dos príncipes e nos monastérios. Os poderes estavam fragmentados e a brutalidade caracterizava as relações sociais. Mas, depois do ano 1000, as grandes invasões cessaram. A população cresceu. Os camponeses, providos de melhores ferramentas, desbravaram os terrenos escassos à custa de florestas. A produção agrícola aumentou. O campesinato conseguiu excedentes graças a uma maior produtividade. Os alimentos, tendo se tornado mais abundantes, fizeram recuar a fome e as epidemias. As cidades passaram a reunir uma população mais numerosa e começaram a se distinguir dos campos. Sem condições, entretanto, de ser comparadas com as ricas metrópoles do Oriente, as mais populosas não ultrapassavam 10 mil habitantes.

Os ocidentais retomam as viagens distantes, através das rotas do Norte, pela Escandinávia e pela planície russa, pela Europa central, ao longo do Danúbio, pelo Mediterrâneo, a partir da Itália e da Catalunha. Eles exportam matérias-primas e escravos, e importam produtos de luxo. Estes são encontrados nos portos orientais, em Constantinopla, na costa da Síria e em Alexandria.

[A emergência da cavalaria] Em um contexto de enfraquecimento do poder real causado pelas invasões, emergem, localmente, pequenos senhores; eles são, teoricamente, representantes do rei e investidos, em seu nome, do "direito de proclamas", o direito de comandar, de julgar e de punir, mas, na realidade, se comportam como verdadeiros senhores e defensores de seu cantão, a partir dos castelos de madeira onde viviam entrincheirados.

Mudanças também ocorrem na arte de combater. Vestidos com uma couraça e um capacete, os senhores aperfeiçoam seus armamentos defensivos e ofensivos. A guerra passa a ser negócio para especialistas. Para exercer a profissão de guerreiro, é preciso formar-se no ofício das armas desde a primeira infância, e também ser rico para adquirir o equipamento necessário. De modo que assim, e por muito tempo, o campesinato ficou relegado aos trabalhos pesados.

No correr do século XI, esses senhores e seus companheiros, combatentes a cavalo, finalmente são designados coletivamente pelo nome de "milites" (soldados), na verdade cavaleiros. No topo da hierarquia social, distinguem-se dos outros homens por seus privilégios, seu comportamento, sua mentalidade. Eles formam uma sociedade masculina da qual as mulheres estão ausentes, uma casta de herdeiros preocupados com seus ancestrais. Seus valores são a coragem e a força; por escolha, são iletrados, pois a educação do espírito corrompe. À coragem devem acrescentar fidelidade e sentido de honra. Os cavaleiros se enfrentam em combates em grandes unidades, as "batalhas". Sua tática predileta é a carga furiosa, com a lança abaixada, diante da qual a infantaria não pode resistir, mas é preciso que disponham de um terreno apropriado - vastos espaços planos e descobertos.

[Paz de Deus e cavalaria de Cristo] Os membros da Igreja por vezes participavam do ideal da cavalaria e não desconsideravam combater com os cavaleiros. A Igreja teve êxito em desligar o clero do feudalismo por meio do grande movimento da reforma gregoriana. Desse modo, certos clérigos conseguiram estabelecer a "paz de Deus", proibindo os combates em certos períodos. Essa vontade de transformação se manifestou logo de início, principalmente, no clero regular, e novas ordens foram criadas: Grandmont, os Chartreux, Prémontré e, sobretudo, Citeaux. Como faltava-lhe o poder para impedir a guerra, a Igreja tentou cristianizar e dar um caráter religioso à cavalaria. O cavaleiro transformou-se em um herói piedoso que devia proteger as pessoas e os bens da Igreja, os fracos, os pobres, as viúvas, os órfãos em nome de Deus. Seu objetivo supremo era a luta contra o Infiel.

Dois personagens disputavam a direção da política do Ocidente medieval: o imperador do Sacro Império Romano Germânico e o papa. Provisoriamente, no final do século XI, o papa levou vantagem, e foi nesse contexto que Urbano II assumiu a empreitada de reunir o povo cristão numa grande expedição para estabelecer, em seu nome, a soberania sobre os lugares santos.

[Guerra justa, peregrinação e Cruzada] Os Pais da Igreja tinham elaborado a ideia da guerra justa, fazendo da cristandade uma pátria que era preciso defender contra o agressor. Tendo sido berço da vida e da paixão de Cristo, a Palestina e, particularmente, Jerusalém ocupam um lugar primordial nas mentalidades e admitia-se que uma peregrinação à Terra Santa equivalia à remissão dos pecados. Essa convicção se prende a um conjunto de representações que ligam entre si a Jerusalém celeste e a Jerusalém terrestre. No final dos tempos, a Jerusalém celeste desceria exatamente ao local da Jerusalém terrestre. Morrer na Terra Santa permitiria, portanto, que se estivesse ao lado de Cristo na hora do Julgamento Final. O Ocidente exercia um protetorado moral sobre os lugares santos, concedido a Carlos Magno pelos califas abássidas. A peregrinação a Jerusalém, cujo desenvolvimento foi facilitado pela criação dos abrigos mantidos por religiosos, por vezes revestiu-se do aspecto de uma empreitada coletiva maciça: em 1064-1065, Günther, bispo de Bamberg, viajou à Terra Santa acompanhado por cerca de 12 mil pessoas.

No princípio do século XI, o califa fatímida Al-Hakim perseguiu os cristãos; além disso, a conquista turca criou novas dificuldades e interrompeu as peregrinações aos lugares santos. O objetivo do papa teria sido, portanto, restabelecer a liberdade de acesso aos lugares santos.

[A Cruzada, empreendimento religioso e político] Mas quando lançou um apelo em favor da Cruzada no concílio de Clermont, em 1095, o papa Urbano II obedecia também às considerações de ordem política. As notícias do Oriente, que o pedido de Aleixo I Comneno vieram confirmar, mostravam que o cristianismo ali corria grande perigo. Por outro lado, não existia meio mais certo de reunir sob a conduta papal os elementos turbulentos da cristandade do Ocidente do que engajá-los nesse imenso e audacioso empreendimento que seria a conquista dos lugares santos. Para os contemporâneos, apenas as motivações religiosas já eram suficientes. Para aqueles que respondessem a seu apelo, o papa assegurava a suspensão das ações intentadas contra eles na justiça e a salvaguarda de seus bens sob a proteção do clero. Uma vez cumprida sua missão, os cruzados, assim nomeados porque ostentavam uma cruz bordada sobre suas vestimentas, teriam como prêmio a remissão de seus pecados.

TATE, Georges. O Oriente das Cruzadas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 28-33.

Nenhum comentário:

Postar um comentário